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Alfred Hitchcock: o mestre que nunca filmou de mais

Ilusionista, marca imitada, repetida, variada, nunca suplantada, polémica, imortal. O Nimas, em Lisboa, dedica-lhe uma das maiores retrospetivas de sempre entre nós: 37 fitas, incluindo raridades.

Alexandre Borges
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É costume dizer-se que o primeiro filme de Hitchcock ainda não era hitchcockiano. Que era só o de um jovem tarefeiro, a cumprir o caderno de encargos de um estúdio e de uma época. Que a marca do mestre tal como a conhecemos só começaria a aparecer a partir da terceira tentativa, com “The Lodger”, em 1927, revisitação da história de Jack, o Estripador, e primeiro grande êxito de bilheteira para Hitch. Pedimos desculpa por discordar. É claro que “The Pleasure Garden” (1925) é uma encomenda, uma época, o testemunho de um conjunto de limitações técnicas com que o realizador não teria de lidar depois; mas basta ver aquela sequência de abertura: logo no primeiro plano, uma escada – um dos seus elementos cenográficos favoritos – uma escada em caracol pela qual descem as pernas de belas mulheres. Mulheres que sobem ao palco d’“O Jardim das Delícias” para dançar, observadas pela perspetiva voyeur dos binóculos de um dos muitos homens que enchem a plateia.

Experimentação e risco formal, aos primeiros segundos, arriscando um travelling pelos espectadores e um plano subjetivo, dando-nos o ponto de vista desfocado para as beldades em palco de um homem e do seu monóculo. O humor na figura do produtor que esfumaça charuto nas laterais do palco, mesmo ao lado de um grande sinal de “proibido fumar”. O espectador que quer conhecer a estrela, Patsy Brand (Virginia Valli) e lhe confessa não querer viver sem aqueles caracóis dourados. E Virginia, que, como os historiadores gostam de assinalar, não era loura, ao contrário das futuras musas do mestre, mas que está a usar uma peruca loura, arranca um caracol da cabeleira e oferece-o ao velho baboso, dizendo-lhe algo como “não seja por isso”. Claro que é Hitchcock. Um Hitchcock de 25 anos, a executar uma encomenda, mas, mesmo assim, a não resistir a espreitar já pelas frestas da obra — a mesma que agora é recordada e adorada num ciclo que o cinema Nimas, em Lisboa, apresenta partir deste 25 de dezembro. Um Natal com a felicidade da reposição de 37 filmes.

Jardineiro de delícias

Em princípio, nada destinava Hitch a uma vida entre celebridades e as luzes da ribalta. Nasceu no Essex, em 1899, filho mais novo de uma modesta família da pequeno-burguesia, origens irlandesas e muito fervor católico. Educado num colégio de jesuítas, ficou a dever à pouca destreza física não ter ido parar à frente de combate mesmo nos derradeiros meses da Primeira Guerra Mundial. Em vez disso, foi trabalhar para a companhia de telégrafos, enquanto aprendia a desenhar em Belas-Artes, fazendo pequenos serviços e aproximando-se do mundo da criatividade; primeiro, como publicitário; depois, desenhador dos intertítulos que tinham, então, a responsabilidade de carregar o texto, num tempo de cinema ainda mudo. Aos poucos, começou a aventurar-se noutros departamentos: direção artística, cenografia, direção de produção, argumento, assistência de realização. Até chegar o dia de arriscarem entregar-lhe a cadeira de lona e o megafone.

O seu estilo ficou marcado por múltiplos traços e obsessões: a alternância prolongada entre o grande plano da personagem e o seu ponto de vista, capaz de um estranho fenómeno de dilatação do tempo e escalar da tensão. As sombras anunciando a chegada funesta das personagens. Os sósias e as trocas de identidades em geral, as louras, sempre as louras, o desejo, a tensão sexual, justaposta, sobreposta ao perigo.

Na verdade, “The Pleasure Garden” não foi bem o primeiro filme do mestre que, afinal, ainda em 1922, terá rodado “Number 13”, cancelado por razões financeiras, e, no ano seguinte, “Always Tell Your Wife”, em parceria com Seymour Hicks e de que só sobreviveria uma bobine. Mas é o primeiro Hitch completo que não se perdeu no tempo (e a propósito de “Conta Sempre à tua Mulher”, também aquele durante cuja rodagem pediu Alma Reville em casamento, já então assistente de realização da fita e futura companheira para sempre, na vida e no set).

O filme foi uma produção anglo-germânica, essencialmente rodada em Munique, com pequenas incursões ao norte de Itália. Um fracasso comercial à época, não teve sequer estreia em Inglaterra; C. M. Woolf, patrão da distribuidora Gainsborough, achou-o pouco vendável e demasiado “europeu”. Foi preciso esperar um ano para que fosse brevemente mostrado nalguns cinemas ingleses e dois para que o êxito de “The Lodger” e a curiosidade sobre o percurso daquele jovem prodígio o catapultassem, enfim, para um período de exibição condigno. O Daily Express chamou-lhe “jovem homem com a mente de um mestre” e, por toda a parte, reconhecia-se-lhe o domínio dos múltiplos departamentos que lhe permitia controlar quase todos os momentos da manufactura de um filme: argumento, produção, cenário, câmara, montagem.

Era, verdadeiramente, o nascimento de um autor, capaz de tirar aos produtores a paternidade dos filmes que, até então, estavam habituados a monopolizar. Mas a experiência germânica teria ainda outra consequência no futuro de Hitch: o contacto com os mestres do expressionismo alemão, nomeadamente Murnau, que pôde ver trabalhar de perto durante a rodagem de “O Último Homem” – é visível essa influência no final até inesperadamente fantasmático de “O Jardim das Delícias”. Com a rodagem do seu filme seguinte, “The Mountain Eagle”, a acontecer também na Alemanha, aproveitou para visitar os museus e galerias de arte de Berlim. Depois, quando regressasse a Inglaterra e se tornasse um dos primeiros membros da London Film Society, chegaria o contacto com outro ramo genealógico fundamental à sua formação, particularmente no campo da montagem: Dziga Vertov, Lev Kuleshov, Sergei Eisenstein – os russos e a certeza da importância de criar uma marca, um estilo, uma assinatura visual.

Depois da história de Patsy e Jill, coristas do Pleasure Garden Music Hall, e dos seus amores cruzados, veio então “The Mountain Eagle”, outro que se perdeu no tempo e, nas palavras do próprio Hitch, “um filme muito mau”. Até que chegámos a “The Lodger”, o definitivo plot twist na história de uma carreira e do próprio cinema. Foi aí, nesse “O Inquilino Sinistro”, título português, ou “O Estrangulador de Louras”, nome que recebeu no Brasil e que aqui partilhamos para gáudio do leitor e reconciliação com a indústria tradutora nacional, que aconteceu, pela primeira vez, o casamento entre forma e conteúdo que o autor, depois, jamais abandonaria. O thriller, o tema do falso culpado, as louras e até o primeiro cameo de Hitchcock (uma presença discreta na redacção do jornal).

A caminho da América

O resto – é difícil fugir a um cliché que provocaria, muito provavelmente, comichão a Hitch (pun very intended) – é história. O mestre faria com espantoso sucesso a primeira de três transições dramáticas, qualquer delas capaz de acabar, sozinha, com a carreira de outro realizador: do mudo para o som, da Europa para a América, do preto e branco para a cor. Em 1929, “Chantagem” é o seu primeiro filme sonoro (e dos primeiros de todo o cinema britânico (na verdade, foram rodadas duas versões: com e sem som. Ambas serão exibidas no ciclo do Nimas). Depois, vai acumulando sucessos como “O Homem que Sabia Demais”, “39 Degraus” ou “Desaparecida!”, até alcançar um estatuto tal que Hollywood, simplesmente, já não podia mais dar-se ao luxo de não o ter na equipa. Assim, em 1939 e mesmo a tempo de escapar agora à Segunda Grande Guerra, a família Hitchcock – Alfred, Alma e a filha Patricia – mudam-se de Londres para a Califórnia, a convite do grande produtor David O’Selznick. Ia começar a segunda e ainda mais esplendorosa vida do mestre.

“Rebecca”, o primeiro Hitchcock “americano”, vale logo o Óscar de melhor filme, mas perde o de melhor realizador para John Ford por “As Vinhas da Ira”. Compreensível – o mesmo não se pode dizer do que viria depois. Seguir-se-iam mais quatro nomeações para a estatueta de melhor director: “Um Barco e 9 Destinos” (1945), “A Casa Encantada” (1946), “Janela Indiscreta” (1955) e “Psico” (1961), todas perdidas, uma a uma, para nomes menos veneráveis que Ford.

Teve conflitos com algumas das suas divas, com Tippi Hedren à cabeça da lista, e dizem as más línguas que era totalmente controlado pela mulher, Alma, usando o cinema como catarse para os seus fétiches, mas Hitch foi sempre o nosso monstro favorito. Tornou-se ainda mais querido do grande público quando acumulou com o cinema uma invulgar carreira paralela na televisão, na popularíssima série “Alfred Hitchcock Apresenta”, estreada em 1955.

Mas não foi só a Academia de Artes e Ciências que insistiu em ignorá-lo; também Cannes o nomeou três vezes, para nunca o premiar. Acrescem as seis nomeações dos pares, na Director’s Guild of America, sem que igualmente alguma viesse a redundar em vitória. E, porém, Hitch parece nunca ter-se importado. Foi sempre um vencedor, um peso-pesado à parte, que podia dar-se ao luxo de uma pacata vida familiar em casa, sem ter de frequentar uma só festa de Hollywood para ter todas as grandes estrelas a quererem ser dirigidas por ele e filas de proporções bíblicas à porta dos cinemas, a cada nova estreia.

O estilo hitchcockiano de fazer

Sir Alfred realizou 55 longas-metragens ao longo de 51 anos de carreira, à impressionante média de mais de um filme por ano. Apesar de todos os títulos que já fomos citando ao longo deste artigo, seria preciso referir outros tantos para cobrir apenas o restrito leque dos obrigatórios: “Intriga Internacional”, “Pássaros”, “Marnie”, “A Corda”, “Shadow of a Doubt” ou “Vertigo”, durante anos considerado o melhor filme de todos os tempos na tabela da Sight & Sound, para citar apenas os que vêm mais imediatamente à memória.

O seu estilo ficou marcado por múltiplos traços e obsessões: a alternância prolongada entre o grande plano da personagem e o seu ponto de vista, capaz de um estranho fenómeno de dilatação do tempo e escalar da tensão. As sombras anunciando a chegada funesta das personagens. Os sósias e as trocas de identidades em geral, as louras, sempre as louras, o desejo, a tensão sexual, justaposta, sobreposta ao perigo. As escadas, os relógios, os bilhetes manuscritos, os telegramas e as notícias de jornal ajudando a contar a história. A invenção do MacGuffin, o objeto desejado ou perseguido pelo protagonista, que servia para colocar a história em marcha, mesmo que, a meio, já tivesse sido dispensado em favor do verdadeiro centro da trama, motor outboard da narrativa. O perfeccionismo de tudo fazer em estúdio, recusando exteriores, para poder controlar, ao milímetro, a luz. A sensação de tudo ser falso, um jogo, mas sempre perfeito, matemático, um acordo tácito com o espectador, que sabe que está ali para ser manipulado pelo mestre de todos os mestres de fantoches. As longas sequências de carro ou comboio, a profundidade de campo, as sórdidas perpectivas voyeuristas e os cameos, sempre os deliciosos cameos do autor, geralmente encostados ao início do filme, para que não distraíssem do essencial o espectador que se deixasse ficar à caça deles.

Teve conflitos com algumas das suas divas, com Tippi Hedren à cabeça da lista, e dizem as más línguas que era totalmente controlado pela mulher, Alma, usando o cinema como catarse para os seus fétiches, mas Hitch foi sempre o nosso monstro favorito. Tornou-se ainda mais querido do grande público quando acumulou com o cinema uma invulgar carreira paralela na televisão, na popularíssima série “Alfred Hitchcock Apresenta”, estreada em 1955 e cujos episódios eram introduzidos por um prelúdio conduzido pelo próprio. Em simultâneo, tornava-se, finalmente, um favorito da crítica, quando uma cambada de putos franceses que escreviam nos Cahiers du Cinéma, respondiam por nomes como Godard ou Truffaut e acabariam eles mesmos realizadores a mudar o curso do cinema na Nouvelle Vague, começou a escrever sobre ele e sobre Howard Hawks e a defendê-los como muito mais do que realizadores de enorme sucesso comercial, verdadeiros autores, criadores de superior mérito artístico.

Velho Hitch, “sir” Alfred

Hitch, que quase não ia ao cinema porque dizia que a maior parte dos filmes eram imagens de pessoas a falar e cujo colega de profissão que mais admirava era o tudo menos evidente Luís Buñuel, deixou ao cinema, além do mais, uma quantidade inumerável de regras de ouro: “A duração de um filme deve estar directamente relacionada com a resistência da bexiga humana” ou “Não há terror no ‘bang’, só na antecipação dele”, para citar apenas duas. No entanto, as instituições tutelares do cinema americano só haveriam de dispor-se a reconhecer o seu inestimável contributo para a indústria já ia o mestre bem lançado no último acto da carreira e da vida.

Os filmes de Hitchcock permanecem, simultaneamente, datados e intemporais, falsos e perfeitos, como se o seu contrato com o público não tivesse como prescrever. De resto, nunca deixa de fascinar o paradoxo entre a vida pessoal que levou, pacata, familiar, previsível, e o desassossego da sua obra, criadora de mundos, arrepiante, trepidante, perturbadora, sempre no fio da navalha.

Em 1968, a Academia lá lhe entregou um Irving G. Thalberg Memorial Award, aquele estranho galardão honorário com que se distingue uma carreira que, olimpicamente, se ignorou enquanto acontecia. Em 1979, o American Film Institute atribuiu-lhe um Life Achievement Award, ocasião em que o realizador aproveitou para agradecer a “apenas quatro pessoas”: “a primeira é uma editora, a segunda é uma argumentista, a terceira é a mãe da minha filha Pat e a quarta é uma cozinheira capaz de operar milagres numa cozinha doméstica, e todas elas se chamam Alma Reville.” Em dezembro daquele mesmo ano, a rainha e a pátria ordenaram-no cavaleiro da Ordem do Império Britânico. De maneira que o velho Hitch foi nada mais, nada menos, que Sir Alfred durante quatro loucos meses, antes que uma falência renal o levasse deste mundo, placidamente durante o sono, numa morrinhenta manhã de abril de 1980. Alma sobreviver-lhe-ia dois anos. Mais de duas décadas passadas, as escolhas congregadas de realizadores e críticos na votação da Sight & Sound e do British Film Institute ainda o elegiam segundo melhor realizador de sempre, só batido por Orson Welles.

Votações à parte, inevitavelmente subjetivas e condicionadas pelo espírito da época em que são feitas, Hitch permanece como um dos maiores artesãos da história do cinema. Aliás, é curioso que tivesse nascido mesmo no final de um século, a tempo de iniciar outro de cuja arte maior seria, ele mesmo, um dos artistas definidores. Os filmes de Hitchcock permanecem, simultaneamente, datados e intemporais, falsos e perfeitos, como se o seu contrato com o público não tivesse como prescrever. De resto, nunca deixa de fascinar o paradoxo entre a vida pessoal que levou, pacata, familiar, previsível, e o desassossego da sua obra, criadora de mundos, arrepiante, trepidante, perturbadora, sempre no fio da navalha. Cada filme resiste a todos os visionamentos como uma lição, construído plano a plano, numa relojoaria sem peças a mais ou a menos. Para experimentar ou provar de novo até 21 de janeiro, 37 vezes, num cinema também ele clássico em si mesmo, dos últimos de rua de Lisboa e do país.