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(A) :: Quando o protocolo substitui a legalidade: Estado português e a mala de dinheiro oriunda da Guiné-Bissau

Quando o protocolo substitui a legalidade: Estado português e a mala de dinheiro oriunda da Guiné-Bissau

Este episódio obriga Portugal a uma escolha estratégica: ou assume uma política externa coerente, ancorada em princípios, ou aceita que esses valores são meramente retóricos.

Sumaila Jaló
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A apreensão de cinco milhões de euros em numerário num avião proveniente da Guiné-Bissau, aterrado em Figo Maduro, não é apenas um caso policial. É, acima de tudo, um caso político e institucional grave, que expõe fragilidades profundas na actuação do Estado português, em particular na forma como o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) tem gerido responsabilidades diplomáticas sensíveis, conciliando — de forma cada vez mais problemática — conveniência política, ambiguidade jurídica e um discurso formal de defesa do Estado de Direito.

O dado mais perturbador não é apenas o montante apreendido, por mais extraordinário que seja, mas a classificação do voo como sendo “de Estado”. Essa designação não é um detalhe técnico nem um expediente administrativo neutro: é uma decisão política, com implicações diplomáticas claras e efeitos simbólicos e materiais relevantes. O esforço do MNE em reduzir essa classificação a uma questão “puramente protocolar” não elimina o essencial: um voo de Estado pressupõe enquadramento institucional legítimo, interesse público identificável e coerência com a posição diplomática do país que o acolhe.

Ora, é precisamente aqui que a posição do MNE de Portugal se revela frágil e difusa.

Segundo a explicação oficial, a qualificação do voo como sendo de Estado baseou-se no facto de a passageira ser cônjuge de um chefe de Estado “apesar de deposto”, num contexto em que Portugal optou por não reconhecer as chamadas «novas autoridades» da Guiné-Bissau. Convém recordar que o Governo português nunca condenou com a devida firmeza aquilo que já então se sabia tratar de um “golpe cerimonial”, organizado e executado por Umaro Sissoco Embaló. Este “grande amigo” do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, cujo autoritarismo foi politicamente apoiado, desde 2020, tanto por Belém como pelo ex-Primeiro-ministro, António Costa, que privilegiaram a estabilidade formal e a conveniência diplomática em detrimento de um escrutínio sério, exigente e coerente com os valores democráticos que Portugal proclama defender.

Adiante, esta formulação, “voo de Estado”, encerra uma contradição política séria. O chefe de Estado em causa não era apenas um “presidente deposto” num limbo institucional. Era, simultaneamente, um ator político ativo e candidato presidencial, a concorrer para a sua própria sucessão num processo eleitoral altamente contestado, marcado por sucessivas rupturas constitucionais e eliminação de adversários.

Ao optar por reconhecer, ainda que parcialmente, prerrogativas associadas ao estatuto presidencial, o MNE cria uma ficção diplomática perigosa: trata como chefe de Estado quem já não exerce legitimamente o poder, mas também não assume claramente a condição de simples particular. Esta ambiguidade não é neutra. Funciona como um reconhecimento funcional seletivo, feito à medida das circunstâncias, sem transparência nem escrutínio político adequado.

Mais problemático ainda é o alargamento implícito dessa classificação a todo o voo, incluindo passageiros sem qualquer estatuto protocolar, um dos quais viria a ser detido por fortes suspeitas de branqueamento de capitais. O argumento de que os efeitos são “exclusivamente protocolares” não resiste a uma análise séria: prioridade de aterragem, uso de infraestruturas militares e tratamento diferenciado constituem vantagens reais, não meramente simbólicas.

O vazio de responsabilidade institucional é agravado pela desarticulação entre entidades do Estado. O MNE remete para o Protocolo; o Ministério da Justiça recusa comentários; as autoridades aeronáuticas limitam-se a executar decisões; e a Polícia Judiciária actua apenas a posteriori. O resultado é um cenário em que ninguém assume politicamente a decisão tomada — precisamente onde deveria existir máxima clareza democrática.

Este episódio não surge no vazio. Insere-se numa relação diplomática prolongada entre Portugal e a Guiné-Bissau, marcada por uma estratégia de validação política continuada de um regime cuja deriva autoritária tem sido amplamente documentada. Nos últimos anos, Portugal privilegiou a estabilidade formal e a conveniência diplomática, mesmo perante denúncias consistentes de violações de direitos humanos, repressão de opositores, interferências na justiça e assaltos armados a instituições do Estado

Essa escolha tem custos. Quando um Estado democrático relativiza abusos institucionais em nome da estabilidade, perde autoridade moral. Quando tolera zonas cinzentas no reconhecimento político, fragiliza a sua posição no combate internacional à corrupção. E quando, nesse contexto, aceita a entrada em território nacional de um voo classificado como “de Estado”, transportando milhões em numerário de origem não esclarecida, o problema deixa de ser episódico: torna-se estrutural.

É verdade que, no plano criminal, o Estado de Direito funcionou. A apreensão do dinheiro e a detenção do suspeito demonstram a autonomia da investigação criminal. Mas isso não resolve a questão essencial, que é política: quem decidiu, com que critérios e com que avaliação de risco que este voo merecia estatuto de exceção? Esta pergunta não pode ser dissolvida em tecnicalidades administrativas nem empurrada para o esquecimento institucional.

Se houve erro de avaliação, trata-se de um erro político grave. Se houve aceitação consciente de uma classificação ambígua, estamos perante algo ainda mais sério: a normalização do uso instrumental de mecanismos do Estado para acomodar interesses de poder. Em qualquer dos casos, a ausência de responsabilização política é incompatível com uma democracia madura.

Este episódio obriga Portugal a uma escolha estratégica que tem sido sucessivamente adiada. Ou assume uma política externa coerente, ancorada em princípios — Estado de Direito, transparência, combate à corrupção — ou aceita que esses valores são meramente retóricos, aplicáveis apenas quando não colidem com conveniências diplomáticas de curto prazo.

Portanto, Portugal deve decidir se quer ser um actor credível na defesa do Estado de Direito ou patrocinador de um sistema onde excepções se transformam em regra. Porque, numa democracia madura, a estratégia não se mede pela ausência de crises, mas pela forma como se responde a elas.