A escola pública portuguesa tem uma virtude invejável: muda o governo, muda o ministro, mudam os slogans — e nada muda de facto. A indignação é constante, mas cuidadosamente controlada. Reclama-se muito, cumpre-se sempre. A crítica faz-se em voz baixa, de preferência na sala de professores, onde não chega aos ouvidos errados nem perturba a ordem estabelecida.
Todos discordam das políticas educativas. Ninguém, porém, parece disposto a questioná-las seriamente. Criticar é permitido desde que não produza consequências. O sistema agradece.
A classe docente, outrora associada ao pensamento crítico, tornou-se progressivamente subserviente às vontades políticas e aos pequenos autoritarismos instalados em muitas direções escolares. Eça de Queirós escreveu que o hábito de obedecer mata a dignidade mais depressa do que a ignorância — lição antiga que parece ter sido cuidadosamente esquecida. Governa-se hoje por rankings, indicadores e relatórios de autoelogio. Governa-se, acima de tudo, para agradar aos encarregados de educação que, num crescendo de autoridade máxima, foi deixando de colaborar para passar a comandar. A escola já não educa: negoceia. O professor já não ensina: gere suscetibilidades.
Em nome de sucessivas reformas bem-intencionadas, suspendeu-se o rigor e relativizou-se o tempo pedagógico. O essencial passou a ser manter os alunos ocupados, envolvidos e satisfeitos. O objetivo raramente é a progressão sólida; é a tranquilidade do processo.
No panorama geral do ensino, o cenário é este: uma escola cada vez mais ocupada em simular aprendizagem do que em garantir conhecimento efetivo. O essencial dilui-se em metodologias, atividades e discursos que raramente se traduzem em saber sólido. Os alunos passam de projeto em projeto, de atividade em atividade, como se a escola fosse um parque de diversões educativo. Tudo é lúdico, tudo é alegadamente motivador, tudo é experimental — exceto o conhecimento. Ensinar a ler, escrever e pensar passou a ser visto como antiquado. O resultado é conhecido: alunos chegam ao 2.º ou até 3.ºciclo sem competências básicas, enquanto há ainda quem se entretenha a culpar a Covid-19 por um problema que existe há décadas. A pandemia foi apenas o álibi perfeito.
Entretanto, a função docente foi reduzida a uma espécie de babysitting qualificado. Os pais determinam métodos e prioridades. As Direções evitam conflitos. Os professores obedecem. Todos invocam o “bem-estar do aluno”, conceito suficientemente vago para justificar a abdicação da autoridade pedagógica, esquecendo que “educar implica assumir responsabilidade pelo mundo que se entrega aos mais novos” (Arendt, H., 1961). Hoje, basta mantê-los ocupados.
Os poucos docentes que resistem a esta lógica são rapidamente catalogados como incómodos. São pressionados, isolados ou ameaçados quando a sua exigência perturba pais ou expõe fragilidades das direções. A solidariedade profissional, nesses momentos, desaparece. Os colegas observam em silêncio e guardam a indignação para ocasiões mais seguras.
Depois reclamam. Reclamam do sistema, da pressão, da perda de sentido da profissão. Reclamam com razão, mas sem coragem. Como alguém uma vez disse, o problema não é apenas a ignorância, mas a resignação consciente.
A escola pública não está em crise por falta de recursos ou boas intenções. Está em crise por excesso de conformismo e por uma ética profissional progressivamente diluída. Enquanto continuarmos a fingir que educar é entreter, que ensinar é ocupar e que obedecer é sobreviver, continuaremos a formar alunos perfeitamente adaptados ao sistema — e perigosamente incapazes de o questionar.