O Observador viajou para Kourou a convite da Agência Espacial Europeia
No centro de controlo do lançamento de mais dois satélites do sistema de navegação europeu Galileo — algo que não era feito com recurso a lançadores europeus desde 2018 —, senta-se um português. Os SAT33 e 34 foram lançados a partir de Kourou, na Guiana Francesa, pela Agência Espacial Europeia (ESA) na madrugada de 17 de dezembro e, apesar de neste quinto voo do foguetão Ariane 6 ter assumido o papel de espectador, Tony dos Santos já foi o gestor de missão do voo inaugural do principal foguetão europeu.
O engenheiro que nasceu na Bélgica, mas filho de pais portugueses, estava no centro da ação quando o sexto rocket da família Ariane foi para o Espaço pela primeira vez, no verão de 2024. Mas o envolvimento de Tony dos Santos no projeto Ariane 6 começou, na verdade, uma década mais cedo. Depois de um período a trabalhar na agência espacial francesa (CNES), o português passou para a ESA e foi destacado com a responsabilidade de acompanhar, no terreno, o desenvolvimento integral do sucessor do Ariane 5, que dominou a indústria espacial europeia durante mais de duas décadas. Tony dos Santos esteve na Sala Júpiter durante cerca de sete horas a acompanhar o lançamento de dia 17, onde, em conversa com o Observador, sustenta que este produto que ajudou a desenvolver é “perfeito”, quanto ao seu antecessor.
Agora a residir permanentemente em Kourou, enquanto gestor técnico de todas as operações no Porto Espacial Europeu, o português já passou por vários países neste seu percurso espacial. Portugal foi onde passou menos tempo. Todos os anos, durante a infância, visitava a família no Porto. A ligação com o país era tão natural que, apesar de ter começado os seus estudos na Bélgica, escolheu a Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto para concluir o último semestre. Existia o desejo de permanecer na Invicta, mas a falta de oportunidades acabou por fazê-lo regressar à região onde cresceu.
Há mais de duas décadas no setor, destaca, para além do papel especial que teve no desenvolvimento do grande lançador europeu, a experiência que teve ao lado de engenheiros da NASA, no projeto colaborativo entre as agências europeia e norte-americana, que lançou o telescópio James Webb para o espaço no dia de Natal de 2021. Agora, é o único português na Guiana Francesa, mas admite que, no futuro, Portugal pode vir a ser mais representado se a indústria nacional continuar a expandir-se.

“Tinha à minha frente o botão vermelho para parar a missão. Não há muitas pessoas que tenham acesso a isto”
Estamos aqui sentados já há mais de sete horas, desde a espera para o lançamento até agora que sabemos que correu tudo bem… Depois do nervosismo, como se sente agora?
[risos] Sim sim, muito melhor agora. Porque estamos sempre a pensar naquelas dificuldades, nas anomalias que fomos encontrando… Mas estou muito feliz, porque este lançador nasceu bem. Se compararmos com o Ariane 5, é um ótimo foguetão, mas foi difícil aperfeiçoá-lo. O primeiro lançamento foi um falhanço, o segundo só meio-falhanço. Foi só ao terceiro que correu bem. Tivemos uma anomalia no décimo voo, outra grande no 17.º… não foi nada fácil. E este é perfeito, porque desde o primeiro voo que corre tudo bem. A reignição do motor foi um problema no voo inaugural, mas arranjámos e ficou tudo melhor no seguinte. Este voo até foi um pouco mais complicado, porque queríamos mesmo que acontecesse ainda este ano. Tentamos sempre não ter lançamentos perto do Natal, pelo que normalmente planeamos uma margem de segurança de quatro ou cinco dias. Mas uma das baterias rebentou há duas ou três semanas, o que nos obrigou a trocar cabos e a testar tudo a tempo da data de lançamento.
Tiveram de esperar por peças novas vindas da Europa ou conseguiram arranjar tudo cá?
Conseguimos arranjar diretamente na plataforma de lançamento, graças àquela margem de segurança que criámos para poder lançar hoje [quarta-feira, dia 17 de dezembro]. De resto, foi mesmo tranquilo, o que é ótimo, considerando que a quantidade de lançamentos vai aumentar de forma drástica no próximo ano, vamos passar de quatro para oito. São oito para o ano, mas já temos espaço para lançar 10 vezes.
E o primeiro lançamento do ano vai ser logo em grande, certo?
O próximo será a primeira versão do Ariane 6 com quatro propulsores [o dobro do atual], por isso vamos ter de o acompanhar com muita atenção. Ao longo do ano também vamos atualizando os modelos atuais. Por exemplo, vamos aumentar a capacidade dos propulsores, de 140 para 160, porque é preciso um maior desempenho para lançar a Constelação [de satélites da empresa] Amazon, que é espetacular.
Vamos ter um grande número de satélites [será o equivalente europeu do Starlink de Elon Musk], e para reduzir o preço por utilização, temos de reduzir o número de lançamentos. Graças a esta nova versão, será possível fazê-lo. Portanto o primeiro lançamento do ano será em fevereiro, com a estreia do Ariane 64 [com quatro propulsores], o segundo será um igual, mas o terceiro já será com esta versão atualizada com uma melhoria de cerca de 30% da performance. Terá a capacidade de transportar o maior número de sempre de satélites.
Sabemos estes detalhes dos próximos lançamentos já com alguma antecedência. Lembra-se quando é que soube que ia estar envolvido no primeiro lançamento do Ariane 6, em julho do ano passado?
Eu acompanhei o desenvolvimento do Ariane 6 desde o princípio. Estava em Paris, em 2014, quando decidiram avançar com esta nova versão. Na verdade, estava envolvido num projeto para melhorar o Ariane 5, chamado “A5 Life Evolution”, mas depois passaram-me para o projeto do Ariane 6 e acabei por redigir todas as especificações para a missão no terreno — mas fiquei em Paris até assinarem o contrato oficialmente para avançar com as obras em Kourou.
Portanto, cheguei a Kourou em 2015, com o objetivo de acompanhar todo o processo de raiz. O primeiro passo foi construir as instalações cá, os edifícios para a montagem e todo o tipo de infraestrutura que temos agora. Depois, tivemos de garantir que estava tudo operacional, um ensaio técnico com a CNES [a agência espacial francesa] e depois o teste combinado. Chamaram-me para ajudar no teste combinado, porque já estavam apertados em termos de prazos, uma vez que o primeiro voo estava marcado para 2020, mas foi muito desafiante. Fui o adjunto — o número dois no comando — para o teste combinado, mas mais para o fim pediram para ser o responsável pela missão neste voo inaugural. O gestor de missão é o responsável pela parte de cima, tudo o que envolva a missão, os satélites, etc.
No caso deste voo em concreto, por exemplo, seria o responsável pela integração dos satélites dentro do Ariane 6?
Exatamente, e garantir que a missão ia correr bem para os satélites. Sentava-me no centro de controlo entre o Diretor das Operações [DDO] e o cliente [que quer lançar o satélite]. Tinha à minha frente o botão vermelho para parar a missão [risos]. Não há muitas pessoas que tenham acesso a isto, só o gestor de missão e o DDO.
Há mesmo um botão vermelho ou é metafórico?
Há mesmo, é verdade. Aqui no Júpiter [o centro de controlo], não fazemos nada, mas coordenamos todas as operações, somos os chefes de todas as equipas espalhadas pelo Porto Espacial, mas também à volta do mundo. Ao longo do dia de lançamento, as equipas metem o estado das suas operações como “verde”, para indicar que está a correr conforme planeado. Se uma das estações tiver um problema, colocam-se a “vermelho” e todos param. A contagem é interrompida e todos param de trabalhar. É engraçado, porque há uns anos estiveram cá uns engenheiros da NASA que disseram que este sistema era genial.
Não usam nada assim do género na NASA?
Não, fazem-no à antiga, tal e qual como se vê nos filmes. O DDO pergunta a toda a gente, individualmente, se está tudo bem e pronto para o lançamento. E é isso, depois lançam quando todos confirmarem. Connosco é tudo automatizado e ficaram incrédulos quando o viram a funcionar. Mas o meu botão só é para utilizar caso os clientes detetem um problema. À minha direita está o responsável por fazer a comunicação com a equipa responsável pelos satélites. Se virem que há algo de errado nesse sentido, avisam-me e eu carrego no botão para parar tudo, para garantir que têm tempo para arranjar o problema em questão. Às vezes, dependendo da missão, não podemos continuar. Se for com antecedência, uma ou duas horas antes do lançamento, temos tempo para arranjar. Mas se for naqueles dez segundos finais em que o DDO já está a fazer a contagem decrescente, não dá.

“Não temos interesse em competir com a NASA. Só queremos lançar o que quisermos, quando quisermos. Só isso”
Quando é que foi esta colaboração com a NASA?
Foi para o lançamento do telescópio James Webb, no dia de Natal de 2021, aqui em Kourou.
Foi a missão em que mais gostou de estar envolvido?
Sem dúvida, não só por ser uma missão muito muito grande, mas também porque foi muito positivo ter esta troca de ideias com engenheiros da NASA. Era engraçado, contávamos histórias e eles diziam exatamente o mesmo, por isso víamos paralelos entre as duas agências. Lembro-me que na altura ainda tínhamos cá os Soyuz [foguetões russos que também eram lançados a partir de Kourou] e eu perguntei-lhes se tinham interesse em ir lá ver as instalações. Disseram que sim e lá fomos nós. No local de preparação pré-lançamento, havia lá um lançador já totalmente preparado e um deles perguntou-me: “Posso tocar?” E disse claro que sim, sem problema. Ele depois contou-me que já tinha ido múltiplas vezes à Rússia para missões com a agência espacial russa e que nunca o tinham deixado ver os foguetes tão perto [risos]. Foi bom, porque podemos realmente partilhar alguns detalhes sobre os nossos sistemas. Por exemplo, a ESA só está envolvida na qualificação das missões e dos foguetes. Nós estamos cá para desenvolver as tecnologias desta indústria, mas não somos nós que fazemos o trabalho. São as agências dos Estados-membros, como a CNES, que lançam. Nós fazemos isto há 50 anos, meter uma empresa privada a gerir os lançamentos — neste caso a Arianespace. E, neste sentido, até a NASA disse que era um sistema muito inteligente.
E houve alguma coisa que vos surpreendeu a trabalhar com a NASA?
Mesmo antes do James Webb, tivemos uma anomalia com o Ariane 5. Era algo mesmo estúpido, estávamos com a órbita errada por 10 graus porque não realinhámos a inércia central. A certa altura vieram estes engenheiros da NASA que disseram: “Okay, vocês tiveram uma anomalia, mas nós temos um grande satélite, de 12 mil milhões de dólares. Como é que conseguem provar que, para o próximo lançamento, estará arranjado?”.
Para mim, esta abordagem fez imenso sentido, porque tínhamos os engenheiros da NASA agora unicamente focados na missão e não no lançador. Já não é problema deles resolver o problema do foguetão, agora estão organizados para garantir que a indústria é que está organizada para resolver o problema. E abordaram-nos da mesma forma. Não nos perguntaram qual era o problema técnico ou como é que iríamos resolvê-lo, mas sim como é que estávamos organizados com a indústria para ver se tínhamos um processo que permite ter confiança para resolver o problema. E eu achei muito inteligente e disse, claro, que mostraríamos como é que nós trabalhamos, se nos mostrarem também como é que trabalham. E assim foi. Tivemos alguns membros da nossa equipa que foram ao Kennedy Space Center [na Flórida], para acompanhar um lançamento.
É interessante haver essa cooperação entre as duas agências e trabalharem de forma tão transparente. Não existe qualquer competição entre a NASA e a ESA?
Nós não temos tanto a mentalidade competitiva. Todas as agências têm o seu papel. Para a NASA, é a supremacia do Espaço, por isso estão em competição — e nasceram da competição — com a Rússia. Para nós [a ESA], é garantir o acesso independente ao Espaço. Por isso, não é competição, não temos interesse em competir com a NASA. Só queremos lançar o que quisermos, quando quisermos. É só isso.
E dentro da mesma agência, é fácil coordenar aquilo que acontece na Europa com as operações no Porto Espacial da Guiana?
São dois processos completamente diferentes. Aqui, estamos na última fase com o produto final. Existem, essencialmente, dois parâmetros: o desenvolvimento e a exploração. Para o desenvolvimento, é preciso uma equipa dedicada, especializada, organizada, onde podem mudar coisas, correr riscos… É preciso muita criatividade. Não é o mesmo perfil de pessoas que está por cá. Quando chega à parte da exploração, não há qualquer modificação. Dizem-nos que se quisermos alterar alguma coisa, temos de lhes pedir, na Europa, e eles mudam.
Aqui, as tarefas são mais repetitivas. E é mesmo isso que queremos, porque ganhamos confiança cada vez que repetimos e funciona. A diferença está também no tempo que têm para trabalhar. Do lado do desenvolvimento, se tiverem um problema, têm um mês para o resolver, às vezes anos. Aqui, está tudo na plataforma e quando os materiais aqui chegam, temos logo um prazo apertado. E, muitas vezes, chegam-nos com atrasos do outro lado quando a missão já está calendarizada.

“Dizemos, muitas vezes, que ou gostas muito de viver na Guiana Francesa ou odeias. Não há intermédio”
Já está em Kourou há uma década. Como é que é a vida por cá?
Nós dizemos, muitas vezes, que viver na Guiana Francesa ou é muito bom, ou muito mau. Ou gostas muito ou odeias, não há intermédio. E é totalmente verdade. A maioria das pessoas gosta de cá vir, mas é em missões curtas. Para ficar cá mais tempo, já é mais complicado, há sempre assuntos familiares que precisam de organização para aqueles que estão casados, que têm filhos. É uma questão de nos adaptarmos.
E como é que foi no seu caso?
Para mim foi tranquilo. A minha mulher trabalhava para a AirFrance e parou imediatamente quando eu vim para cá. Ela foi mesmo muito flexível por mim. O meu filho e a minha filha também gostam de estar cá. É mesmo uma questão de adaptação. Em termos de experiência, acho que é ótimo. Porque é aqui que usamos o produto, que vemos as coisas a acontecer. Estamos realmente no terreno. Às vezes parece perfeito, às vezes há problemas, mas para estar aqui é preciso pensar de forma diferente. A certa altura, cheguei a propor criarmos uma escola para especializar engenheiros e técnicos de transporte espacial. Porque é que aqui que tudo acontece e eu achei que fosse uma coisa positiva em que investir. Os estudantes podiam ter uma experiência “hands on“, acompanhar missões… Coisas que não conseguiam fazer em Lisboa ou em Paris. A ideia é mesmo ter um sítio onde os engenheiros possam vir e especializar-se, para depois virem a ser integrados nas nossas equipas. Seria ótimo para a indústria.
E como foi recebida essa ideia?
Foi bem recebida, mas nunca aconteceu nada [risos].
Quando é que a sugeriu?
Ainda antes da pandemia, em 2017 ou 2018, creio eu.
Mudando um pouco o tema, tem obviamente uma ligação a Portugal. Mas como é que vê Portugal nesta indústria? O Governo aprovou, este ano, um valor recorde para investir na ESA durante os próximos três anos…
Está a começar, está a começar… Não participaram neste lançamento, mas lembro-me que houve uma empresa portuguesa que, em 2018, veio apresentar um projeto de realidade aumentada e virtual. Sei que eles chegaram a ir a Paris para mostrar o produto a uma outra entidade, mas não sei como é que isso ficou, apenas que a Arianespace e o ArianeGroup usam uma tecnologia semelhante. O que fazem, por exemplo com os satélites, é dar uns destes óculos de realidade aumentada aos trabalhadores aqui na Guiana Francesa, para estarem a comunicar e serem guiados pelos trabalhadores na Europa. Para os de lá conseguirem ver pelos olhos dos que estão por cá. E isto é algo que é muito utilizado em Kourou, só não sei se vem da ideia original da empresa portuguesa, se serviram de inspiração… Não sei, é possível que tenham sido eles a impulsionar esta mudança de paradigma.
Há muita influência portuguesa aqui em Kourou? Já reparei que muitos falam português, por causa da proximidade com o Brasil, mas e Portugal?
Aqui não, mas em Paris conheço vários. Sei de uma outra portuguesa que vivia cá em Kourou, mas que saiu para ir ajudar a Agência Espacial Portuguesa e a futura plataforma de lançamento na ilha de Santa Maria, nos Açores. Acho que ela chegou a aceitar uma posição para ser a responsável pelas operações da PLD aqui em Kourou, o lançador espanhol que vem para cá no futuro — mas acabou por preferir voltar para Portugal. É uma decisão importante, por causa do Space Rider, que vai aterrar na ilha daqui a uns anos e que foi agora confirmado na reunião ministerial da ESA, em Bremen. Vai ser lançado daqui, com o Vega C, mas vai aterrar nos Açores.
E vai participar de alguma forma na missão? Seria uma oportunidade para voltar a casa…
Não, como é uma operação totalmente independente do lançador, não tenho qualquer indicação nesse sentido. Mas tenho estado em contacto com os coordenadores do projeto — conheço o responsável, que está há 10 anos a trabalhar com os foguetões Vega. Adoraria a oportunidade de ir aos Açores, seria uma desculpa para regressar a Portugal.