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Ucrânia ganhou terreno em Kupiansk e infligiu pesada derrota à propaganda russa. Mas a guerra continua num impasse

"Mostrei ao mundo que Putin estava a mentir." Ida de Zelensky a Kupiansk levantou várias dúvidas sobre a conquista da cidade pela Rússia, que nega uma contra-ofensiva ucraniana bem sucedida.

José Carlos Duarte
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A fotografia correu o mundo. No dia 12 de dezembro, o Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, decidiu sair do conforto do gabinete e ir até à linha da frente, mais concretamente a Kupiansk, cidade que a Rússia alegava ter conquistado na totalidade. Com um telemóvel na mão, o líder ucraniano tirou várias selfies, gravou vídeos e visitou os soldados que combatiam nas trincheiras. Para além de dar moral às tropas, esta visita teve um forte efeito mediático. Motivo? Três semanas antes, o líder russo, Vladimir Putin, ouviu da voz do coronel-general Sergei Kuzovlev que a totalidade da cidade estava nas mãos dos russos. O anúncio foi feito na televisão.

A Ucrânia nunca confirmou totalmente essa informação. Apenas garantia que ia resistindo em alguns redutos da cidade. Ao mesmo tempo, as forças ucranianas foram contra-atacando as adversárias e avançando no terreno. Até o comandante-chefe das Forças Armadas, Oleksandr Syrskyi, assegurar, na semana passada, que Kiev controlava “quase 90% do território da cidade” localizada na província de Kharkiv, zona estratégica de extrema importância.

A Rússia continuou a negar quaisquer avanços ucranianos em Kupiansk. A porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros russa, Maria Zakharova, assegurou que a cidade continuava a ser “controlada pelas Forças Armadas russas”. “Destinadas ao fracasso, as tentativas de Kiev para tentar quebrar as defesas foram repelidas e o adversário sofreu perdas pesadas de equipamentos e homens”, denunciava a diplomata. O Presidente russo fez o mesmo: nunca assumiu que a localidade de Kupiansk tivesse sido reconquistada pela Ucrânia.

Estrategicamente, a Rússia tem todo o interesse em manter as aparências de que a ofensiva que desencadeia na Ucrânia está a ser bem sucedida, não havendo lugar para retrocessos numa altura em que as negociações paz andam para lá e para cá (A Ucrânia já deu conhecimento público do seu plano de paz de 20 pontos que vai levar a Trump, na Florida, este domingo, e da Rússia já se vão ouvindo ecos de que é inaceitável). Porém, nem sempre são os russos que levam a melhor. Em Kupiansk, os avanços ucranianos, como relata o think tank Instituto para a Guerra (ISW, sigla em inglês) e outros especialistas militares, efetivamente aconteceram. Mas essa realidade incomoda particularmente a liderança russa, pois coloca em causa a propaganda que o Kremlin tem difundido.

A ida de Volodymyr Zelensky a Kupiansk foi um duro golpe para a Rússia. O facto de o Presidente ucraniano ter estado numa localidade tão perto da linha da frente transformou-se num incómodo para Moscovo, que reagiu descredibilizando e negando todas as informações relacionadas com avanços de Kiev. No entanto, mesmo com o descrédito russo, a Ucrânia obteve uma vitória mediática no meio de tantas más notícias — e denunciou os exageros propagandísticos de Moscovo.

O anúncio, em jeito de vitória, de Vladimir Putin de que Kupiansk tinha sido libertada, assim como o convite do Presidente russo para os jornalistas internacionais irem à localidade comprovar o que estava a dizer semanas virou-se, depois, contra si. No meio de tudo isso, Volodymyr Zelensky aproveitou para denunciar um alegado desaparecimento: o de Sergei Kuzovlev, o homem que anunciou a conquista da cidade pela Rússia. “Esse general desapareceu. Havia notícias de que ele tinha morrido”, avançou o líder ucraniano.

Kupiansk. Como a Ucrânia controlou a cidade

O contra-ataque para controlar a cidade foi preparado com muita antecipação por Kiev. À RBC Ukraine, Viktor Trehubov, o porta-voz do Comando Conjunto para as Operações Militares, revelou que a Ucrânia já preparava a ofensiva há algum tempo: “Se incluirmos a fase de planeamento, a operação começou no outono”. Contou com o apoio de pelo menos cinco brigadas, incluindo a Legião Internacional.

Para garantir o êxito, a Ucrânia manteve em segredo o plano durante algum tempo. O Estado Maior ucraniano explicou que “qualquer atenção pública teria levado a que a Rússia aumentasse imediatamente os reforços e intensificasse os ataques aéreos”. Durante a operação, as tropas de Kiev conseguiram romper as linhas inimigas e alcançar o rio Oskil. Ao chegar a este ponto, foram bem sucedidas em cortar as rotas de cadeias de abastecimento que passavam por Kupiansk.

Depois de impedir os russos de acederem a mais equipamentos de guerra e também ao cortarem as linhas de comunicação, a Ucrânia cercou com sucesso os soldados da Rússia que ainda se mantinham em Kupiansk, que nem sequer perceberam bem o que estava a acontecer. Fora este cerco, não é claro ao certo como é que as tropas ucranianas conquistaram grande parte da localidade. À revista Economist, um dos comandantes responsáveis pela estratégia, Ihor Obolensky, sinalizou que houve “jogos de guerra e cursos de ação distintos”, mas que o “inimigo não deveria saber”. “Foi, acima de tudo, pensamento crítico, perceber o inimigo e a ter a sensação do seu ritmo.”

A Ucrânia garantiu dias mais tarde que controlava 90% de Kupiansk, mas esse número nunca foi verificado de forma independente. Há relatos que ainda há tropas russas no interior da cidade e que Moscovo, depois de Volodymyr Zelensky ter estado em Kupiansk, tem intensificado os ataques. Por sua vez, o Instituto para a Guerra fala em “evidências crescentes que indicam que as forças ucranianos libertaram uma parte significativa de Kupiansk”, mas não avança com números.

A Rússia não dá sinais de ceder na narrativa de que a Ucrânia não controla Kupiansk. Nas redes sociais e em conversas entre bloggers militares, a narrativa é diferente. Citado pela Al Jazeera, um repórter militar esclareceu que “garantidamente” as Forças Armadas Russas “apenas mantinham o controlo do centro e do norte de Kupiansk”. O resto já tinha sido controlado por Kiev.

Porquê é que a perda de Kupiansk preocupa tanto a Rússia?

A cidade tem um importante valor estratégico, é certo. É um ponto nevrálgico nas cadeias de abastecimento, tratando-se também de um centro logístico e de ferrovia no norte da Ucrânia. Ao consolidar o controlo de Kupiansk, a Rússia poderia armazenar de forma mais eficaz os seus equipamentos de guerra e avançar com mais sucesso para ofensivas em várias partes do Donbass. Em paralelo, ao manter este bastião, Kiev evita que o adversário ganhe vantagem logística e protege as rotas ucranianas para o norte de Donetsk.

O lado mediático também não deixa de ser importante. A Rússia precisa de mostrar vitórias no campo de batalha para manter os norte-americanos convencidos de que continuam numa posição mais vantajosa do que a Ucrânia. Num eventual acordo de paz, Moscovo não quer prescindir dessa vantagem negocial e pretende usá-la como uma forma de pressionar um acordo mais favorável.

Aliás, depois do alegado sucesso inicial da Rússia em Kupiansk, a 20 de novembro, Vladimir Putin usou esse exemplo para pressionar a Ucrânia a assinar um acordo de paz, mesmo que lhe fosse desfavorável — naquele caso, ainda o plano de 28 pontos (que entretanto já passou para 20). “Se Kiev não quer discutir as propostas do Presidente Trump e recusa a fazê-lo, então eles [ucranianos] e os belicistas europeus devem entender que os eventos que tiveram lugar em Kupiansk serão repetidos noutras áreas da linha da frente”, avisou.

Não há dúvidas que a Rússia usa a posição de vantagem no campo de batalha para ganhar ascendente durante as negociações. Por causa disso, o facto de as informações publicamente dadas por Vladimir Putin não corresponderem à verdade faz levantar várias dúvidas: será que não estamos perante uma tentativa da Rússia de fabricar uma vitória que, no final de contas, não é assim tão folgada no campo de batalha? Se por um lado é certo que Moscovo continua a estar na ofensiva no teatro de operações, por outro, a verdade é que os esforços continuam a ser lentos, e pouco parece ter mudado na guerra.

"Se Kiev não quer discutir as propostas do Presidente Trump e recusa a fazê-lo, então eles [ucranianos] e os belicistas europeus devem entender que os eventos que tiveram lugar em Kupiansk serão repetidos noutras áreas da linha da frente."
Vladimir Putin após a alegada conquista de Kupiansk pela Rússia

Independentemente disso, o Presidente da Ucrânia celebrou o que considerou ser um êxito em termos mediáticos. “Putin publicamente mentiu ao alegar que as forças russas já tinham conquistado a cidade. Por isso, fui a Kupiansk e mostrei ao mundo que Putin estava a mentir. Devemos continuar a expor todas as falsidades russas, porque a verdade restaura a justiça”, disse Volodymyr Zelensky, num discurso no Parlamento neerlandês.

Aos jornalistas, Volodymyr Zelensky assinalou igualmente que a sua ação na cidade “teve um impacto muito forte” entre os aliados. “Toda a gente elogiou os nossos soldados por manterem Kupiansk”, afirmou, assegurando que o sucesso na localidade “influenciou as conversas com os norte-americanos”, tendo também tido um “impacto muito forte nas conversas com os europeus”.

Não é certo até que ponto o domínio de Kupiansk poderá ajudar a Ucrânia na mesa das negociações. A ida de Volodymyr Zelensky à localidade converteu-se num sucesso comunicacional, mas existem vários desafios no resto da linha da frente para a Ucrânia. Apesar disso, gera uma sensação de dúvida sobre as informações que o Ministério da Defesa da Rússia vai transmitindo.

"Putin publicamente mentiu ao alegar que as forças russas já tinham conquistado a cidade. Por isso, fui a Kupiansk e mostrei ao mundo que Putin estava a mentir. Devemos continuar a expor todas as falsidades russas, porque a verdade restaura a justiça."
Volodymyr Zelensky depois de ir a Kupiansk

Essa tendência de que o Kremlin nunca foi totalmente transparente na divulgação de informações já foi descrita pelo vice-presidente norte-americano, JD Vance, em outubro. Os russos têm “expectativas mal alinhadas”: “Os russos tendem a pensar que estão melhores do campo de batalha do que aquilo que realmente estão”. Nos briefings transmitidos pelo Kremlin, sempre que Vladimir Putin reúne com alguma alta patente militar ou fala em público, nunca há falhas — há sempre sucessos.

Ainda recentemente, num programa de televisão em que fez o balanço do ano, Vladimir Putin repetiu a mensagem de que tudo estava a correr bem. “As nossas tropas estão a avançar em toda a linha da frente. O inimigo está recusar”, garantiu, antecipando novos sucessos “no final do ano”. O Presidente russo também comentou o vídeo do homólogo ucraniano em Kupiansk, adjetivando Volodymyr Zelensky como um “bom ator”. E duvidou da veracidade do vídeo: “Se eles controlassem Kupiansk, o céu estaria coberto de drones ucranianos”.

No meio disto tudo, fica a dúvida: Vladimir Putin está a mentir propositadamente ou as informações que lhe chegam não são totalmente fiáveis? Num Presidente que controla tão bem a forma como comunica, um erro como este de Kupiansk custa-lhe credibilidade e legitimidade. Como recorda o Financial Times, o principal informador da presidência é o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas Russas, Valery Gerasimov.

Valery Geramisov esteve no núcleo duro da tomada de decisão que levou à invasão da Ucrânia. O chefe militar previa que a Ucrânia não resistiria às primeiras semanas de invasão e que acabaria por colapsar. Isso não aconteceu — e mostra como esta alta patente militar já se enganou no passado. Neste sentido, existe mesmo um “ciclo vicioso de desinformação no Kremlin”, como nota Keir Giles, especialista em política russa, no think tank Chatham House. O importante não é bem dar informação verídica a Vladimir Putin; é dar informações que o líder russo gostará de ouvir.

Talvez tenha sido por isso que Sergei Kuzovlev, o comandante que informou em público que Kupiansk tinha sido controlada na íntegra pela Rússia, desapareceu. Não se sabe do paradeiro deste militar há semanas. Volodymyr Zelensky já sublinhou que não “ficaria nada surpreendido” se o coronel-general tivesse morrido depois do falhanço a que expôs o esforço de guerra russo.

Guerra continua de atrito e sem solução à vista

Kupiansk foi uma boa notícia para a Ucrânia, numa altura complicada no teatro de operações. A Rússia continua na ofensiva em vários pontos da linha da frente e tem feito avanços lentos na província de Donetsk (que quer controlar para completar a conquista do Donbass) e Zaporíjia. E as tropas russas deverão continuar assim, num esforço que se deverá intensificar na primavera.

Para que tal se concretize, a Rússia aumentou o número de militares na Ucrânia recentemente. “Excederam os limites do recrutamento em 20-30%”, contou uma fonte dos serviços secretos ucranianas à The Economist, explicando que os russos têm “criado as condições” em certas regiões para que muita gente se inscreva para ir para a guerra na Ucrânia: “Escolhem entre passar fome e assinar um grande contrato com as Forças Armadas”. Em contraposição,  o recrutamento de homens tem sido o principal problema de Kiev — e este reforço certamente não ajudará o esforço de guerra ucraniano.

Para Vladimir Putin, o objetivo é controlar “pela força” — se preciso — o Donbass (Donetsk e Lugansk). E vai continuar até o atingir. Em simultâneo, as tropas russas têm feitos avanços em Zaporíjia, oura província ucraniana, conquistando algumas aldeias. Mas a guerra continua a ser de atrito e sangrenta: a Rússia e a Ucrânia perdem milhares de homens por dia.

Ao ritmo atual, a Rússia ainda vai demorar pelo menos alguns meses até concretizar os objetivos a que se propôs. Como estima o Instituto para a Guerra, as forças russas não vão “ser capazes de conquistar” toda a província de Donetsk “mais cedo do que em 2027 e 2028”, isto se “os parceiros internacionais continuarem a apoiar” o esforço de guerra da Ucrânia. A “faixa fortaleza” — várias cidades ucranianas fortificadas — deverão demorar bastante tempo a ser controladas por Moscovo.

https://observador.pt/especiais/donbass-a-regiao-historicamente-russa-para-putin-que-pode-abrir-caminho-a-uma-nova-invasao-se-a-ucrania-a-perder/

No campo de batalha, a tendência não deve alterar-se num futuro próximo: com mais homens, a Rússia vai continuar a conquistar alguns pontos na linha da frente (o mais recente foi Siversk), pressionar a Ucrânia, que em certas alturas vai conseguindo surpreender as tropas russas, como aconteceu em Kupiansk.