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(A) :: Trumpismo, anti-trumpismo e a guerra na Europa

Trumpismo, anti-trumpismo e a guerra na Europa

Na atitude face a Trump o wokismo é um veneno mas a submissão estratégica é suicídio. Entre a moda ideológica e a capitulação geopolítica só um espírito infantil escolherá um mal para castigar o outro

José António Rodrigues do Carmo
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Tenho amigos que gostam de Donald Trump. Gostam a sério, com convicção e sem pedir desculpa. Não o fazem por distração nem por ignorância, mas por cálculo cultural. Veem nele o homem que interrompeu a marcha triunfal do wokismo, que fez tropeçar o catecismo identitário, que disse “não” onde tantos sinalizaram virtude ao ajoelhar. Aplaudem-no por ter recusado a psicopatologia da culpa colectiva, por ter tratado como transtorno mental aquilo que durante anos foi vendido como superioridade moral, e por ter devolvido à linguagem um mínimo de correspondência com a realidade. Celebram-no, por fim, pela derrota de Kamala Harris, figura que, vista da Europa, parecia uma Catarina Martins com mais gargalhada, melhor inglês e uma pigmentação politicamente correcta.

Tenho também amigos que detestam Trump. Alguns porque são filhos legítimos do mundo woke e não lhe perdoam o crime capital de existir fora do guião e lhes tirar o chão das suas certezas. Outros porque reconhecem em Trump a caricatura quase simétrica dos defeitos que o próprio wokismo elevou a norma: a vulgaridade apresentada como autenticidade, a irracionalidade vendida como instinto “genuíno”, a intolerância embrulhada em “coragem”, o egocentrismo como método e a irresponsabilidade como estilo. Para estes, Trump não é a antítese da época. É o seu produto final. O woke prometeu virtude e Trump vira o disco e toca o mesmo.

E depois há um terceiro grupo, mais interessante, e menos histérico, que reconhece em Trump eficácia na desconstrução do wokismo e na recuperação de certos reflexos civilizacionais elementares; que lhe concede lucidez na identificação de ameaças reais; mas que o rejeita pela hostilidade à Europa, pelo desprezo pela ordem internacional que a própria América construiu, pela lógica transaccional aplicada às alianças e, sobretudo, pela inclinação autocrática, à  “russa”, que em vez de conter Vladimir Putin parece compreendê-lo, desculpá-lo e, por vezes, recompensá-lo.

É neste grupo que me situo.

Desde logo porque sou europeu. E porque pertenço a um país pequeno, daqueles que aprendem cedo que as grandes potências raramente erram por acidente.

Vistos de fora da bolha do poder americano, os impulsos de Trump em política externa são menos “realistas” do que se afirma e muito mais destrutivos do que se admite. Fragmentam o Ocidente, enfraquecem aliados naturais, reforçam adversários estratégicos e tornam o mundo, o meu mundo, objectivamente mais perigoso. A médio prazo, isto é mau para a Europa. Mas também é mau para a América. Um sistema de alianças não é um favor concedido a terceiros. É uma extensão do próprio poder. Desvalorizá-lo não é punir aliados; é amputar-se, com a satisfação masoquista de quem confunde dor com força.

A longo prazo, ninguém sabe se vamos sair disto melhor do que estamos. Limito-me a recordar que aquilo que não nos mata pode fortalecer-nos, mas também pode deixar-nos coxos, ressentidos e convencidos de que a claudicação é uma virtude.

Mas reconhecer os erros e a hostilidade de Trump não implica absolver a Europa. Há muito que denuncio os nossos próprios pecados: a crença pueril numa paz perpétua kantiana; a substituição da política por moralismos neomarxistas; a fantasia de que somos os culpados metafísicos de todos os males do mundo; a convicção confortável de que a História terminou porque assim o desejámos. Por causa desses pecados a Europa desarmou-se. Intelectual, moral e materialmente, e hoje não é senhora do seu destino, embora continue a discursar como se fosse.

Mas o facto de termos errado não transforma automaticamente em certo aquilo que nos ataca e prejudica. Nem justifica a autoflagelação permanente como política externa. O arrependimento, por mais teatral que seja, não substitui a lucidez. E a culpa não é uma estratégia.

A questão central, que perturba analistas sérios em ambos os lados do Atlântico, é simples: o que explica a hostilidade sistemática de Trump para com aliados históricos e parceiros comerciais estratégicos, combinada com uma indulgência persistente, quando não um alinhamento objectivo, face à Rússia, um adversário histórico, geopolítico e civilizacional do Ocidente?

Durante anos, Trump foi acusado de nutrir uma afinidade peculiar por Moscovo e por Putin. Apontaram-se contactos, encontros deferentes, e um padrão de decisões que parece, de forma recorrente, favorecer interesses russos. Hoje, à luz das negociações em torno da Ucrânia e da nova Estratégia de Segurança Nacional americana, torna-se difícil evitar uma conclusão desconfortável: Trump comporta-se de forma favorável à Rússia.

Porquê?

Não parece ser estratégia. Ajudar Moscovo como forma indirecta de conter a China é uma tese elegante, que fica bem em painéis de conferências, mas é desmentida pelos factos: a Rússia está hoje mais dependente de Pequim do que nunca, e alienar a Europa e aliados, apenas reforça o Dragão. Uma estratégia tão subtil que beneficia apenas o adversário não é estratégia, é disparate.

Também não subscrevo, de caras, a tese conspiratória de que Trump seja um “Krasnov”, um agente consciente do Kremlin. Essa explicação é tentadora porque poupa trabalho intelectual e transforma um enigma político numa novela de espionagem. Mas é preguiçosa. A política raramente precisa de romances; basta observar incentivos, interesses, vaidades, padrões de decisão e vulnerabilidades cognitivas.

Nada disso impede, contudo, que Moscovo tenha desempenhado um papel relevante na formação da visão do mundo de Trump. A simbiose entre Trump e a propaganda russa pode bem ser uma das operações de influência mais eficazes do nosso tempo. Não porque o tenha “comprado”, mas porque afinou os seus instintos: explorou ressentimentos, validou preconceitos, reforçou suspeitas e ofereceu-lhe um espelho onde Trump surge sempre como vítima injustiçada e génio incompreendido, papel que ele interpreta com notável aplicação.

Trump é, à partida, um alvo ideal. Vê a política como negócio, confunde força com humilhação, precisa de aplauso e detesta compromissos que não possam ser convertidos em triunfo pessoal. Ao longo de anos, absorveu as narrativas russas quase sem filtro, e nisso não é diferente de tantos dos nossos conhecidos comentadores e analistas televisivos que, em nome do “realismo”, repetem os slogans do agressor e chamam lucidez à rendição.

A Rússia tem objectivos megalómanos mas, consciente das limitações do seu poder, especializou-se numa guerra que mais que destruir exércitos, tenta corroer o raciocínio. Não procura vencer batalhas, mas moldar percepções. Na sua doutrina militar, isto chama-se “controlo reflexivo”: induzir o adversário a agir voluntariamente no sentido desejado, manipulando a forma como interpreta a realidade. Oferecem-se narrativas verdadeiras, distorcidas ou falsas,  que fazem o alvo acreditar que escolheu livremente aquilo que lhe foi subliminarmente sugerido.

Isto não começou com Putin. Há uma longa tradição czarista e soviética de documentos forjados, teorias da conspiração e campanhas de desinformação, desde os Protocolos dos Sábios de Sião às alegações sobre a origem da SIDA. Que alimentou movimentos anti-americanos, explorou tensões raciais e infiltrou debates políticos no Ocidente. Hoje manifesta-se em ataques cibernéticos, propaganda anti-NATO, bots nas redes sociais, e financiamento encoberto de forças extremistas. A subversão sempre foi a verdadeira alma dos serviços russos de informações.

Quanto a Trump, o padrão do seu comportamento é demasiado consistente para ser coincidência. Raramente critica Putin. Mas ataca aliados e instituições ocidentais com uma ferocidade que não reserva para o adversário. Ao desvalorizar provas flagrantes da má-fé russa, ao ignorar indícios de crimes e agressões, ao enfraquecer a NATO, contribui para a erosão da confiança institucional e para a normalização da violência como instrumento político. Num mundo em que tudo é mentira, vence quem mente melhor. E nisso, os russos são mestres antigos.

As propostas recentes sobre a Ucrânia confirmam esta deriva. O alegado plano de paz dos 28 pontos, negociado fora dos canais diplomáticos,  impunha à Ucrânia concessões territoriais massivas, neutralização militar e renúncia à NATO, sem contrapartidas equivalentes da Rússia. Uma capitulação apresentada como diplomacia, com o agressor recompensado e a vítima convidada a agradecer.

Nada disto é realismo. É apaziguamento. E o apaziguamento é sempre vendido como prudência até ao dia em que se revela como cobardia a pagar com sangue.

Convém, pois, restabelecer os factos. A Rússia não está a ganhar a guerra. Falhou em Kyiv, não consolidou o sul, não dominou o leste. Sofreu perdas humanas e materiais devastadoras e viu a sua capacidade estratégica degradar-se. A Ucrânia, pelo contrário, demonstrou uma resiliência notável, para um país que parecia não ter cartas nenhumas. O que Putin procura agora, não é uma vitória clara no campo de batalha, que não está ao seu alcance, mas o desgaste moral do Ocidente. Cansar-nos. Dividir-nos. Convencer-nos de que resistir é inútil e de que ceder é razoável.

Ceder a esse desgaste é oferecer-lhe exactamente aquilo que pretende.

A reacção americana a uma provável recusa russa das propostas que saíram de Miami, será a Prova Real da cosmovisão de Trump. A partir daí, apoiar a Ucrânia não é caridade. É estratégia. É segurança. É credibilidade. Abandoná-la, ou legitimar os ganhos russos, terá consequências profundas para a Europa, para os Estados Unidos e para a ordem internacional.

Quanto à atitude perante Trump, é verdade que o wokismo é um veneno. Mas a submissão estratégica é um suicídio. Entre a moda ideológica e a capitulação geopolítica, só um espírito infantil escolherá um mal para castigar outro.

Talvez possamos sobreviver à estupidez dos activistas, mas não sobreviveremos à cobardia dos líderes.

A pergunta final já não é quem tem razão no debate sobre Trump. A pergunta é mais simples e mais cruel: quando a História nos chama, ficamos com quem luta, ou com quem explica, em tom professoral, que somos imperfeitos e lutar é inconveniente? Se escolhermos a segunda opção, perderemos a Ucrânia, perder-nos-emos a nós próprios e perderemos a possibilidade de sermos livres.