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(A) :: O cinema como espelho do presente: os nossos 23 filmes favoritos de 2025 (e as grandes desilusões)

O cinema como espelho do presente: os nossos 23 filmes favoritos de 2025 (e as grandes desilusões)

Desencontros trágicos e dilemas políticos, lado a lado com dramas pessoais e pedaços dolorosos de História: assim vivemos nas salas de cinema, guardando também interpretações memoráveis.

Eurico de Barros
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Francisco Ferreira
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Joana Moreira
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Ana Moreira
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Não separemos a obra do artista. E de todas as dimensões que compõem a primeira e o segundo, nunca coloquemos a política de parte. Não é uma lição exclusiva deste 2025 que agora termina, mas chegando ao final do ano, perguntamo-nos: lembra-nos da última vez que vimos um mundo dramático desta forma no grande ecrã? A reposta não importa. Interessa sim reforçar esta certeza: no meio da revolução no consumo mediático que só ameaça aumentar, o cinema continua a ser a montra maior das angústias humanas trasnformadas em história visual. As escolhas que se seguem demonstram-no, título após título.

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Eurico de Barros

OS DEZ MELHORES FILMES DE 2025:

A Semente do Figo Sagrado
De Mohammed Rasoulof

https://www.youtube.com/watch?v=nbKLGsf1Syg

Centrado numa família da classe média de Teerão em que o pai é um severo juiz de investigação, as duas filhas estão contra o regime dos mollahs e a mãe tenta ser a força moderadora em casa, A Semente do Figo Sagrado é um concentrado de todas as tensões políticas, sociais, de mentalidades e de gerações existentes na sociedade iraniana de hoje. E que explodem no seio desta família quando a pistola do pai desaparece. A fita foi rodada clandestinamente e o realizador está refugiado na Alemanha.

Flow — À Deriva
De Gints Zilbalodis

https://www.youtube.com/watch?v=82WW9dVbglI

Vinda da Letónia, esta longa-metragem animada ganhou, entre outros, o Óscar, o Globo de Ouro, o César e o Prémio de Cinema Europeu da sua categoria. Passado num mundo pós-apocalíptico e semi-inundado, tendo só animais escassamente antropomorfizados por protagonistas, liderados por um gato, e contado apenas pela imagem e pela música, Flow — À Deriva é tão deslumbrante como sereno, uma história intemporal de amizade e entreajuda, e uma fábula de contornos oníricos sem peso de mochila moralizante.

Black Bag
De Steven Soderbergh

https://www.youtube.com/watch?v=Du0Xp8WX_7I

Escrito por David Koepp, Black Bag é três partes John Le Carré e uma parte James Bond, com pozinhos de Tom Clancy. Uma agente secreta inglesa é suspeita de traição, e o seu marido é envolvido no caso. Mas há mais quatro suspeitos, todos eles colegas, e visitas de casa. Steven Soderbergh assina um superior divertimento de espionagem, dobrado de elogio do casamento perfeito. Michael Fassbender, Cate Blanchett, Tom Burke, Naomie Harris e Pierce Brosnan (este a virar 007 pelos fundilhos) fazem – e muito bem – o resto.

Siga a Banda!
De Emmanuel Courcol

https://www.youtube.com/watch?v=eb5F48dpjmQ

O cinema francês ainda consegue fazer filmes populares que não transigem com a qualidade, e são aplaudidos por espectadores e crítica. Siga a Banda! é a história do encontro de dois irmãos que não se conheciam e que tudo separa, menos o amor à música: um é um famoso maestro parisiense, o outro mora numa vila mineira e toca trombone na banda local. Uma comédia dramática que junta, através dos dois protagonistas, a França urbana e a França profunda, Beethoven e Aznavour, Ravel e Dalida, Mozart e Lee Morgan.

O Ano Novo que não Aconteceu
De Bogdan Muresanu

https://www.youtube.com/watch?v=Xj_gHuAf8r8

A queda do regime totalitário romeno de Nicolae Ceausescu, perto do Natal de 1989, é brilhante e inventivamente revisitada nesta fita “coral” do estreante Bogdan Muresanu, que segue um punhado de personagens que não se conhecem ou vivem perto umas das outras em Bucareste, e cujos percursos se cruzam então, acabando uma delas até por participar no derrube do ditador comunista. O filme mostra ainda como era a vida quotidiana num dos mais lúgubres e repressivos regimes do antigo Bloco de Leste.

Vermiglio
De Maura Delpero

https://www.youtube.com/watch?v=701RfY55ppQ

A Vermiglio do título é uma remota aldeia montanhosa de Itália na qual se refugiam, em 1944, dois desertores. Um deles vai envolver-se com a filha mais velha do professor primário local. Esta fita pastoral e regionalista de Maura Delpero é reminiscente do cinema de Ermanno Olmi e dos irmãos Taviani (mas sem a carga político-social deste), na sua descrição pausada, pormenorizada e emocionalmente recatada de um microcosmos local; e, dentro deste, da vida de uma família em que cada membro representa um subenredo da história humana maior que é contada.

Verdades Difíceis
De Mike Leigh

https://www.youtube.com/watch?v=gFuEZfZUKIk

Marianne Jean-Baptiste interpreta a pessoa mais desagradável do mundo em Verdades Difíceis, uma dona de casa londrina chamada Pansy cheia de azedume, fobias e pequenas paranoias, e que embirra com tudo e todos, desde estranhos na rua ou nas lojas até aos massacrados marido e filho. Já Michelle, a sua irmã, cabeleireira e mãe solteira de duas raparigas modelares, é o oposto de Pansy. O trabalho intenso com os atores, a mestria verbal e o naturalismo grudado ao real de Mike Leigh voltam a operar maravilhas.

Cão Preto
De Guan Hu

https://www.youtube.com/watch?v=Izd93D6r-eY

Nas vésperas do Jogos Olímpicos de Pequim de 2008, um homem volta, após 10 anos na prisão, à sua decadente cidade natal no noroeste da China, que vai ser parcialmente arrasada para se construírem fábricas. Só arranja emprego a apanhar cães, acabando por ficar com um cão preto que ninguém conseguia capturar. Guang Hu filma, com uma câmara de vistas rasgadas, esta história de companheirismo e lealdade entre um homem e um cão, e a dura e feia realidade por trás da propaganda otimista e estridente do Estado chinês.

Com a Alma na Mão, Caminha
De Sepideh Farsi

https://www.youtube.com/watch?v=s05Gqkhtg9k

A realizadora iraniana Sepideh Farsi usou imagens das suas inúmeras conversas por videochamada com Fatma Hassouna, uma fotógrafa palestiniana de 25 anos retida em Gaza, e fotos aqui tiradas por esta, para fazer Com a Mão na Alma, Caminha, um documento sem par sobre o que significa estar prisioneiro, indefeso e a sobreviver precariamente numa zona de guerra, e em que cala fundo a inabalável comunicabilidade e jovialidade de Fatma, mesmo debaixo de fogo. Ela e quase toda a família foram mortos em Abril por dois mísseis, enquanto dormiam.

Nouvelle Vague
De Richard Linklater

https://www.youtube.com/watch?v=UufRzKVFseg

A génese e a mirabolante rodagem de O Acossado, de Jean-Luc Godard, filme-azimute fulcral da Nova Vaga francesa, como se lá estivéssemos. A preto e branco, com atores que são a cara chapada dos seus modelos e recriando microscopicamente a Paris de então, Richard Linklater conta, do lado de dentro, a jubilatória aventura daquelas filmagens em roda livre, espontaneidade e improvisação, tira o chapéu e faz uma vénia à geração que deu uma valente sacudidela no cinema francês e na Sétima Arte, e capta o ambiente, a vibração, a paixão e o ímpeto criativo de uma época única.

UMA INTERPRETAÇÃO PARA A HISTÓRIA:

Mariane Jean-Baptiste
Em Verdades Difíceis, de Mike Leigh

Revelada por Mike Leigh em Segredos e Mentiras (1996), Marianne Jean-Baptiste volta a ser dirigida por ele em Verdades Difíceis no papel de Pansy, uma dona de casa e mãe londrina, e a pessoa mais detestável do mundo, toda ela raiva, agressividade e azedume, um jato contínuo de bílis apontado ao mundo e quantos andam nele, conhecidos ou estranhos. Marianne Jean-Baptiste é extraordinária de intensidade amargurada, de crispação obsessiva e de auto-piedade crónica, cumprindo à letra o que Leigh quis que Pansy fosse: um ser humano exasperante e complicado, e difícil de explicar e decifrar, e nunca um mero cliché de negatividade ambulante e de desesperança crónica, a pedinchar a nossa simpatia e a nossa piedade.

A DESILUSÃO DO ANO:

Batalha Atrás de Batalha
De Paul Thomas Anderson

No livro de 1990, Vineland, Thomas Pynchon exprime a execração pela “repressão fascista” dos tempos de Richard Nixon, pela “América Republicana” e por Ronald Reagan (a história passa-se na Califórnia, em 1984). Paul Thomas Anderson inspirou-se em Vineland para rodar Batalha Atrás de Batalha e transporta essa execração para a era Trump. Mas o filme é politicamente primário e infantil, dramaticamente carnavalesco e cinematograficamente destrambelhado, expressando o desconcerto e atarantamento da Hollywood “liberal” perante a situação nos EUA, e o seu enorme desfasamento com a realidade. E uma colossal dissipação do talento de Anderson.

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Francisco Ferreira

OS DEZ MELHORES FILMES DE 2025:

Tardes de Solidão
De Albert Serra

https://www.youtube.com/watch?v=MH3DHcAHy54

Corrijam as sinopses: não é um documentário sobre o mundo dos touros, antes uma experiência cinematográfica sobre a sua transcendência, com tudo o que nela há de encanto e expessividade, nos rituais, no fascínio pela morte e na sua relação com a arte. Serra tirou o máximo proveito de técnicas apuradas pelo seu cinema nos últimos vinte anos. E criou um feitiço, que tanto atrai pela beleza como pelo atavismo bestial. É o monumental filme da tauromaquia de todos os tempos.

Juventude
De Wang Bing

https://www.youtube.com/watch?v=ozSQSIWJAfQ

Entre 2014 e 2019, Wang Bing filmou centenas de horas de histórias comuns a milhares de jovens operários chineses da indústria têxtil de Zhili, a 150 quilómetros de Xangai. É um quotidiano infernal de máquinas de costura que martelam sem fim, com sinistras relações entre migrantes e patrões e gente à espera que algo de novo se abra no horizonte. Muitos acabam por retornar às origens. Um filme de 10 horas, em três partes, à altura do maior cronista do seu país.

Foi Só Um Acidente
De Jafar Panahi

https://www.youtube.com/watch?v=nF04v-ze2Yc

O que acontece quando um homem reconhece num condutor acidentado, pai de família igual a tantos outros, com filha e mulher grávida, o torcionário que o brutalizou na prisão? Um plano de vingança começa então a ser equacionado — e a vingança cega. Mas o novo trabalho de Panahi, que tem a sabedoria dos justos, rechaça a revanche. É antes um exame de consciência colectiva com um momento de teatralização inolvidável, capaz de provar que, na desforra, não há qualquer triunfo.

O Riso e a Faca
De Pedro Pinho

https://www.youtube.com/watch?v=OrQ9NB_jGck

Um jovem engenheiro ambiental português, pouco seguro de si, parte para trabalhar na Guiné-Bissau, deparando-se com pessoas e situações pelas quais constata que o imperialismo, a civilização europeia e a ideia da superioridade branca continuam a dominar África. Durante a descoberta, a personagem espelha naquele continente as suas próprias contradições. O colonialismo está na cabeça e não terminou, diz-nos este filme complexo que nos implicou a todos. Uma das revelações do ano.

Misericórdia
De Alain Guiraudie

https://www.youtube.com/watch?v=_wk2SgBIoF4

É a história de um homem que regressa à província natal e se enreda nos favores de uma viúva e na gravidade de um crime sem castigo, “abençoado” pelo pároco local em troca de afectos. Filme católico e blasfemo em simultâneo, rodado por um ateu fascinado pela mitologia e pelas grandes preocupações morais do ser humano, Misericórdia resultou de um período criativo muito fértil de Alain Guiraudie como cineasta e romancista (ele também escreve admiravelmente).

O Agente Secreto
De Kleber Mendonça Filho

https://www.youtube.com/watch?v=AHMdF9KTBnY

Aqui se escreveu que O Agente Secreto, um dos filmes que moldaram este 2025, aprofundou todos os aspetos temáticos de uma obra una, coerente, centrada num local específico — a cidade-natal do Recife como base de observação do mundo. O Agente Secreto jamais existiria sem os filmes anteriores de KMF e impõe-se a todos eles, sob todas as perspectivas, da inventiva do guião e do valor das actuações (Wagner Moura em estado de graça), à extraordinária rede de secundários, figurinos, banda-sonora… Um rasgo de entusiasmo.

Laguna
De Sharunas Bartas

https://www.youtube.com/watch?v=bn8qTdVgreM

Nenhuma dor para Sharunas Bartas se equipara à da perda da filha mais velha, Ina Marija (fruto da relação com Yekaterina Golubeva), quatro anos antes, vítima de um estúpido atropelamento em Vilnius. Acompanhado de Una, a filha mais nova, viajou o lituano aos trópicos da Laguna Ventanilla mexicana em que Ina passou o seu último verão, pouco antes de morrer. Em ano de 2025 duplamente magoado (o cineasta já havia apresentado Back to the Family), apareceu Laguna, que nos pergunta como pode um cineasta dar expressão ao luto, com uma franqueza pungente.

Verdades Difíceis
De Mike Leigh

https://www.youtube.com/watch?v=gFuEZfZUKIk

Não houve filme mais contra a corrente, mais provocador dos arautos da programação e exibição que, cegos e vaidosos, o desprezaram, privando-o dos maiores palcos. Mas Mike Leigh a todos deu lição cabal com esta afiada peça de câmara em torno de uma família dos subúrbios de Londres, dominada por uma matriarca irascível (que grande é Marianne Jean-Baptiste). “Estas personagens não são ideias artísticas extravagantes. Nem têm que seguir uma doutrina, alimentar uma moda (…) São simplesmente seres humanos” (Leigh dixit).

Sirât
De Oliver Laxe

https://www.youtube.com/watch?v=ww-IXHXvS70

Foi um caso sério de 2025 pelas perplexidades que gerou, com discussões ainda vivas entre quem prognostica uma entrada de Sirât na história e quem o trata de farsa oportunista. Laxe não provocou esses extremos embora tenha corrido riscos de monta — o sacrifício a meio da jornada de uma personagem inocente — com um filme alucinado e febril, incómodo como encara a morte, dado à alegoria e adverso à intelectualização. Em momento algum é filme que nos peça para ser levado à letra.

A História de Souleymane
De Boris Lojkine

https://www.youtube.com/watch?v=Rbs53_uMw9o

É a história de um guineense em Paris que pedala sem parar, dia e noite, numa azáfama constante. Estafeta, chegou de Conacri sem documentos. Está a 48 horas da entrevista que analisará o seu pedido de asilo. Pela primeira vez, um filme europeu deu protagonismo e ponto de vista ao que Souleymane representa: uma nova vaga de escravos do “capitalismo digital” que serve o Ocidente em miseráveis condições de vida e de trabalho.

(Faltam a esta lista dois filmes fundamentais de 2025 que, por caprichos de distribuição, não chegaram ainda às salas portuguesas: “Yes”, de Nadav Lapid e “Mektoub, My Love: Canto Due”, de Abdellatif Kechiche.)

UMA INTERPRETAÇÃO PARA A HISTÓRIA:

Ethan Hawke
Em Blue Moon, de Richard Linklater

Na preparação do Festival de Berlim 2025, pedi informações sobre a obra de Linklater que antecedeu Nouvelle Vague ao publicista, que nestes modos arrumou a conversa: “Nunca chegará às salas.” Mas na competição da Berlinale, Blue Moon foi um expoente, muito graças à performance extraordinária de Ethan Hawke na pele do compositor Lorenz Hart (1895-1943), em papel — contou o ator — que “é preciso uma vida inteira para lá chegar”. Dez meses depois, Hawke está nomeado para os Globos de Ouro por Blue Moon. Chegará por aqui à sua sexta nomeação para os Óscares?

A DESILUSÃO DO ANO:

Batalha Atrás de Batalha
De Paul Thomas Anderson

A léguas da ironia de Jogos de Prazer, da radiografia histórica de Haverá Sangue, da astúcia de Linha Fantasma, PTA retratou desta vez a América com receitas que nunca antes experimentara: a fanfarra e o espalhafato. Politicamente, Batalha Atrás de Batalha é um filme confuso e estéril, deturpando os pesadelos de Pynchon com revoluções de anedotário, irrelevantes como o “boneco” caricatural de Sean Penn. Não é apenas o pior filme de PTA. Face aos méritos e historial do cineasta, é a deceção do ano.

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Joana Moreira

OS DEZ MELHORES FILMES DE 2025:

Foi só um Acidente
De Jafar Panahi

https://www.youtube.com/watch?v=nF04v-ze2Yc

Palma de Ouro em Cannes, o filme do iraniano Jafar Panahi conta a história de Vahid, um mecânico e ex-preso político que acredita reconhecer, na sua oficina num bairro dos subúrbios de Teerão, o guarda que o torturou anos antes. Decide raptá-lo e enterrá-lo vivo. Mas será mesmo ele ou estará a cometer uma injustiça? Ao acompanhar este processo (a dúvida, a procura de provas, o confronto com um sistema repressivo) Panahi expõe o Irão contemporâneo sob a violência do Estado. Tudo isto ao sabor de um road movie com inesperados momentos de humor e um grande final.

O Agente Secreto
De Kleber Mendonça Filho

https://www.youtube.com/watch?v=AHMdF9KTBnY

Não é um filme documental, mas é um retrato do Brasil em 1977, durante o governo de Ernesto Geisel. Este thriller de Kleber Mendonça Filho brinca com mitos e verdades ao narrar a história de Marcelo (Wagner Moura), um homem que regressa à cidade natal, Recife, um reencontro com o filho após a morte da mulher, apenas para descobrir que há quem o queira matar. Se Ainda Estou Aqui começou, O Agente Secreto consolida o estado de graça do cinema brasileiro a revisitar o período da ditadura, neste caso, ampliando o foco, abrindo-nos o olhar. São quase três horas que passam a voar.

The Voice of Hind Rajab
De Kaouther Ben Hania

https://www.youtube.com/watch?v=hrssPpqv6vc

Um filme devastador e urgentíssimo aquele em que a realizadora tunisina Kaouther Ben Hania recorda a tragédia de uma criança palestiniana de seis anos que esteve ao telefone com a equipa da Crescente Vermelho enquanto a sua família era abatida por disparos israelitas. A história é verídica e a voz que se escuta no filme também. O resultado é uma obra de uma empatia radical. Mais do que um murro no estômago, é um grito cinematográfico que dá dignidade a uma realidade que o mundo não pode ignorar.

Sirât
De Oliver Laxer

https://www.youtube.com/watch?v=ww-IXHXvS70

Um pai perdido na dor atravessa o deserto marroquino com o filho menor em busca da filha desaparecida que terá sido vista pela última vez numa das muitas raves que ali acontecem. Nesse percurso, o encontro com nómadas do techno precipita a história num road movie até ao fim do mundo, embalado por imagens e sons que se infiltram como areia nos ossos. É um filme de choque e dizer mais seria quebrar o impacto de Sirât, um assombro que se deve ver quase às cegas, como quem avança à beira de um precipício sem saber quando o chão falha. Porque vai falhar.

Batalha Atrás de Batalha
Paul Thomas Anderson

https://www.youtube.com/watch?v=feOQFKv2Lw4

Este épico de três horas sobre um grupo de antigos revolucionários que se reúne para resgatar a filha raptada por um velho inimigo alista-se como um dos favoritos a limpar os Óscares na América de Trump sem uma oposição revolucionária para o combater. Naturalmente, está a ser criticado por conservadores insuspeitos por ser um “panfleto político”, um “filme woke” e “de esquerda”. O que diz muito sobre uma obra cujo título sugere precisamente uma guerra (cultural, também) interminável. Que venha a revolução. De Paul Thomas Anderson, claro.

Tardes de Solidão
De Albert Serra

https://www.youtube.com/watch?v=MH3DHcAHy54

Andrés Roca Rey, toureiro peruano de 28 anos, uma espécie de rockstar da tauromaquia, abre as portas ao realizador catalão Albert Serra, dando-lhe acesso a tudo: o vestir, a espera, a respiração ofegante, o confronto com o animal, a morte da criatura, o silêncio que se segue à aclamação, o despir que revela ligaduras encharcadas de sangue. Andrés não terá gostado do filme, que é tudo menos sobre triunfo e tudo mais sobre o espetáculo cerimonial de violência que acontece na arena. O touro olha para nós neste documento que faz isso mesmo: documenta, não tomando partido e permitindo ao espectador tirar a conclusão que bem entender. Perturbador para uns, sedutor para outros, mas um grandioso documentário.

A História de Souleymane
De Boris Lojkine

https://www.youtube.com/watch?v=Rbs53_uMw9o

Um estafeta guineense em Paris pedala incansavelmente para entregar refeições enquanto tenta reunir forças e tempo para uma entrevista decisiva sobre a sua legalização enquanto imigrante no país. Sem discursos fáceis nem sentimentalismo, o cinema de Lojkine devolve rosto, corpo e dignidade a quem costuma ser reduzido a números. Foi um dos primeiros grandes filmes de 2025, um gesto profundamente político que deu frutos. Isto porque A História de Souleymane é também a de Abou Sangare, o protagonista da ficção, também ele a lutar pela sua legalização. Guineense como Souleymane, chegou a França sem papéis e só depois do sucesso do filme recebeu autorização de residência.

Urchin
Harris Dickinson

https://www.youtube.com/watch?v=xUnNNwA4MiA

A estreia de Harris Dickinson (ator que conhecemos de Triângulo da Tristeza ou, mais recentemente, Babygirl) na realização é um retrato profundamente humano sobre o ciclo vicioso da dependência, ancorado numa grande interpretação de Frank Dillane como Mike, um sem-abrigo toxicodependente que tenta recomeçar a vida em Londres após sair da prisão. Longe de uma narrativa redentora, o filme expõe a facilidade quase banal com que alguém regressa aos comportamentos autodestrutivos, moldado pela vergonha e pelas circunstâncias sociais que o cercam.

On Falling
De Laura Carreira

https://www.youtube.com/watch?v=hMlBMSdU7IY

Aurora, emigrante portuguesa na Escócia empregada num armazém logístico, não é exatamente uma jovem. Terá trinta e muitos, mas continua a viver numa casa partilhada. Tem um emprego monótono, solitário e mal pago. Com reminiscências da filmografia de Ken Loach, a portuguesa Laura Carreira dá-nos um filme-denúncia sobre o impacto psicológico da precariedade laboral, com rigor e contenção. Soberbo é também o trabalho da atriz protagonista, Joana Santos.

A Semente do Figo Sagrado
De Mahommad Rasoulof

https://www.youtube.com/watch?v=nbKLGsf1Syg

Enquanto os protestos contra um governo autoritário aumentam no Irão, um juiz tenta cumprir ordens e manter o seu posto. Mas quando a arma que lhe foi confiada desaparece, passa a desconfiar da mulher e das filhas. A revolta nas ruas e as perguntas das mulheres (heroínas que desobedecem ao patriarcado) instalam a paranoia. Uma obra maior de Mohammad Rasoulof que retrata o declínio moral do Irão — e que envolveu uma fuga do realizador, condenado por um “tribunal revolucionário” a oito anos de prisão.

UMA INTERPRETAÇÃO PARA A HISTÓRIA:

Cleo Diára
Em O Riso e a Faca, de Pedro Pinho

Impossível ver o novo filme do realizador português Pedro Pinho sem fixar um nome do elenco: Cleo Diára. A atriz, que tem vindo a brilhar nos palcos do teatro, revela-se aqui um portento no diálogo com a câmara. No filme, Diára é uma habitante numa metrópole da África Ocidental que não se subjuga às dinâmicas neocoloniais da comunidade de expatriados. A atriz combina força e subtileza na interpretação desta mulher profundamente livre, cuja presença desafia e transcende os estereótipos.

A DESILUSÃO DO ANO:

Depois da Caçada
De Luca Guadagnino

Uma professora da Universidade de Yale vê-se confidente de uma aluna que acusa um professor de má conduta sexual. Se, por um lado, a alegada vítima é uma aluna sua protegida, por outro, o colega é mais do que um colega. A intenção de Luca Guadagnino de fazer uma sátira do ambiente universitário norte-americano ou dos supostos excessos da era #MeToo tem o seu mérito. Mas é tal o desejo de querer espelhar a contemporaneidade que Depois da Caçada fica preso numa obsessão pelo seu próprio sentido de relevância. O privilégio e a ostentação de ter Yale como cenário dá-nos um figurino de luxo, mas pouco mais há de notável. À falta de melhor expressão, é um filme try hard, mas que falha ao alvo. Salvam-se os blazers.