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(A) :: No último episódio, somos todos "Pluribus"

No último episódio, somos todos "Pluribus"

O final da primeira temporada foi antecipado, como se Vince Gilligan nos quisesse dar um presente. "Pluribus" é uma grande conquista e no fim revela-se como um pedaço de filosofia pop para a História.

André Almeida Santos
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No início do século, Battlestar Galactica foi uma surpresa para os aficionados de ficção científica – e não só. A versão século XXI baseava-se numa produção de final dos 1970s que, apesar de ter os seus valores, era mais objeto de culto do que de referência. Quando se estreou, parecia uma série de ficção científica barata, que iria cair na irrelevância. Tinha um ar barato e o elenco estava recheado de atores de poucas referências. A premissa: os humanos abandonam o planeta, depois deste ser destruído pelos robôs que criaram, os Cylons. No espaço, uma colónia de naves leva os últimos sobreviventes, que procuram um planeta para colonizar.

Até aqui, tudo “normal”, mas Ronald D. Moore teve uma ideia vencedora: e se no meio daquela colónia existisse uma outra espécie de Cylons, humanoides, que não se distinguissem dos humanos e andassem por lá a mexer cordelinhos. Ao longo das temporadas, a identidade dos doze (aliás, para ser correto, eram treze, mas um que nunca aparecia na série) modelos de humanoides iria sendo revelada aos poucos. Isso permitiu que existisse uma eterna sensação de desconfiança em relação à maior parte das personagens, além de uma espécie de constante renovação da narrativa quando se revelava numa nova identidade, porque colocava tudo o que se conhecia até então em cheque.

Não era a epopeia espacial que fazia de Battlestar Galactica uma grande série de ficção científica, mas a forma como colocava os espectadores a olhar para os humanos e suas criações. Isto serve de ponte para falar de Pluribus, a série de Vince Gilligan da Apple TV+ que tomou conta de algum espaço mediático durante as últimas semanas. É uma grande série de ficção científica, não necessariamente pela premissa, mas pela forma como nos pôs a olhar para nós próprios.

Pluribus não tem os elementos mais tradicionais da ficção científica. Distancia-se, até, daquilo que tem marcado o género – o pós-apocalipse. Não tem tecnologia avançada e não é bem uma história de sobrevivência. A cidade Albuquerque de Pluribus é bastante semelhante à Albuquerque de outras criações de Gilligan, como Breaking Bad e Better Call Saul. Aquele é o mundo que conhecemos, onde sucede uma coisa extraordinária. Em paralelo, as características únicas de Albuquerque criam vazio e silêncio que são, por vezes, exasperantes no contexto. Fazem parecer a Terra como um estranho em casa, como se a Terra, como planeta com características únicas, fosse transformada por causa das pessoas que passaram a viver nele — totalmente diferentes daquilo que sempre foram. Ao mesmo tempo, este Vince Gilligan é o mesmo que escreveu episódios de Ficheiros Secretos. E é aqui que reside boa parte da marca sci-fi que define a série.

Um vírus extraterrestre afetou o planeta e a (absurdamente vastíssima) maioria da população. Há um grupo muito reduzido de pessoas pelo mundo que não foram afetadas, treze (curiosamente, o mesmo número de Cylons humanoides de Battlestar Galactica), uma delas é a protagonista, Carol Sturka, interpretada por Rhea Seehorn, atriz-maravilha para Gilligan e que o inspirou a criar uma série só para ela. Carol é uma escritora de romances young adult, alguém que vive a vida com pouca satisfação.

Inicialmente, o vírus mostra um comportamento grupal comum. As pessoas estão felizes, otimistas, resolvidas. Parecem contagiadas pelo bichinho da felicidade — ou de uma feliz resignação. E Carol não quer ser essa pessoa, quer continuar a ser a pessoa miserável que sempre foi. O não querer ser o que os outros são é, para lá de uma questão de sobrevivência, uma questão de feitio. Eis então o ponto de partida para algo mais profundo: o que acontece a alguém que, nesta situação, resiste a ser como os outros? Mais: o que é que acontece quando, depois de muita luta, a possibilidade de ceder fecha a primeira temporada com o mais humano dos sentimentos? Acontece o medo. Medo de não fazer parte. Do isolamento total, quando este deixa de ser uma possibilidade mas uma evidência. Medo de não ser uma entre o grupo, para sempre.

Não é um pós-apocalipse, mas talvez seja. E nós colocamo-nos naquela pele, porque o silêncio da narrativa abre espaço para a nossa interepretação. Se fosse connosco, o que faríamos? O mundo de Pluribus continua a funcionar apesar do vírus. Aliás, pode-se argumentar que até está a funcionar (reforço no funcionar) melhor: os infetados existem enquanto um, uma mente coletiva que faz com que falem sempre por “nós” e nunca por “eu”. Face ao mundo verdadeiro, a rendição não seria a melhor opção? Vemos o último episódio e ficamos sem resposta óbvia e é aí que está boa parte do sucesso da série.

Carol era uma resistente porque tinha mau feitio, queria ser miserável, não sabia viver de outra maneira, mas até que ponto é isso sustentável? Ao longo dos episódios, a sua condição vai ser posta em causa de diferentes maneiras e no fim a questão é perceber se há uma forma de fazer parte sem ser infetada. O que dá à personagem pano para mangas para se falar sobre o “outro”: são os infetados o “outro”, porque são diferentes, apesar de serem a maioria? Ou ela será agora o “outro” porque faz parte da minoria?

O último episódio da primeira temporada é um grande desafio sobre este exercício filosófico. Também é uma súmula perfeita da razão da primeira temporada de Pluribus ter correspondido às expectativas. É uma belíssima orquestração de cenas, mais interessadas em dar-nos a situação através das personagens do que em construir as personagens através da situação.Vemos o último episódio e reconsideramos todas os momentos em que pensámos que não estava a acontecer absolutamente nada. Vai-se a ver e estava a acontecer tudo: a existência. Simples.

O tempo é o protagonista e os 60 e poucos dias de um planeta contagiado por um vírus parecem ser o nosso tempo real. As indecisões de Carol neste último episódio, entre escolher estar do lado de alguém como ela, ou da pessoa infetada que a faz sentir-se acompanhada (ainda que por vezes olhe para ela mais como animal de estimação) são bem reais. Tão reais que nos importamos mais com ela do que com o destino do mundo. E, no fundo, essa é a grande partida da primeira temporada de Pluribus. Uma maravilhosa partida.