É verdade, já começava a ser cansativo. Isto de chamar aos outros comunas, fachos ou nazis sempre que abriam a boca e diziam algo com o qual eu não concordava, tinha os dias contados. Não deixava de ser refrescante tomar consciência de que, quem emitia estas opiniões não sabia realmente o que foi o fascismo, o comunismo e o nazismo, mas algum dia a chamada reductio ad Hitlerum teria de ficar fora de moda.
Finalmente nasceu uma nova falácia. Desde que estou vivo creio, aliás, ser a primeira. E vale todo o tempo que esperamos por ela. Ainda por cima de origem nacional, para ajudar a balança comercial, mesmo no fim do ano.
Numa entrevista a Ricardo Araújo Pereira, o entrevistador enuncia a seguinte questão: “Eu vi-te a ser bastante crítico aos humoristas que foram à Arabia Saudita, e a minha pergunta é, mas tu foste ao Vaticano. Quais são as diferenças ao nível do comedy washing? É que, agora em jeito de brincadeira, (…) ao menos os gajos foram lá ser pagos e vocês foram por convicção”.
Lamentavelmente, Ricardo Araújo Pereira respondeu: “Oh Miguel, não há nenhuma hipótese de haver uma comparação”. Esta falta de apoio ao sofismo português é tremendamente irresponsável. Por exemplo, toda a gente sabe que tanto Jesus Cristo como, em princípio, Gengis Khan, Estaline e Pol Pot disseram “quem me tocou”, “tenho sede”, “ai”. Ou seja, o Messias, cujo nascimento acabou de ser ontem celebrado, pertence ao grupo dos mais pérfidos ditadores.
Com tristeza minha, RAP ainda tentou explicar que, embora a longa história da Igreja, ir ao Vaticano não é comparável a fazer espetáculos pagos num regime teocrático repressivo. Salientou, até, que na Arábia Saudita não há nenhuma porta aberta para a liberdade, enunciado o tratamento que, por essas paragens, se dá à mulher e a homossexuais, mas o entrevistador tinha uma carta na manga e não ia deixar passar estes truques ilusionistas de um humorista que está ali, nitidamente, para branquear os factos. Então, “a Igreja tem coisas muito complicadas, tem níveis de machismo enormes e as freiras são empregadas domésticas dos padres”. Por exemplo, a mim calhou-me uma invisível, que, aliás, dá muito mais jeito. No entanto, acredito que deva ter sido um defeito de fabrico de um bom lote de religiosas porque, realmente, não conheço nenhum colega nas circunstâncias descritas pelo entrevistador, ou é isso, ou existe algum plano secreto de austeridade da Santa Sé.
Quanto ao machismo, não só concordo como, a seguir ao Natal, não vou só cortar em tudo o que é fritos, como deixar de ver quadros do Picasso, filmes do Chaplin e assistir a declamações de poemas de Pablo Neruda. Não me vou arriscar a ouvir: “então tu defendes os direitos das mulheres, e depois andas a contactar com obras de arte de homens machistas?”. Isso e ponderar se vou votar nas presidenciais, porque depois do que se passou a seguir à implantação da República não sei se quero contaminar a minha pureza moral com o espírito colaboracionista de todos aqueles que, com o seu voto, são cúmplices de um regime que, na verdade, começou com uma bandalheira.
Louvemos, ao menos, o exemplo luminoso de estadistas como Vladimir Putin que, num gesto de total coerência e repúdio pelos facínoras da Igreja Católica, se recusa a negociar a paz com a Ucrânia, por mediação do Vaticano. Grande homem. Certamente não quer as mãos manchadas com sangue de inocentes.