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(A) :: Palestino é quem um maluco quiser

Palestino é quem um maluco quiser

Embora nunca tivesse havido escassez de malucos, a diferença é que dantes não eram regularmente chamados a dissertar nas televisões.

Alberto Gonçalves
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Uma professora do ISCTE foi à SIC Notícias afirmar, sem contraditório, que Jesus de Nazaré era “palestino”. Com certeza a senhora não fundamentou a sua opinião no vazio, e sim em “memes” da internet, vídeos especializados no YouTube, uma primeira página do JN e a opinião do sr. Maduro da Venezuela, os quais garantem que Jesus não só era “palestino” como refugiado, resistente, guerrilheiro e quiçá um crítico feroz do “sionismo” e de Netanyahu. Se fosse vivo (e na perspectiva dos crentes, é), votava no BE (será dos poucos).

Claro que, em contrapartida, também há toda uma tradição histórica e historiográfica a tentar desesperadamente provar que Jesus era judeu. Nasceu judeu, filho de judeus e descendente directo de Abraão e David, cresceu na Judeia, observava os ritos judaicos, mostrava-se um produto “típico” ainda que particularmente exigente do “judaísmo do Segundo Templo” e merecia o cognome de rabbi, “mestre”. Segundo esta corrente de pensamento, ridiculamente alicerçada em factos e documentos e fontes primárias, Jesus não podia ser “palestino” na medida em que a Palestina não existia no seu tempo de vida, e não existiu até 135 d.C., quando o imperador Adriano quis apagar a identidade judaica da região dando-lhe a designação pejorativa que os judeus reservavam para a região dos filisteus, que por acaso nem eram árabes. Palestina deriva de Filisteia, ou Peleshet em hebraico bíblico (ou Palaistinē em grego), que, dizem os estudiosos e meia dúzia de livrinhos na minha estante, significa “a terra dos invasores”.

Perante o dilema, compete a cada um decidir se prefere acreditar nos estudiosos, nos livros e em dois milénios de conhecimento consensual ou, por outro lado, numa professora do ISCTE que discorre, pelos vistos habitualmente, na Sic Notícias. Por mim, não hesito em optar pela senhora. Admito que os “memes” na internet e um boneco produzido por inteligência artificial em que Jesus aparece com um cachecol igual ao da dra. Mortágua influenciaram-me a escolha.

(Eu gostava de manter este tom pela crónica afora, mas os custos da ironia estão pela hora da morte, donde receio ser mal interpretado e alimentar a crença de que acredito de facto nos delírios da tal professora. Assim, e em benefício da clareza, a crónica abandona aqui as pretensões sarcásticas.)

Agora a sério: está tudo doido? A resposta ponderada e reflectida é: aparentemente, sim. Embora nunca tivesse havido escassez de malucos, a diferença é que dantes não eram regularmente chamados a dissertar nas televisões – e a diferença maior é que hoje são chamados às televisões precisamente porque são malucos. Salvo as excepções da praxe, estimo que cerca de 87,5% dos “comentadores” televisivos possuem uma avaria qualquer. E ao que parece é a própria avaria que lhes assegura os convites e as avenças, o que também diz alguma coisa acerca de quem os convida e paga. Não se trata da proverbial situação em que os chalupas tomam conta do manicómio: aqui, os chalupas fugiram do manicómio e, em vez de serem perseguidos por enfermeiros munidos de ketamina, foram chamados a integrar “painéis” de comentário em estações de TV. Os desafios da inclusão movem-se por estradas sinuosas.

Reconheça-se que a doença mental tem um espectro largo. Na terminologia clínica, há idiotas, alucinados, pírulas, alienados, tantãs, chalados e boçais profundos. Para as televisões, as distinções são de somenos: o importante é que a toleima empurre os comentadores, sofram do que sofrerem, a dizer em público as maiores barbaridades sem que a vergonha os detenha. Jesus era palestino. Israel comete genocídio. A burca é uma tradição respeitável. Biden está em plena forma. Putin vai conquistar Kiev em dez minutos. A Europa está unida. A imigração descontrolada traz segurança. Trump é pior que Hitler. Milei é fascista. Marcelo é um estadista. Guterres é um senhor. Portugal é um paraíso. Portugal é um inferno.

Qual o objectivo de tamanho desconchavo? Em princípio, ganhar ou manter audiências. E se eu aceito o princípio, duvido que o processo seja linear, isto é, que as audiências contemplem semelhantes misérias por concordar com as misérias. Haverá casos em que isso acontece, em que os malucos em casa vêem os malucos no ecrã e genuinamente acham que estes têm razão. Porém, quero ser optimista e supor que a maioria olha para aquilo com a curiosidade mórbida com que se abranda para espreitar um acidente. Ou melhor: com a perversão que há cem anos se dedicava aos “freak shows”, em se exibiam aberrações da natureza para emprestar aos espectadores um sentimento de superioridade e um simulacro de conforto. O apelo do grotesco é a única justificação plausível para aturar a professora citada e os seus pares.

Mas que isto não é normal, não é. Como Jesus não era palestino. E nem os “palestinos” são palestinos.