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(A) :: 40 professores ficaram impedidos de lecionar este ano. Dizem ter sido "induzidos em erro" pelos serviços do Ministério da Educação

40 professores ficaram impedidos de lecionar este ano. Dizem ter sido "induzidos em erro" pelos serviços do Ministério da Educação

Erros nas candidaturas aos quadros do Estado levaram professores com formação em ensino a ficar sem trabalho este ano. Querem lecionar, mas não lhes é permitido — e culpam o Ministério da Educação.

Mariana Marques Tiago
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Apesar de continuarem a faltar professores no ensino público, só este ano letivo quase 40 docentes com formação em ensino ficaram impedidos de lecionar durante um ano. Em causa está o concurso externo de vinculação, que permite entrar para os quadros do Estado. Em abril, vários professores de norte a sul do país apresentaram a sua candidatura, mas acabaram excluídos. Os docentes culpam os serviços do Ministério da Educação: dizem que lhes deram informações pouco precisas que os “induziram em erro” no momento da inscrição e que as candidaturas foram mal avaliadas. Questionado pelo Observador, o Ministério da Educação não respondeu.

Sónia Campos é professora de 1.º ciclo há 26 anos. O seu grupo de recrutamento — o 110 — é um dos que tem registado maior falta de professores atualmente. Apaixonada pela sua profissão, Sónia conta que no agrupamento onde lecionou até ao último ano, “faltavam três professores de 1.º ciclo”. “Este ano, eu, em vez de estar a trabalhar e de já estar efetiva, estou neste momento desempregada.”

https://observador.pt/especiais/professores-do-pre-escolar-e-1-o-ciclo-em-fuga-fazem-formacoes-em-educacao-especial-e-concorrem-a-outros-ciclos-de-ensino/

Desde setembro (quando se iniciou o ano letivo) que a professora diz tentar mudar a situação em que se encontra, mas até agora não teve sucesso. “Já fiz um recurso hierárquico ao Ministério da Educação. Entretanto já passaram os 90 dias e não tive resposta. O meu sindicato disse que, se quisesse, podia interpôr uma ação em tribunal por já ter passado o prazo. Era legítimo fazê-lo, mas não é possível porque agora tenho uma penalização [naquilo que recebe mensalmente].”

Tudo começou com o concurso externo de vinculação, que decorreu entre 24 de março e 2 de abril de 2025. “Este ano concorri para vincular [entrar nos quadros do Estado] e perguntei no E72 se era obrigatório concorrer ao país inteiro”, explica Sónia, referindo-se à aplicação eletrónica disponível no portal SIGRHE (gerido pela quase extinta Direção-Geral da Administração Escolar) e que tem como objetivo esclarecer as dúvidas dos docentes.

“Foi-me dito que não era necessário, mas que a quantos mais sítios concorresse, maior a probabilidade de vincular“. A resposta do Ministério da Educação levou Sónia a inferir que seria suficiente candidatar-se aos concelhos que mais desejava: “Concorri a todo o concelho de Sintra e de Lisboa. Mas não concorri ao QZP [Quadro de Zona Pedagógica] 45 — o de Lisboa — todo.” E foi precisamente este o seu erro, diz.

"Estamos em casa e estão a pagar-nos para não fazer nada. Estou a viver do subsídio de desemprego"
Miguel Freire, professor de Física e Química

A 12 de junho, quando foi publicada a lista final com os resultados, a professora constatou que não tinha ficado vinculada. “Achei estranho não ter ficado, por isso falei com o meu sindicato, que disse que, para garantir a vinculação tinha de ter concorrido a todo o QZP de Lisboa.” Na nota informativa divulgada sobre este concurso lia-se apenas que os candidatos deviam “manifestar preferências pelo maior número de códigos de QZP, de concelhos e de Agrupamentos de Escola/Escolas não Agrupadas, de forma a garantir a sua colocação no concurso”.

Sónia Campos alega que se tratou tudo de um “equívoco formal” influenciado pela resposta que obteve da DGAE e garante que nunca teve “intenção de incumprir” a lei.

Mas não ficou por aqui. O seu caso agravou-se devido à “norma-travão”, uma lei introduzida em 2014 pelo ministro Nuno Crato, durante o governo de Passos Coelho, que obriga os professores a entrar para os quadros do Estado após três contratos completos seguidos, como era o caso de Sónia. Simplificando: se celebrou três contratos seguidos com o Estado e lecionou horários completos, tinha obrigatoriamente de passar a pertencer aos quadros. Ao ser excluída do concurso pelo tal equívoco, entrou em incumprimento.

“Quem não consegue vínculo estando obrigado a isso é penalizado. A penalização é não poder concorrer a um novo concurso, ou seja, não poder celebrar um contrato com o Ministério da Educação nesse ano”. Quem o explica é a professora Maria Santos (nome fictício). Está precisamente na mesma situação que Sónia Campos.

Maria foi excluída por cumprir indicações da tutela

As duas professoras não se conhecem pessoalmente, mas conhecem perfeitamente o caso uma da outra. Tudo graças ao grupo de WhatsApp entretanto criado e que se baseia na lista enviada pelo Ministério da Educação com o nome de todos os professores excluídos do concurso. Neste grupo estão reunidos os 38 docentes afastados e é onde expõem os seus casos, pedem conselhos a colegas que estão a passar pelo mesmo e decidem, em conjunto, formas de ação.

Quando abriu o concurso, em abril, Maria não tinha a certeza se reunia todas as condições necessárias para concorrer aos quadros do Estado ao abrigo da norma-travão (que a obrigava a vincular) ou não. Por isso decidiu lançar a pergunta “na plataforma da DGAE”, a mesma a que Sónia recorreu.

“A resposta dada levou-me a interpretar que a minha candidatura não devia ser feita pela norma-travão, por isso concorri ao abrigo da vinculação dinâmica [um procedimento concursal que não obriga o docente a entrar nos quadros]. Fiz o concurso normalmente, com opções diferentes do que se concorresse pela norma-travão porque nesta segunda opção, se não vinculasse, ficaria excluída do ensino um ano”.

Quando são publicadas as listas definitivas, Maria constata que não tinha ficado colocada nos quadros, mas uma vez que a sua candidatura não a obrigava a tal, mas não se preocupou. O problema veio mais tarde, quando se apercebeu que afinal a indicação da DGAE não tinha sido explícita: Maria tinha, obrigatoriamente, de se candidatar ao abrigo da norma-travão e entrar, obrigatoriamente, nos quadros do Estado. Como não o fez, ficou impedida de lecionar durante o ano letivo.

Maria Santos diz que esclarecimento da DGAE foi "ambíguo". "A DGAE induziu-me em erro."

A professora só se apercebeu de tudo isto a 15 de agosto, depois de um colega ter mencionado, no grupo de WhatsApp, que a plataforma da DGAE tem um espaço de notificações. Maria abriu a plataforma e “estava lá colocada uma notificação de reclamação de 9 de junho”.

Na notificação “diz que a minha candidatura tinha sido novamente verificada [após uma primeira validação] e que mudavam o artigo ao abrigo do qual eu tinha concorrido, porque consideravam que o número de contratos que já tinha feito me obrigava à norma-travão. Ao fazerem esta alteração, mudaram todo o meu concurso. E é aí que fico a saber porque é que estou excluída”, explica. Isto significa que, na ótica da DGAE, Maria Santos tinha de se candidatar ao abrigo da norma-travão por já ter três contratos anuais completos com o Estado e entrar obrigatoriamente nos quadros, algo que não aconteceu.

A professora só teve conhecimento desta notificação um mês e seis dias depois de ser colocada no seu perfil da plataforma do Estado. E, apesar de agora assumir que pode ter “interpretado mal a informação da DGAE”, Maria relata que a resposta que lhe foi dada sobre a forma como se devia candidatar “foi ambígua”. “A DGAE induziu-me em erro.”

Miguel foi excluído por não cumprir os requisitos que o próprio dizia não ter

No grupo de WhatsApp onde estão Maria Santos e Sónia Campos, está também Miguel Freire, professor de Física e Química (grupo de recrutamento 510). O docente sabia desde o início que não podia concorrer aos quadros do Estado ao abrigo da norma-travão por um motivo simples: não tinha os requisitos necessários.

“A lei diz que temos de ter três contratos completos [1.095 dias], mas eu faltei um dia e não justifiquei a falta. Por isso, no meu caso, não tenho este requisito, e não podia concorrer ao abrigo da norma-travão“, explica.

O professor apresentou, então, uma candidatura sem recorrer a essa lei. E se na lista provisória inicialmente apresentada não havia “nenhuma indicação em como violava fosse o que fosse”, conta Miguel, a situação alterou-se aquando da publicação da lista definitiva. “Estava na lista dos excluídos por ter violado a norma-travão, à qual  eu nem podia sequer concorrer. Eu assinalei que não tinha as condições necessárias para concorrer na norma-travão, a minha escola validou o meu processo e depois recebo esta informação [da DGAE].”

O motivo pelo qual o professor acabou excluído do concurso está ainda por esclarecer, diz. “Fiz essa mesma pergunta na plataforma: ‘Qual a razão para me terem excluído do processo uma vez que não reunia as condições e que o reconhecia'”, mas até ao momento não obteve uma resposta, tendo o Ministério da Educação explicado apenas que o caso está ainda em análise.

"Quem não consegue vínculo estando obrigado a isso é penalizado. A penalização é não poder concorrer a um novo concurso"
Maria Santos (nome fictício), professora

Até a situação ficar resolvida, Miguel Freire (tal como os restantes excluídos), não pode trabalhar no ensino público. “Estamos em casa e estão a pagar-nos para não fazer nada. Estou a viver do subsídio de desemprego, nem sequer posso concorrer a ofertas de escola“, lamenta.

As contratações de escola dependem das necessidades que cada escola ou agrupamento tem. O diretor coloca à disposição horários por preencher em determinados grupos de recrutamento, aos quais se podem candidatar professores que ainda não estão nos quadros ou professores sem formação em ensino (ou seja, com habilitação própria). As vagas que são disponibilizadas em ofertas de escola são as vagas sobrantes dos concursos gerais.

Neste momento, Miguel Freire não vê como opção tentar candidatar-se a estas ofertas por um simples motivo: se o fizer e por acaso for selecionado, o diretor do agrupamento ou escola não agrupada vai ser alertado para o facto de o professor ter sido excluído por violar a norma-travão, pelo que não pode ser selecionado.

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Escola lançou mesma vaga cinco vezes e continua vazia: Ana é sempre a única candidata

Ana Silva tem uma visão diferente. A professora de educação pré-escolar (grupo de recrutamento 100) e educação especial (grupo de recrutamento 910) também ficou excluída do concurso de abril, mas mesmo assim não desistiu de se candidatar às ofertas de escola.

Quando apresentou a sua candidatura à vinculação, dois dias depois do fim do concurso — quando este estava no prazo de reclamação — a professora apercebeu-se que tinha preenchido mal a candidatura.

“Ao colocar as minhas preferências pus só agrupamentos de vários concelhos e não me candidatei a nenhum QZP. Apercebi-me disso e enviei logo email na plataforma da DGAE a questionar se podiam dar-me acesso para corrigir. Disseram que não, que era inalterável”, conta. Por isso mesmo, acabou por ser excluída do concurso e, ao não conseguir vincular, foi também impedida de lecionar durante um ano como punição.

Perante a impossibilidade de trabalhar, decidiu concorrer à oferta de escola “porque nada na lei dizia que não o podia fazer”. “Concorri a várias [escolas]. Em certas escolas tenho sido a única candidata e mesmo assim a escola não me pode selecionar. Aparece logo um aviso.”

Mesmo sabendo que as candidaturas dificilmente terão outro desfecho, a professora continua a insistir, também para chamar a atenção dos diretores, afirma. “Em pelo menos um agrupamento, no QZP 41 [ao qual pertence Bombarral, Cadaval, Lourinhã, Óbidos e Peniche], tenho sido a única candidata. O mesmo horário já foi lançado cinco vezes desde outubro e ninguém concorre.”

"Em pelo menos um agrupamento [a que me candidatei], tenho sido a única candidata. O mesmo horário já foi lançado cinco vezes desde outubro e ninguém concorre"
Ana Silva, professora de Educação Pré-Escolar e Educação Especial

Ministério em silêncio. Professora pondera seguir para tribunal

Ana Silva avançou com um recurso hierárquico para o Ministério da Educação a 22 de agosto (e enviou emails para o gabinete do ministro da Educação e da secretária da Administração Escolar); e Sónia Campos e Miguel Freire avançaram a 21 de agosto. Até ao momento, nenhum deles obteve uma resposta que não diga apenas que têm de aguardar que o caso seja avaliado.

A exceção foi Maria Santos, a única dos quatro professores ouvidos pelo Observador que obteve uma resposta. No recurso que apresentou, a professora escreveu que “a tutela respondeu de forma inequívoca”, induzindo-a em erro no ato da candidatura ao concurso.

E perguntou ainda porque é que, numa primeira fase, a candidatura foi validada, sendo depois rejeitada, mesmo tendo seguido as indicações dadas pela DGAE. Além disso, “a notificação [colocada na plataforma da DGAE] não foi eficaz”, referiu ainda. “Não tive conhecimento da minha situação em tempo útil, não houve sequer um email, uma sinalização na plataforma. Não há qualquer sinal de uma notificação”.

https://observador.pt/2025/10/22/um-em-cada-tres-professores-queixa-se-de-aumento-de-burocracia-nas-escolas/

O Ministério da Educação respondeu à docente há menos de um mês, dia 25 de novembro: “Alegam que eu devia ter reclamado logo em junho [quando a notificação deu entrada na plataforma] e não respondem a nenhum dos meus argumentos. Dizem que a DGAE considera que estou abrangida pelo artigo da norma-travão, mas esta nem sequer foi a resposta da DGAE.”

Depois da resposta que o Ministério da Educação lhe deu ao recurso hierárquico, Maria Santos enviou emails diretamente à tutela e à DGAE. E enviou ainda”uma reclamação para a Provedoria da Justiça na tentativa de me sentir mais apoiada”. Se nada tiver efeito, partilha, “a opção é avançar para a impugnação judicial do ato, ou seja, seguir para tribunal”. “Neste momento considero essa opção.”

O Observador questionou o Ministério da Educação sobre estes casos e sobre uma possível reavaliação dos mesmos, responsabilizando a DGAE. Contudo, a tutela não respondeu às perguntas do Observador em tempo útil.

(Texto alterado às 06h40 para correção sobre o ministro Nuno Crato)