Faltavam apenas oito dias para o Natal de 1989. Cumprindo a tradição, a Casa Branca já estava decorada a rigor para a ocasião. Pinheiros e grinaldas, decorados com laços e bolas vermelhos, muitas luzes e flores, também vermelhas, enfeitavam os corredores e as salas da residência oficial do Presidente norte-americano. No segundo piso, George H. W. Bush também tinha entrado no espírito das festividades: calçava umas meias vermelhas com as palavras Merry Christmas. O espírito natalício que dominava o edifício contrastava com o tema da reunião que o chefe de Estado convocara para os seus apartamentos privados: o planeamento de uma operação militar no Panamá. “Era uma altura estranha para planear uma guerra“, recorda Colin Powell, à data chefe do Estado-Maior Conjunto dos Estados Unidos, na sua autobiografia “My American Journey“.
A operação — a que foi dado o nome de Causa Justa — foi anunciada apenas três dias depois da reunião. No dia 20 de dezembro de 1989, os Estados Unidos invadiram o Panamá, com o objetivo de prender o Presidente Manuel Antonio Noriega e substituir o seu governo. Numa comunicação ao país nesse mesmo dia, Bush apresentou quatro justificações para utilizar a força militar para depor Noriega: “Proteger as vidas dos americanos, defender a democracia no Panamá, combater o tráfico de droga e proteger a integridade do Tratado do Canal do Panamá”.
Na manhã da véspera de Natal, quatro dias depois do início da ofensiva, as forças norte-americanas encontraram Noriega na Nunciatura Apostólica, a missão diplomática do Vaticano, na Cidade do Panamá. Foi preciso esperar pelo início de 1990 para conseguir deter o Presidente panamaense e levá-lo para os Estados Unidos, onde foi julgado por tráfico de droga e condenado a prisão perpétua. No rescaldo da sua detenção, o Exército panamaense, as Forças de Defesa do Panamá (PDF), foi dissolvido e Guillermo Endara — que enfrentara Noriega nas eleições presidenciais meses antes e a quem os resultados contabilizados por uma aliança de partidos da oposição davam a vitória — assumiu o cargo de Presidente.

Passados 36 anos da Operação Causa Justa, as memórias do Panamá agitam Washington. Numa outra capital da América Latina, um outro Presidente, também ele acusado de tráfico de droga e de fraude eleitoral, trava um novo braço de ferro com a Casa Branca. No Natal de 2025, o Presidente Donald Trump não exclui uma operação militar na Venezuela para derrubar Nicolás Maduro. Contudo, especialistas ouvidos pelo Observador declaram que as comparações entre o Panamá de 1989 e a Venezuela de 2025 não são realistas. “São semelhantes apenas ao nível da narrativa política”, aponta Orlando Pérez, professor de Ciência Política na Universidade de North Texas.
“O lobo está a chegar”: o bombardeamento de El Chorrilo e fuga de Noriega para a Nunciatura
Na madrugada de 20 de dezembro de 1989, mais de três centenas de aeronaves norte-americanas entraram no espaço aéreo do Panamá. Por volta da 1h da manhã, as primeiras bombas começaram a cair. “Um flash enorme, seguido de um estrondo…[como] o maior relâmpago que já viste na vida”, descreveu Michael Durant, piloto de um dos helicópteros Black Hawk que participaram no ataque, ao The Guardian. Um dos alvos dos ataques era o quartel das PDF, localizado no bairro de El Chorrillo.
El Chorrillo era um bairro pobre no sul da capital, perto do Canal do Panamá, onde centenas de famílias partilhavam pequenos quartos. Um habitante do 12.º andar de um prédio do bairro vizinho descreve o “caos” dessa noite. “As balas voavam, as pessoas gritavam. Parecia que o edifício abanava com cada bomba que caía. Os meus vizinhos gritavam. Podia ouvir alguém a gritar ‘mataram este e aquele’ e foi assim a noite toda. Também [ouvimos] gritos de norte-americanos a dizer que ninguém devia sair de casa”, relatou, citado num artigo de 2021 da professora María Luisa Amado, Impressions of National History: Retracing Panama through Memory Lines.
Julissa Jaramillo, que tinha apenas 16 anos quando os Estados Unidos invadiram o Panamá, recordou à NPR as palavras que os adultos repetiram durante a noite: “O lobo está a chegar, o lobo está a chegar”. Para outros jovens, as memórias da invasão são menos traumáticas. No livro El día que Estado Unidos invadió a Panamá (sem edição em Portugal), o escritor Claudio de Castro partilha a história de um menino de onze anos, que morava mais a norte na capital e que ficou apenas “aborrecido” com o facto de a festa de Natal da escola, marcada para esse dia, ter sido cancelada.

Além do quartel das PDF, as tropas norte-americanas também visaram o aeroporto, o jato privado e o barco de Noriega. Apesar dos alvos, no meio do “caos”, o Presidente panamaense conseguiu escapar à detenção. Durante os quatro dias seguintes, as tropas norte-americanas procuraram Noriega por todo o país, até ser encontrado na Nunciatura Apostólica na capital. Foram precisos outros onze dias para o forçar a entregar-se. No dia 3 de janeiro de 1990, Noriega foi detido e, mais tarde, condenado pela justiça americana por tráfico de droga, extorsão e lavagem de dinheiro. Cumpriu parte da pena nos Estados Unidos, depois em França e regressou ao Panamá, para cumprir o resto da sentença em prisão domiciliária, onde acabou por morrer em 2017, aos 83 anos.
Depois da detenção de Noriega e da tomada de posse de Guillermo Endara, a Operação Causa Justa foi dada como terminada no dia 31 de janeiro de 1990, com o Pentágono a dar conta de 537 vítimas mortais: 23 soldados norte-americanos e 514 panamaenses, entre civis e soldados. Outras 14 mil pessoas ficaram desalojadas e foram obrigadas a passar o Natal em centros de acolhimento de refugiados. Contudo, os números de mortos são questionados por organizações internacionais e pela Comissão Nacional de Direitos Humanos do Panamá que, no rescaldo da operação, apontou que os números de mortos podiam chegar aos milhares. A discrepância gerou investigações, mas os números norte-americanos nunca foram revistos. Um relatório da Human Rights Watch levanta outra questão — de que forma morreram as várias dezenas de civis cujas mortes foram confirmadas? — apontando a possibilidade de a operação ter violado o Direito Internacional.
A “posição privilegiada” dos EUA que fez do Panamá “um caso invulgarmente permissivo” para Washington
Em maio de 1989, os panamaenses deslocaram-se às urnas com o objetivo de eleger um Presidente e os deputados da Assembleia Legislativa. A vitória de Manuel Noriega, um antigo ativo da CIA na América Latina cuja relação com Washington se tinha deteriorado, foi declarada fraudulenta pelos EUA. Seguiram-se protestos e tentativas de golpe de Estado falhadas. A invasão, no final desse mesmo ano, foi o culminar de meses de tensões. O rastilho foi a morte, no dia 16 de dezembro de 1989, de um fuzileiro naval norte-americano às mãos das PDF.
Mas a decisão de invadir não foi imediata. Na reunião do dia 17 de dezembro, uma questão imperava entre os líderes políticos e militares reunidos na Casa Branca: “Temos provocação suficiente para agir?“, recorda Colin Powell na sua autobiografia. Às acusações de fraude eleitoral e tráfico de droga, somava-se a vontade de os Estados Unidos preservarem a sua esfera de influência do Panamá, herança do seu papel na construção do Canal. A acumulação de fatores levou os norte-americanos a decidir que sim, havia bases para agir pela força. Mas a justificação foi reforçada com o nome escolhido para a operação, que foi alvo de discussão. Acabaram por concordar em “Causa Justa” — “até os nossos críticos mais severos teriam de dizer ‘Causa Justa’ enquanto nos denunciam”, justifica Powell, que mais tarde chegaria a Secretário de Estado.
Para perceber a dimensão da influência norte-americana é preciso recuar a 1904, data em que os Estados Unidos assumiram a construção do canal do Panamá. O controlo do território só foi transferido para o Panamá em 1977 com os tratados Torrijos-Carter, mas a presença norte-americana manteve-se, principalmente, na “Zona do Canal“. Isso viria a tornar-se uma fonte de tensão entre os panamaenses e os “zonianos”, o nome dado aos habitantes da Zona do Canal, descreve María Luisa Amado no artigo de 2021. “O domínio auto-proclamado dos EUA sobre o canal e a presença militar na zona do canal atestam o estatuto semi-colonial ao abrigo do qual o Panamá se tornou uma república independente”, escreve a professora de sociologia nos EUA no mesmo artigo.
Ora, essa mesma presença norte-americana é apontada pelos especialistas como uma das principais justificações para o “sucesso” da Operação Causa Justa. Carlos Ruiz-Hernandez, antigo ministro adjunto dos Negócios Estrangeiros do Panamá, considera mesmo que a presença era de tal forma significativa que a operação não pode ser descrita como uma “invasão”. “A intervenção dos EUA no Panamá foi possível graças a uma importante presença militar pré-existente dos EUA e a uma profunda familiaridade no local com os alvos e o terreno. Essa ‘posição privilegiada’ reduziu substancialmente os problemas clássicos da invasão em termos de acesso, bases, informações e fluxo de forças”, descreve ao Observador. “O Panamá foi um caso invulgarmente permissivo”, sintetiza o professor Orlando Pérez.
Contudo, o retrato da invasão como um “sucesso” não é unânime. Da parte dos Estados Unidos, a Operação Causa Justa é classificada assim, uma vez que os objetivos estabelecidos por Bush foram cumpridos: Noriega foi derrubado e julgado e um governo democrático tomou o seu lugar, sem a ofensiva se prolongar. Mas no Panamá, a memória é mais complexa, apontam os especialistas. De um lado, estão aqueles que vêm a operação como um mal necessário para pôr fim ao regime corrupto e autoritário de Noriega. Do outro, estão aqueles que condenam o número de mortos, a destruição das casas e a interferência externa.
No artigo de 2021, María Luisa Amado destaca ainda as diferenças geracionais da memória, entre os mais velhos, que viveram a invasão e os traumas subsequentes em primeira mão, e as gerações mais novas, que apenas conhecem as histórias herdadas da família, das aulas de História e das memória nacional promovida pelo Estado. Ora, esta última é bastante reduzida — por exemplo, a data não é assinalada de forma oficial como um feriado ou dia de luto, sendo dada muito mais atenção à fundação da Cidade do Panamá, exemplifica. Entre a visão de Washington e a mais complexa visão panamaense, o antigo diplomata do Panamá nota que “acaba por haver duas narrativas sobrepostas, mas fundamentalmente diferentes, sobre o mesmo acontecimento”.

A “lógica limpa e rápida” da Operação Causa Justa não pode ser replicada na Venezuela
Ao todo, na Operação Causa Justa, terão participado perto de 27 mil soldados norte-americanos. Mas pouco mais de metade desse número embarcou nas aeronaves norte-americanas nas vésperas do 20 de dezembro. Isto porque 13 mil soldados norte-americanos já estavam colocados no Panamá — a força já existente que fez com que a operação fosse um “sucesso”. Não importa apenas o simples facto de os soldados já estarem no país, mas o facto de o conhecerem bem e já terem sistemas internos montados. Ainda assim, este não é o único fator que explica a “simplicidade” da operação: é preciso ainda notar as dimensões do Exército panamaense, a geografia do país e o contexto internacional.
Em primeiro lugar, as PDF, fiéis a Noriega, não eram particularmente numerosas ou bem equipadas. John Polga-Hecimovich, professor na Academia Naval norte-americana, destaca ao Observador que o Exército panamense, com cerca de 12 mil soldados, era menos numeroso que o destacamento habitual norte-americano no território. Já Orlando Pérez salienta o facto de as forças não terem qualquer tipo de equipamento pesado, como “defesas aéreas robustas”. No que toca à questão geográfica, o Panamá é um país pequeno, à data com cerca de 2,5 milhões de habitantes e poucas zonas urbanizadas — a operação focou-se, portanto, na capital, onde decorreram todos os eventos anteriormente descritos.
Por último, a invasão deu-se numa altura de inquestionável preponderância norte-americana na ordem internacional. Semanas antes, o muro de Berlim tinha caído e o mundo assistia em direto ao fim da Guerra Fria e ao colapso da União Soviética. Apesar de ter existido, efetivamente, uma condenação internacional da invasão, esta nunca passou das palavras — outros Estados da América Latina viviam também eles com o trauma da interferência norte-americana durante a Guerra Fria e o Panamá de Noriega não tinham grandes aliados internacionais que pudessem desafiar Washington.
Ora, nenhuma destas características pode ser encontrada na Venezuela de Maduro em 2025. Pelo menos, “não nos aspetos que que mais importam”, destaca Orlando Pérez. No que toca ao poder militar, não só a Venezuela tem um Exército bem maior — “dez vezes maior do que o do Panamá era”, aponta John Polga-Hecimovich — como Nicolás Maduro conta ainda com a lealdade de outros grupos militares e paramilitares: a Milícia Bolivariana, milícia civil que responde perante o Presidente, grupos paramilitares e grupos de guerrilha da vizinha Colômbia. “Ainda que fracos em termos de infraestruturas e vontade de lutar, é provável que ofereçam mais resistência do que o Panamá”, argumenta o analista, especializado na Venezuela. Esta sobreposição de poderes contribui para a construção de um sistema que os especialistas classificam como “à prova de golpes de Estado”.



No que toca à geografia, a Venezuela também se revela um desafio maior. Para além de o país ser dez vezes maior que o Panamá e ter 11 vezes mais população — mais de 28 milhões —, a topografia do terreno também é totalmente diferente. Enquanto o Panamá é um país estreito (localizado num istmo), com uma grande região urbana ao centro, o território da Venezuela inclui savanas, as montanhas dos Andes e as florestas tropicais da Amazónia, assim como grandes áreas urbanizadas, o que dificulta uma operação militar tradicional.
Por último, também o mundo evolui muito desde 1989. Os Estados Unidos já não são a única superpotência no palco global e disputam o título com a China — que apoia diretamente o regime de Nicolás Maduro. Mais: Caracas conta ainda com a aliança da Rússia. Ambos os países poderiam utilizar uma invasão norte-americana na Venezuela como precedente para operações em Taiwan e na Ucrânia, respetivamente. Além disso, o trauma da interferência norte-americana na América Latina transformou-se e assumiu a forma de uma oposição firme às jogadas de Washington — mesmo que não apoiem diretamente Maduro. Dadas todas as características da Venezuela atual, a “lógica ‘limpa e rápida’ que as pessoas associam ao Panamá cai por terra“, remata Orlando Pérez.
A “nostalgia” do Panamá que alimenta as narrativas sobre a Venezuela
Por ser ainda criança quando a Operação Justa Causa foi dada como terminada, Diego não tem memórias em primeira mão da invasão norte-americana de 1989, a última grande intervenção norte-americana na América Latina. Aprendeu sobre o assunto na escola, mas não de forma aprofundada, explicou à professora María Luisa Amado. Os principais relatos vêm da família, em particular da mãe, que trabalhava como enfermeira e relatava “vários camiões que chegavam [ao hospital] carregados de partes de pessoas. Não corpos inteiros, mas partes!”.
Na leitura de Carlos Ruiz-Hernandez, o facto de a memória ser transmitida principalmente por herança familiar ou através dos meios de comunicação criou visões muito polarizadas da invasão, o que permite que o tema se torne numa “Caixa de Pandora” que pode ser mobilizada com propósitos políticos — principalmente quando se discute a relação com os Estados Unidos, como foi o caso no início deste ano quando Donald Trump expressou a sua intenção de comprar o canal do Panamá. O impacto não foi apenas individual, mas no desenvolvimento político do Panamá enquanto nação.
“O trauma e a ambiguidade de 1989 moldaram o acordo civil-militar pós-invasão do Panamá (incluindo a abolição das forças armadas permanentes), e tem-se mantido como um poderoso recurso simbólico na política interna — frequentemente invocado para policiar os debates sobre “soberania” e para enquadrar o envolvimento dos EUA como inerentemente suspeito. Ao mesmo tempo, também pode funcionar como um resumo dos custos do colapso institucional e da deriva autoritária”, descreve, exemplificando duas narrativas contrárias que mobilizam a invasão para justificar os seus argumentos.
Então, apesar dos traumas infligidos na população, do efeito que teve no desenvolvimento político e das diferenças com o caso venezuelano, por que motivo é que a Operação Causa Justa é utilizada como meio de comparação com a atual situação entre os Estados Unidos e a Venezuela? As respostas dividem-se. John Polga-Hecimovich assinala que a comparação é feita principalmente pelos venezuelanos, o que pode indicar uma leitura mais emocional do tema. Da narrativa da Casa Branca, destaca a sua evolução: o aumentar da pressão sobre a Venezuela já foi justificado com o combate o narcotráfico, a necessidade de proteger a democracia e, mais recentemente, a de “recuperar” recursos energéticos.
Outros analistas veem uma semelhança retórica entre as declarações de Bush em 1989 e as de Trump em 2025: ambos retratam um ditador, que roubou eleições a seu favor e que lidera um regime corrupto, financiado com o tráfico de drogas. E ambos os ditadores colocam em perigo os cidadãos norte-americanos; Noriega, diretamente, dada a presença de norte-americanos no Panamá, Maduro, indiretamente, através das drogas que, acusa Trump, envia para os Estados Unidos — uma acusação contestada pelos próprios serviços de informação norte-americanos.
Carlos Ruiz-Hernandez argumenta que as comparações entre os dois casos são fruto de uma “nostalgia” que é “emocionalmente satisfatória” para os políticos em Washington, uma vez que “sugere velocidade, clareza moral e uma curva de custos controlável”. “A ‘nostalgia’ que descrevo [neste artigo] é menos uma questão de ignorância e mais um raciocínio consciente — recordar seletivamente as partes de 1989 que favorecem a necessidade de uma ação determinante“, elabora.
Contudo, a comparação ignora todas as “condições estruturais” que fizeram do Panamá um caso único. Quando consideradas essas características, os analistas colocam de parte a possibilidade de o Natal de 2025 da Casa Branca ir ser uma repetição do atípico Natal de 1989. Apesar de ser provável que as hostilidades continuem a escalar, o mais expectável é que Washington não desencadeie uma invasão terrestre devido aos pesados custos que teria — quer humanos, militares ou na sua posição internacional). “A Venezuela ainda pode mudar, mas, se mudar, é muito mais provável que seja através de uma fratura política e de um processo de negociação prolongado, ou de um colapso atribulado, do que de uma repetição de 1989”, remata Orlando Pérez.