Mais do que apontar o absolutismo de um (impossível?) melhor livro, as listas de final de ano têm o dom de nos levar onde ainda não fomos. Jornalistas, críticos e colaboradores habituais do Observador reviram um ano de leituras e escolheram títulos que, decididamente, marcaram o 2025 literário e o lugar de cada um destes leitores — ficção ou não-ficção, exercícios literários de exímio esforço e dedicação, romances de estreia, biografias ou banda desenhada. O retorno equivale à amplitude do mundo escrito. Sorte a nossa.
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Alexandre Borges
Se Eu Quisesse, Enlouquecia – Biografia de Herberto Helder
João Pedro George
(Contraponto Editores)
São quase 900 páginas de investigação — verdadeiramente — exaustiva; um compromisso de tempo com a leitura de que não se vai arrepender por um só minuto. Andou Helder a esconder-se toda a vida, a recusar fotografias, entrevistas, prémios e presenças, para João Pedro George agora o descobrir, inteiro. Sem tirar os olhos do seu assunto, sem se perder em digressões históricas ou qualquer laivo de deslumbramento perante tamanho protagonista. Obrigatório.
Cada um Por Si e Deus Contra Todos – Uma Autobiografia
Werner Herzog, tradução de Mário Prado Coelho
(Zigurate)
Outra das melhores coisas que nos aconteceu em 2025: o luxo de ter nas mãos o relato da fabulosa vida de Werner Herzog escrito pelo próprio. Dos familiares nazis e da infância numa Alemanha paupérrima, devastada e humilhada do pós-guerra, aos sonhos para os filmes ainda por fazer, atravessando mais de 50 anos e 70 produções. Herzog é não só um dos maiores cineastas vivos; é um pensador e escritor singular, cru e, ao mesmo tempo, estranhamente otimista.
Condenação
Pedro Almeida Maia
(Cultura Editora)
A emigração açoriana é uma arca de histórias extraordinárias de que Pedro Almeida Maia tem sido o mais recente e notável cultor. Depois de Ilha-América e A Escrava Açoriana, Condenação inspira-se no polémico caso Sacco-Vanzetti para nos levar pela América do tempo da lei seca, à boleia (e quantas vezes em fuga) com Salvador Silver, um atormentado gangster açoriano. Um filme à espera de acontecer.
Léah e Outras Histórias
José Rodrigues Miguéis
(Assírio & Alvim)
Não é fácil perceber que desígnios levam às canonizações em literatura. Uns ficam com as homenagens, nomes de ruas, estátuas, prémios, reedições; outros, empurrados para a fila de trás da memória. Celebremos em 2025 a Assírio ter ido resgatar a essa escuridão dois títulos de Miguéis: Um Homem Sorri à Morte e Léah, apresentado como “provavelmente o mais querido e conhecido livro” do autor. Dez short stories de Lisboa a Nova Iorque, com a inteligência e modernidade de um dos melhores ficcionistas do século XX português.
O Penálti – História de uma Invenção que Mudou o Futebol
Robert McCrum, tradução de Bruno Vieira Amaral
(Zigurate)
A primeira descoberta que fará com este livro: os ingleses inventaram o futebol, mas os irlandeses inventaram o penalty. Segunda descoberta: o inventor não foi um avançado sádico, desejoso de uma oportunidade fácil para ser herói, mas um guarda-redes amador, cansado da violência na área. Robert McCrum é um veterano das letras, mas é sobretudo bisneto de William McCrum, o homem que criou o pontapé da marca dos 11 metros. O penalty mudou a história do futebol; este livro conta essa história.

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Ana Bárbara Pedrosa
Tudo Sobre Deus
José Eduardo Agualusa
(Quetzal)
O romance surpreende na forma, no enredo e na técnica. Com mão elegante e segura, Agualusa conduz os cenários e cria as personagens. Partindo de um homem que, às portas da morte, compra uma igreja abandonada no deserto do Namibe, o autor angolano faz um enredo onde mete a vida inteira. O leitor é logo apanhado pelo gancho, e fica colado a Leopoldo, que parece sair das páginas e se transformar num homem a sério, em especial pelas analepses que o compõem e lhe dão densidade. Com singular delicadeza, Agualusa doseia a violência e a melancolia, o feio e belo, no mesmo movimento.
Funeral Divertido
Ludmila Ulitskaya, tradução de Nina e Filipe Guerra
(Cavalo de Ferro)
Num apartamento de Nova Iorque, vê-se a vida toda. Menos do que isso: num quarto. E menos ainda: na cama e no pouco espaço à sua volta. É lá que estão as personagens deste livro, à espera do momento da morte de Álik, e que incluem o seu primeiro amor, a mulher atual, a amante e a filha. Esta junção tem tudo para dar errado e a tensão salta à vista, assim como um ambiente de peça de teatro, em que não faltam o padre e o rabino que disputam o encaminhamento espiritual do moribundo. Perante um homem nas últimas, para o leitor não é claro se pesa mais a comédia ou a tragédia, e Ulitskaya vai além disto, partindo deste quadro para mostrar vidas, contextos e dinâmicas.
Inventário de Sonhos
Chimamanda Ngozi Adichie, tradução de Elsa T.S. Vieira
(D. Quixote)
Chimamanda não conhece atalhos. O livro é longo, os parágrafos também, e o leitor passa muito tempo com cada personagem. Ao vê-las em acção, ganha intimidade, e entra-lhes nas vidas, nas cabeças, nos corações. A autora nigeriana conta aqui a história de quatro mulheres, e parece fazer de cada uma um caleidoscópio: as narrativas são abrangentes, e as próprias são situadas emocional e socialmente. Questões de classe e raça não só não ficam à margem como têm destaque, mas a autora nunca cai na instrumentalização nem força questões ideológicas: em vez disso, em cada página há ainda cuidado com o desenvolvimento psíquico e emocional de cada uma.
Tudo Isto é Sarah
Pauline Delabroy-Allard, tradução de Ana Maria Pereirinha
(Alfaguara)
Talvez o único assunto mais fértil do que o amor seja o amor que corre mal. Todo o livro é Sarah e a paixão da narradora é a vertigem de quem lê. Em cada página, a relação tem sabor de queda, vive da tensão, alimenta-se do colapso e da falta de caminhos. Tudo nisto é banal: girl meets girl. E pouco será mais extraordinário do que esta banalidade que nos faz a mesma massa, do que o ridículo visto de fora, como tendem a ser as paixões, o vício, a cabeça desnorteada, conduzida às cegas por essa coisa tonta chamada coração.
Dei-te Olhos e Viste as Trevas
Irene Sòla, tradução de Rita Custódio e Àlex Tarradellas
(Cavalo de Ferro)
É exuberância pura. Não é para todos os palatos, mas não se pode negar que tem sabor. No centro, está uma mulher às portas da morte – e um grupo de mulheres a preparar a festa para a receber. Ao lado da moribunda, estão mulheres mortas e não vivas, gente condenada desde que um ascendente traiu um pacto feito com o diabo. Há aqui muito de folclore, mas o romance não deixa de palpitar de vida, num enredo que abarca séculos partindo de um só dia.

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Andreia Costa
Correu Bem, Miúdo
Anthony Hopkins, tradução de Vasco Gato
(Lua de Papel)
Os pais não davam grande coisa por ele, os professores também não. Desde cedo aprendeu a não demonstrar emoções e, quando viu uma peça de uma companhia amadora, soube logo ali que queria ser ator. Alcoólico, depressivo, destrutivo — a vida de Hopkins teve todos os traumas necessários para lhe garantir material para uma carreira brilhante na representação. Solidão, tristeza e pensamentos suicidas acompanharam-no toda a vida e, embora sejam temas fulcrais deste livro de memórias, também se fala aqui dos muitos papéis que o tornaram mundialmente conhecido, como O Silêncio dos Inocentes e O Pai (que lhe deram dois Óscares). Aos 87 anos, Anthony Hopkins parece disposto a fazer as pazes com o passado e esse é mais um trabalho digno de partilhar com o mundo.
Pés de Barro
Nuno Duarte
(Leya)
Portugal, anos 60, está prestes a começar a construção da primeira ponte suspensa que liga as duas margens do Tejo. Victor Tirapicos carrega o fardo de ter estado preso (roubou comida por ter fome), uma vergonha que o pai não ultrapassa, e vive agora em casa dos tios. É ele que nos guia por um dia a dia atribulado que acompanha a construção da ponte, na qual ele trabalha, mas também a partida de muitos jovens da idade dele para a guerra do Ultramar. Neste primeiro livro, Nuno Duarte aborda o universo paradoxal de uma construção grandiosa que se ergue às custas de um povo castrado e analfabeto. A PIDE a pairar como um abutre, violência doméstica, mesquinhez e rancor, mas também uma história de amor tocante dão o ritmo certo a esta estreia que nos transporta sem cerimónias para os últimos anos do Estado Novo.
Orbital
Samantha Harvey, tradução de Nuno Carvalho
(Particular)
Pode ter passado entre os pingos da chuva por cá, mas por algum motivo venceu o Booker Prize de 2024. A história acompanha seis astronautas que, da estação espacial internacional onde recolhem dados e realizam experiências científicas, contemplam o planeta Terra durante um único dia. São 16 nasceres do sol e 16 pores do sol de uma beleza imensa, mas vistos de uma bolha claustrofóbica que serve de pano de fundo para uma reflexão intensa sobre medos, aspirações, conflitos, sonhos e auto-descoberta. Com apenas 160 páginas, lê-se num fôlego. É escrito com intensidade, tensão e, sobretudo, esperança.
Uma Família Feliz
Raphael Montes
(Cultura)
Fica aqui o aviso: a partir do momento em que abrir este livro, é melhor não ter a agenda muito ocupada nos dias que se seguem. A tensão é tanta e tão constante que é quase impossível darmos atenção a qualquer outra tarefa do dia a dia sem estarmos obcecados com as páginas do thriller de Raphael Montes. O livro começa pelo último capítulo, mas nem por isso é menos surpreendente, já que a partir daí queremos juntar todas as peças que expliquem o final. Eva tem duas filhas gémeas, um marido bem sucedido e uma vida perfeita num condomínio de classe média alta no Rio de Janeiro. Entretanto engravida e começam a suceder-se acontecimentos, no mínimo, estranhos que vão escalando. É um livro avassalador, uma descida ao inferno alucinante e alucinada, conduzida por uma personagem assoberbada que nos faz sentir com (e por ela) uma montanha russa de emoções.
Portugal de Morte a Sul
Rafaela Ferraz
(Quetzal)
Esta viagem tem paragens em cemitérios, igrejas e museus. Rafaela Ferraz, licenciada em criminologia e mestre em medicina legal pela Universidade do Porto, percebeu ao longo dos anos que uma inscrição pouco comum num jazigo pode ter uma grande história por contar. O mesmo acontece com restos mortais sem nome ou mitos que se foram propagando no tempo, passados de boca em boca. A autora foi à procura das histórias, mas sobretudo das identidades esquecidas e, com humor, reúne-as neste livro onde também fala da evolução dos rituais fúnebres em Portugal. A leitura mantém-se fascinante do início ao fim, mesmo quando as narrativas têm contornos sinistros.

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António Moura dos Santos
O Desfufador — Volume 1: Contágio
Valério Romão
(Tinta-da-China)
O livro começa e nós descobrimos que uma das personagens principais, Alex, é um homem anão porque João César Monteiro lhe deu um pontapé no traseiro, irremediavelmente interrompendo o seu crescimento. Faço questão de mencioná-lo porque é um excelente cartão de visita para este romance de Valério Romão: totalmente delirante, corrosivo, pejado de preconceitos e desafiando-nos a nós, leitores, a revermo-nos neles, contando com um trabalho de linguagem denso e para ir saboreando. No cerne da história está um evento global que faz com que cada vez mais mulheres comecem a tornar-se lésbicas, atacando o cerne do ego masculino (daí a necessidade de alguém como o que dá o título a esta obra). Pelo meio, aborda-se turismo, teorias da conspiração, chico-espertice à portuguesa e, de forma mais séria, como todos os nossos contratos sociais já se quebraram ou estão em vias de. É algo completamente diferente para Romão e um triunfo.
A Existência da Vida
Iida Turpeinen, tradução de Diogo Paiva
(Livros do Brasil)
Já alguma vez ouviu falar da vaca-marinha de Steller? É provável que não, porque partilha a mesma dúbia distinção que os dodôs e os tigres da Tasmânia, isto é, foi caçada até à extinção. Sendo uma académica focada nos interstícios entre as humanidades e as ciências naturais na sua Finlândia natal, Iida Turpeinen podia ter apenas escrito um livro de divulgação científica, mas quis ir mais longe, provando que dá para escrever um romance sobre qualquer coisa, desde que haja talento para tal. Nesta história acompanhamos a expedição que encontrou este curioso e inofensivo animal ao tentar descobrir um caminho marítimo entre a Rússia e o Alasca no século XVIII, o governo russo oitocentista desse estado que hoje pertence aos EUA a tentar encontrar um esqueleto do animal e um investigador finlandês nos anos 50 encarregue de restaurar as ossadas. No coração desta narrativa está o sacrifício humano nas suas empresas imperialistas e/ou pelo conhecimento mas, acima de tudo, o sacrifício animal às mãos da nossa húbris. Como escreve Turpeinen: “Não há mais nada para caçar. Steller morreu acreditando que a sua descoberta alimentaria toda a Sibéria, mas subestimou a fome do homem”.
A Corte das Mulheres
André Canhoto Costa
(Quetzal)
Não é surpresa para ninguém que, entre os temas da história de Portugal, o da expansão marítima e o das causas para o nosso declínio estejam entre os mais contenciosos, sendo de imediato alvo de controvérsia assim que alguém ousa desafiar a narrativa oficial. Há, no entanto, muito mais a desvendar e a “polemizar”, como o historiador André Canhoto Costa demonstra neste livro, que deve o seu nome a um conjunto de mulheres nobres no seio da corte portuguesa. Tratam-se de figuras como Leonor de Áustria, Infanta D. Maria ou Joana de Áustria, assim como as intelectuais Joana Vaz ou Luísa Sigeia, que desafiaram os ditames da época e a sua suposta menoridade enquanto mulheres para promover a ciência, as artes e a discussão. Foi pela sua mão que figuras como Luís de Camões, Sá de Miranda e Bernardim Ribeiro — hoje canónicas mas disruptivas naquela altura — puderam singrar. A contrarreação religiosa, social e política haveria de pôr fim a este movimento e tentar apagá-lo da história, mas nunca vai desaparecer enquanto houver livros como este.
Estive Aqui e Lembrei-me de Nós
Anna Pacheco, tradução de Rita Custódio e Àlex Tarradellas
(Objectiva)
À partida, poder-se-ia julgar que este pequeno livro de Anna Pacheco não passaria de uma reação crítica à indústria do turismo, que em Portugal (e Lisboa, em particular) vai somando detratores, mas que já atingiu o ponto de rebuçado na Barcelona natal da jornalista catalã. É, no entanto, muito mais do que isso. Em pouco mais de 100 páginas, Pacheco — que se infiltrou junto dos trabalhadores de mais do que um hotel de luxo — mostra a precariedade de quem faz vida a servir os outros de férias, mas — mais importante ainda — vai à raiz para interrogar: porque é que precisamos de turismo? É só escapismo? Ou é sinal de algo mais doentio e profundo relacionado com o aprisionamento da nossa existência a um modelo extrativo de produção que nos esgota durante um ano inteiro mas deixa-nos ser reis durante uma semana ou duas para que este ciclo se repita ad eternum? A jornalista não nos dá exatamente uma resposta, mas faz o mais importante que é colocar a pergunta.
Coisas Ruins
João Zamith
(Suma de Letras)
Este livro é várias coisas: uma estreia notável; uma história que, se não assusta, pelo menos causa desconforto; uma família ao estilo dos Roy de Succession, mas muito poucochinha, ajustada à dimensão do nosso país; um debruçar sobre o Portugal profundo que não desapareceu ainda. Como em toda a boa literatura de terror, Coisas Ruins não empolga apenas, mas serve-se da sua história que mistura folclore a sucesso capitalista para escalpelizar a forma como Portugal ainda hoje se deixa seduzir pelo culto dos homens providenciais e dos “self-made men” ao centrar-se nas glórias e infortúnios da família Viaforte. Igualmente importante, fá-lo de forma muito própria, sem recorrer a inspirações óbvias no seio da literatura portuguesa.

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Carlos Maria Bobone
Poesia
Afonso Lopes Vieira
(E-Primatur)
Afonso Lopes Vieira é um poeta bem mais interessante do que parece: como, aliás, vários da sua geração. A simplicidade da linguagem infantilizada, as expressões populares, o gosto etnográfico pelas tradições, que em Espanha tanto atraíram, pela mesma altura, Garcia Lorca, tornam os versos falsamente cândidos de Lopes Vieira uma leitura tantas vezes agradável quanto dolorosa: como ao ver uma criança a brincar.
Penhasco
Maria Brás Ferreira
(Edição de autor)
É um poema incómodo, sobre (com os limites do que em poesia significa um tema) um amor de verão. A maneira como a autora consegue segurar os vários modos simultâneos de encarar um acontecimento é um dos grandes interesses do poema, a que uma série de passos narrativos na altura certa, evitando que o poema caia numa abstração e deixando sempre uma ideia não muito segura de que percebemos o significado de todas aquelas coisas, dão uma forma pouco vista e muito conseguida.
História de África — Volume I
Bernard Lugan, tradução de Francisco Silva Pereira
(Bookbuilders)
Fazer uma história de África é um trabalho monumental, pela dificuldade em articular fenómenos completamente diferentes (a África magrebina e a África austral, por exemplo) e pela diferença radical de fontes entre uma história deste tipo e a história europeia, marcada pela escrita. O trabalho que Bernard Lugan faz não pode fugir a uma certa dispersão (que ele até tenta usar em seu proveito, com caixas de texto muito úteis e pouco usuais fora dos manuais escolar), mas é de uma riqueza impressionante.
José Sócrates — Ascensão
João Miguel Tavares
(Dom Quixote)
O livro está escrito de uma maneira simples e muito contida nas suas apreciações do desempenho de Sócrates. É uma recolha impressionante de malfeitorias, sim, mas sobretudo um retrato do poder de um ânimo forte e pouco escrupuloso no contacto com as estruturas do poder local, a entrada súbita de dinheiro vinda de fundos europeus, e uma retórica moral – ora ambientalista, ora reformista – sobre os destinos do país. Além da fascinante personalidade de Sócrates, o que este livro nos dá é o modo como estes três mundos, através de Sócrates, se articularam durante tantos anos, num daqueles exemplos de boas intenções transformadas, na prática, num circo de horrores.
Herscht 07769
László Krasznahorkai, tradução de João Miguel Henriques
(Cavalo-de-Ferro)
Poucas vezes um Nobel terá sido tão útil na sua função de, ao mesmo tempo, premiar um dos maiores escritores do nosso tempo e chamar a atenção para quem merece mais do que aquela que tem. Krasznahorkai é um portento estilístico, daqueles escritores incómodos, claustrofóbicos, dos quais não conseguimos sair, mas também um espírito nobre no sentido mais lato da palavra: alguém que procura encarar as ideias e o mundo com seriedade, e é isso que faz deste livro — que tinha tudo, desde uma obsessão com Angela Merkel a grupos de extrema-direita, para se tornar mais um panfleto inconsequente — o confronto verdadeiro de várias perspetivas sobre o nosso tempo.

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Cláudia Marques Santos
O Fim dos Estados Unidos da América
Gonçalo M. Tavares
(Relógio d’Água)
Gonçalo M. Tavares tece mais um capítulo no universo ontológico que está a construir com os seus livros, desta vez transportando o protagonista do livro anterior, Bloom, de Viagem à Índia, para um cenário apocalíptico. Chegou a peste. E, como qualquer thanatos, implica um movimento que tudo destrói para tudo poder reconstruir. Um díptico epopeico, este segundo livro atravessa o território norte-americano e os arquétipos de um modo de ser e de viver cujo cânone explode, não sem fazer um arco com a raiz da atual civilização ocidental.
Um Dia… Sempre Teremos Sido Todos Contra Isto
Omar El Akkad, tradução de Guilherme Pires
(Tinta-da-China)
De uma escrita tão sensível quão desarmante, pela sua simplicidade e assertividade, não é por acaso que este livro ensaístico que intercala o percurso pessoal do escritor de origem egípcia com pensamentos acerca do estado atual do mundo, nomeadamente os acontecimentos recentes em Gaza, foi o vencedor do National Book Award 2025 nos Estados Unidos, na categoria de não-ficção. Os horrores da destruição, que acompanhou em direto através dos canais digitais de jornalistas palestinianos, diz terem aberto na sua geração uma fratura que só se preenche com vazio.
Por Dentro do Chega
Miguel Carvalho
(Objectiva)
É um dos acontecimentos jornalísticos do ano, não apenas pelo trabalho exaustivo de pesquisa, reunião e relato dos episódios mais inconcebíveis que se possa imaginar associados à fundação e crescimento de um partido político, mas também pelo momento crucial em que é publicado. Numa altura em que o Chega acaba de ascender a segunda força política no parlamento e lidera sondagens na candidatura à Presidência da República, este livro será prova indelével de que houve um pré-aviso.
O Louco de Deus no Fim do Mundo
Javier Cercas, tradução de Helena Pitta
(Porto Editora)
O escritor de Soldados de Salamina simula um convite feito por parte do Vaticano para integrar a comitiva papal numa viagem à Mongólia, ele que se considera ateu, herege, ímpio, anticlerical — como magistralmente começa por se descrever no início da história. Uma discorrência sobre os quês do espírito e, concretamente, a imortalidade, Cercas opera no trocadilho o Louco Sem Deus (ele próprio)/o Louco de Deus (o papa Francisco) um diálogo sobre quem somos e o que perdurará de nós, diluído em tempos tão difíceis, díspares e excessivos, como são os de hoje.
Tese Sobre uma Domesticação
Camila Sosa Villada, tradução de Margarida Amado Costa
(Quetzal)
Esta ativista transgénero, escritora, dramaturga e atriz argentina secunda o trabalho literário com linhas de pensamento bastante prementes nos tempos que correm, como quando no ensaio autobiográfico A Viagem Inútil discorre sobre o percurso de ir ao encontro do outro dentro de si própria. Em Tese Sobre uma Domesticação, Sosa Villada escreve sobre temas — como o amor, a sexualidade e a família —, que arrastam os seus opostos de forma tão visceral que outro prodígio da literatura contemporânea, o francês Édouard Louis, não se refreou em catalogar o universo do livro como um dos mais importantes que leu desde Jean Genet.

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Joana Moreira
Tese sobre Uma Domesticação
Camila Sosa Villada, tradução de Margarida Amado Costa
(Quetzal)
Depois de As Malditas, em que mergulha na tragédia das vidas de travestis latino-americanas, a argentina Camila Sosa Villada dá-nos como resposta Tese sobre Uma Domesticação, romance sobre uma travesti burguesa, atriz, com um casamento aberto com um advogado homossexual. Feroz, poético e extremamente sensual, é um livro que desafia as ideias contemporâneas de género, sexualidade, amor e privilégio no que resulta numa tentativa bem sucedida de não de cingir (ou antes, “domar”) uma mulher trans aos padrões do mundo heteronormativo. E não, não é panfleto, é literatura.
Morramos ao menos no Porto
Francisco Mota Saraiva
(Quetzal)
António, viúvo de Silvina, cujo corpo defunto permanece numa cadeira de baloiço, navega entre tristeza, a memória e a voz dos mortos que murmuram debaixo do chão da sua casa. Um livro duro, comovente, com uma narrativa fragmentada reminiscente de Lobo Antunes — a prosa solta e intrincada de Francisco Mota Saraiva exige que o leitor construa o sentido da história. Prémio Literário José Saramago 2024, foi descrito pelo júri que assim o determinou como “uma história de um grande amor” e “um livro de sombras”. Que na sombra não fique.
Dei-te Olhos e Viste as Trevas
Irene Solà, tradução de Rita Custódio e Àlex Tarradellas
(Cavalo de Ferro)
No leito de morte, uma mulher mais velha confronta-se com os seus fantasmas. Enquanto isso, as suas ancestrais já falecidas preparam uma festa para a receber. Inspirada na história, geografia, tradições e no folclore da Catalunha, Irene Solà constrói um purgatório feminino neste livro que celebra a memória, o sangue e a força de uma linhagem que se ergue no tempo. Imagens profundamente grotescas convivem com descrições poéticas, a violência com o erotismo. Há personagens masculinas no livro, mas são secundárias: a dança com o macabro pertence às mulheres.
Lynch sobre Lynch
Chris Rodley, tradução de Ana Marta Caio
(Sr Teste)
No ano da morte de David Lynch, um presente póstumo: a edição em língua portuguesa de uma extensa série de entrevistas conduzidas por Chris Rodley, entre 1993 e 1996, que nos dá a conhecer o possível sobre o realizador que sempre foi esquivo nas explicações sobre a sua arte, tantas vezes enigmática. Façamos as pazes com os insolúveis mistérios lynchianos junto dos desenhos e pinturas da artista portuguesa Vera Midões, também eles cheios de assombração e mistério, que acompanham esta edição da Sr Teste.
Batida Só
Giovana Madalosso
(Tinta-da-china)
Giovana Madalosso transforma o diagnóstico inesperado de uma arritmia grave no ponto de partida para uma narrativa incisiva sobre corpo, medo e desejo de viver. A jornalista, protagonista, obrigada a evitar qualquer emoção forte, é confrontada com uma nova realidade: na sua profissão, na sua vida e até nos seus orgasmos. Com uma escrita que traduz a experiência física da doença, Madalosso oferece-nos um romance sensível e vigoroso sobre finitude, cuidado e a difícil arte de continuar a viver quando o coração insiste em lembrar que tudo pode falhar.

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João Pedro Vala
Batida Só
Giovana Madalosso
(Tinta-da-China)
A ficção contemporânea tem-se desviado por vielas obscuras para evitar a pergunta que está na sua génese: mas, afinal, que raio faço eu aqui? Através de uma jornalista que se vê inesperadamente impedida de sentir emoções fortes, Giovana Madalosso conta-nos uma história sobre a luta entre fé e razão, apenas para se defrontar com esse beco sem saída: e com a morte, faço o quê?
Confissões
Jean-Jacques Rousseau, tradução de Manuel de Freitas
(E-Primatur)
É difícil explicar em poucas linhas a importância das Confissões de Rousseau para a literatura e, sobretudo, para a literatura confessional e autobiográfica, mas, muito bruscamente, digamos que nesse campo só encontra rivais em Santo Agostinho e Marcel Proust. Esta edição em dois tomos de uma obra tão importante há muito negligenciada em Portugal é a novidade editorial do ano. Que seja um livro escrito em 1782 diz tanto sobre ele como sobre nós.
Estes Dias que Desaparecem
Timothé Le Boucher, tradução de Maria Ramos
(Devir)
A Devir tem ajudado a suprir a escassez de novelas gráficas publicadas em Portugal. Estes Dias que Desaparecem é possivelmente um dos seus maiores triunfos: a história de Lubin — um rapaz que se apercebe de que vive apenas parte dos seus dias, dando lugar a um alter ego sempre que adormece — é uma desconstrução surreal e arguta dessa coisa estranha a que chamamos envelhecer.
Eu Sou Elvis
D. H. Machado
(Poets and Dragons Society)
D. H. Machado tem vindo a escrever pequenas novelas nas quais procura encarnar os seus heróis ficcionais e artísticos em momentos decisivos da história destes. Já o fez, por exemplo, com Edward Hopper e o seu quadro Nighthawks, com Rachmaninoff e a composição do concerto número 3 em ré menor e fá-lo agora, melhor do que nunca, com Elvis Presley, momentos antes de subir ao palco para o ’68 Comeback Special.
Lobos
Tânia Ganho
(Dom Quixote)
Tânia Ganho é, se não a melhor, com certeza das melhores tradutoras de ficção em Portugal. Em Lobos, mostra que é também uma romancista muito competente, construindo uma história sobre as várias facetas da violência, cuja pertinência pede meças à robustez da arquitetura narrativa em que assenta.

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José Carlos Fernandes
Os Quatro Pontos Cardeais: A Inusitada História da Orientação
Jerry Brotton, tradução de Miguel Martins
(Edições 70)
Ao contrário de tantas espécies de animais migratórios, o Homo sapiens não possui um sentido inato de orientação, portanto teve de criar referenciais que lhe permitissem deambular pelo mundo sem se perder. O foco de Jerry Brotton não está na evolução da tecnologia de determinação da longitude e da longitude e na precisão dos mapas, mas nas construções culturais em torno dos pontos cardeais – um assunto que ganhou premente atualidade com a presente oposição Norte Global/Sul Global.
O Dom das Línguas
J.M. Coetzee & Mariana Dimópulos, tradução de J. Teixeira de Aguilar
(D. Quixote)
O livro estrutura-se como um diálogo entre um escritor e uma escritora/tradutora sobre as peculiaridades da linguagem humana, o seu processo de aprendizagem, as mundividências associadas a cada língua, as forças e insuficiências das diferentes línguas e os desafios e as subtilezas da tradução. A conversa é tão rica em informação e tão frutuosa e lança tantas pistas para reflexão que quando se chega ao fim só se lamenta que o diálogo não se estenda por um milhar de páginas.
A Rota das Especiarias: A Disputa do Século XVI que Moldou o Mundo
Roger Crowley, tradução de João Cardoso
(Presença)
Os anos de 1511, quando partiu de Malaca a primeira frota portuguesa destinada às “Ilhas do Maluco”, e de 1571, quando os portugueses estabeleceram um entreposto comercial em Nagasaki, são as balizas temporais do trepidante relato da disputa entre as coroas portuguesa e espanhola pelo controlo do comércio mais lucrativo do mundo: o do cravinho e a noz-moscada, que apenas cresciam numas minúsculas ilhas do Sudeste Asiático.
A Rota do Ouro: Como a Índia Antiga Transformou o Mundo
William Dalrymple, tradução de Cláudia Brito
(D. Quixote)
Não é preciso aderir às teses woke para reconhecer que a Europa nem sempre foi a região mais próspera, inovadora e poderosa e que não está fadada a liderar o mundo e William Dalrymple apresenta argumentos convincentes para defender que, entre 250 a.C. e 1200 d.C., a Índia esteve no centro de uma vasta rede comercial que se estendia até à bacia mediterrânica, à África Oriental e ao Extremo Oriente e as suas ideias e cultura moldaram decisivamente a vida intelectual no Califado Abássida, no Império Chinês e no Império Khmer.
Os Espíritos das Aves
Eliot Weinberger, tradução de Nuno Quintas
(Caixa Alta)
Os ensaios de Eliot Weinberger (n.1949) são como a toca de coelho de As Aventuras de Alice no País das Maravilhas: o leitor entra por um buraco estreito e anódino e tomba, desamparado, num mundo vasto e desconcertante, em que mesmo o que parece ser familiar se revela surpreendente. Weinberger é um Jorge Luís Borges pós-moderno, dotado de uma erudição inesgotável e de uma desarmante facilidade em conectar factos e ideias aparentemente díspares e imiscíveis.

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Maria Brás Ferreira
As Coisas
Georges Perec, tradução de Luís Leitão
(Antígona)
Escrito às vésperas do Maio de 68, As Coisas segue a vida de um casal obstinado numa ascensão social, que nada mais é que o testemunho exemplar de um país que se esforça por sair de si mesmo. País seduzido por uma ideia de propriedade que não se revela aqui senão como o conjunto de manias e fantasmas que, em cada um, convertem todo o bem numa forma de adiamento do inevitável fracasso.
Ciúme — A Outra Vida de Catherine M.
Catherine Millet, tradução de Miguel Martins
(Edições 70)
Da mesma autora do polémico A Vida Sexual de Catherine Millet, Ciúme continua a urdidura copulativa de um registo, mais do que próximo da confissão, par do ensaio, fiel a uma realidade biográfica, todavia, revelada invariavelmente sob recurso à fantasia. O registo preciso e enxuto de Millet faz do sentimento vertiginoso do ciúme uma realidade física e psíquica em que, à semelhança dos mecanismos de verosimilhança da ficção, não é mais possível destrinçar a realidade que se habita e a realidade que se projeta.
O Romance de Camilo
Aquilino Ribeiro
(Bertrand Editora)
Mais de 50 anos depois da última reedição, volta O Romance de Camilo. Trata-se de uma biografia de Camilo Castelo Branco, que homenageia, pela sua monumentalidade e exaustão — sem prescindir de elaborações de ordem analítica que expõem a singularidade da visão de Aquilino — a vida do escritor oitocentista. É uma biografia escrita com o sangue mordaz de Camilo, isto é, concretizando a lição aprendida do autor de Amor de Perdição: de tudo submeter à vontade criadora, inventiva, e a todo o custo.
Fumar às Janelas do Crânio — Poesia Mexicana Do Século XX
Organização, Selecção e Tradução de Luis Filipe Parrado e Ricardo Castro Ferreira
(Língua Morta/Maldoror)
Trata-se de uma antologia a duas, ou quatro, mãos. A dois corações, seguramente. Sempre um resultado do gosto, uma antologia obedece invariavelmente ao critério misterioso da sensibilidade e da comoção de um leitor-tradutor. Esta contém poemas de quase 70 poetas. Poemas que não são, evidentemente, aqui nem em parte alguma, sintetizáveis. Mas há infernos povoados, vistos, tocados, como há paraísos de sonho mais ou menos definidos: cartografados e apostrofados. É abrir aleatoriamente numa página e o espanto e a beleza são quase certos.
Carlos de Oliveira, a Proximidade da Distância
Silvina Rodrigues Lopes
(Edições do Saguão)
Eis um novo livro de uma das pensadoras portuguesas mais interessantes, o que por si só é motivo de alegria. À margem de qualquer pretensão sumária, nas linhas breves de que aqui dispomos, importa dizer tratar-se de um livro sobre um poeta, sobre a literatura e os seus fenómenos libertadores, de recusa de uma lei unitária, de proposta de gramáticas múltiplas, coexistentes. A literatura de Silvina Rodrigues Lopes, mais do que para Silvina Rodrigues Lopes, expõe-se território fertilizante de proximidade da renovação de uma potência, e não de aproximação, mais ou menos fracassada, a um objetivo preciso.

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Rita Cipriano
Dei-te Olhos e Viste as Trevas
Irene Sòla, tradução de Rita Custódio e Àlex Tarradellas
(Cavalo de Ferro)
A história de um grupo de mulheres, de diferentes gerações e da mesma família, que vivem e assombram uma casa antiga, na região de Las Guillería, na Catalunha, uma zona marcada pela pobreza e pela guerra civil. Misturando o real e o irreal, a memória e o folclore, Sòla, uma das vozes mais originais da literatura catalã atual, questiona a maneira como as histórias são contadas e de que maneira o storytelling molda a nossa perceção dos acontecimentos. A autora explora ainda as intrincadas teias que unem membros da mesma família e o peso da herança na vivência pessoal de cada um. Um livro de um imaginário riquíssimo, onde a crueza e a beleza se cruzam.
Herscht 07769
Lászlo Krasznahorkai, tradução de João Miguel Henriques
(Cavalo de Ferro)
Uma sátira devastadora e profética sobre a desintegração social e o colapso ecológico, o extremismo político, o nacionalismo e o globalismo, Herscht 07769, de Lászlo Krasznahorkai, este ano distinguido com o Nobel, “mestre húngaro do Apocalipse” (como o descreveu Susan Sontag), é uma narrativa única, sobre uma pequena cidade esquecida na Turíngua Oriental, onde o caos se instala após serem avistados lobos na região. Os avistamentos são antecedidos pelo aparecimento de desenhos de cabeças de lobo em monumentos dedicados ao compositor Johann Sebastian Bach, a grande obsessão do líder neonazi local, Boss, dono de uma empresa de lavagem de paredes. Com a ajuda do seu pelotão e de Florian Herscht, “o idiota da aldeia”, que acredita que o fim do mundo está próximo, Boss empenha-se em descobrir os responsáveis pelos grafitti.
A Ressurreição de Maria
Cláudia Andrade
(Elsinore)
Um conjunto de nove contos que revelam “toda a verdade sobre a vida, essa estrepitosa coisa nenhuma”, A Ressurreição de Maria, o regresso de Cláudia Andrade à ficção curta, aborda temas que são caros à autora (a vida em oposição à morte; o aborrecimento; a vulgaridade humana; a violência sem sentido; o amor obsessivo) e apresenta um elenco de personagens, quase todas masculinas, que são tão trágicas quanto absurdas. Com uma escrita incisiva, mas que não deixa de ter os seus momentos de grande delicadeza, e o humor negro que lhe é tão característico, neste novo conjunto de contos, Cláudia Andrade faz-nos refletir e olhar de frente para o que nos torna tragica e ridicularmente humanos.
Herodes, o Grande
Martin Goodman, tradução de Maria Ferro
(Bertrand Editora)
O mais famoso dos Herodes que governaram a Judeia sob o domínio romano (73-4 a.C.), ficou para a história como um tirano sangrento, cuja ambição desmedida não poupou nada nem ninguém — incluindo a própria família. O episódio mais conhecido do seu reinado, que coincidiu com os primeiros anos de vida de Jesus Cristo, é o do Massacre dos Inocentes — a perseguição e morte de todos os meninos com menos de dois anos nascidos em Belém para impedir a sua substituição no trono pelo recém-nascido “Rei dos Judeus”. O reconhecido historiador britânico Martin Goodman, professor emérito da Universidade de Oxford e especialista em Estudos Judaicos, sobretudo no contacto entre Roma e a Judeia, recupera a vida deste rei, odiado tanto por cristãos como judeus, oferecendo uma visão ampla de Herodes e das particularidades do seu tempo, um período de viragem, marcado pela luta entre as diferentes fações políticas em Roma, que culminou com a derrota de Marco António e Cleópatra e a ascensão de César Augusto, o primeiro imperador romano.
As Cleópatras
Lloyd Llewelly-Jones, tradução de Paulo Tavares e Sara M. Felício
(Bertrand Editora)
Há quem diga que Cleópatra só houve uma, mas, a verdade, é que foram sete as rainhas com esse nome, que governaram, a partir de Alexandria, o fascinante e abundante reino do Nilo. No seu mais recente livro, o historiador galês Lloyd Llewelly-Jones, professor de História Antiga na Universidade de Cardiff, traça a história da última dinastia do Egipto — a dos Ptolomeus, fundada após a morte de Alexandre, o Grande, por um dos seus generais — e das suas poderosas rainhas, que se casaram com os seus irmãos e dominaram o mundo habitualmente masculino da política e da guerra, moldando-o à sua imagem. Esta cativante história de traição, violência e assassinato entre familiares, culmina com a ascensão e queda de Cleópatra VII, a última e a mais famosa rainha do Egipto, que se suicidou a 10 ou 12 de agosto de 30 a.C., nos seus aposentos privados, em Alexandria, a capital fundada por Alexandre.

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Susana Romana
A Boba da Corte
Tati Bernardi
(Tinta da China)
Talvez a mais crua e honesta autora de ficção da atualidade, Bernardi revela-se aqui como alguém que serve de entretenimento nem sempre voluntário ao mundo intelectual ao qual tanto de esforçou para chegar, vinda de uma família mais humilde. Logo o arranque é desarmante: uma amiga de Tati pretende chegar a uma festa na casa da escritora, na Rua Maranhão, em Higienópolis, na Zona Oeste de São Paulo; mas acaba por se enganar e desaguar no Largo do Maranhão, já na Zona Leste. Assustada com o ambiente à sua volta, enviou à anfitriã a sua localização em tempo real, pedindo que, caso alguma coisa lhe acontecesse, chamasse a polícia. O que ela desconhece é que a Bernardi nasceu e passou a infância exatamente naquela área.
O Meu Amigo Kim Jong-Un
Keum Suk Gendry-Kim, tradução de Sara Godinho
(Iguana)
A sul coreana continua a destacar-se como uma das vozes mais interessantes e importantes vindas do continente asiático. Depois de Erva e A Espera, chegou este ano a Portugal mais uma novela gráfica que mistura memória com reportagem. Além de entrevistas com norte coreanos fugidos do regime, Gendry-Kim recorda a sua infância e a imagem que lhe era passada do terrível inimigo do outro lado da fronteira. Numa obra que mostra que a propaganda, mesmo que com variáveis graus de intensidade e perniciosidade, está em todo o lado, O Meu Amigo Kim Jong-Un é uma obra essencial para compreender um dos países mais misteriosos do mundo.
Filho do Pai
Hugo Gonçalves
(Companhia das Letras)
Podemos, até um certo ponto, dizer que estamos perante uma sequela. Filho Da Mãe foi escrito em 2019 e constitui uma reflexão sobre o impacto da morte da mãe, era o autor uma criança de oito anos. Já Filho do Pai apanha Gonçalves para lá dos 40, prestes a ser pai pela primeira vez, quando morre o progenitor no meio da confusão da Covid-19. Tal como o primeiro, Filho do Pai é uma colagem não-cronológica de memórias (umas reais, outras talvez já mastigadas pela ausência) que permitem ao narrador refletir sobre a falta e também o papel da mulher, do homem, da família.
Victorian Psycho
Virginia Feito, tradução de Sofia Ribeiro
(Alfaguara)
Numa piscadela de olho ao clássico American Psycho — mas misturando com os tiques da literatura inglesa do século XIX — o livro aborda a chegada da preceptora Winifred Notty a Ensor House para cuidar da educação dos filhos dos Pounds. Mas o pseudo luxo e elegância são apenas uma fachada para segredos perversos e comportamentos bizarros. A segunda obra de Feito mistura terror bastante gráfico com thriller e com umas cirúrgicas pepitas de humor negro. Victorian Psycho já está a ser adaptado ao cinema, mas vale muito a pena passar antes pelo livro da espanhola.
O Indispensável de Snoopy
Charles M. Schulz, tradução de Nuno Carvalho
(Iguana)
Apesar das honras de uma das exposições principais do Amadora BD deste ano, Snoopy parecia destinado a ser menos uma personagem icónica da história da 9.ª Arte e mais um padrão de pijamas da Women Secret. Felizmente, em boa hora que a Iguana reeditou em Portugal parte considerável da obra num calhamaço de capa dura como deve ser, para a posteridade. E é assim que nos reencontramos com a melancolia, o carisma e a beleza do cão beagle e do grupo de crianças vagamente filósofas que o acompanham.

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Vasco Rosa
Pessoas com Flores
Martinho Mendes
(Câmara Municipal do Funchal)
Há sempre muitos — até demasiados, quem saberá? — livros neste ano, mas poucos serão tão originais como este, pelo que representa para a ilha da Madeira e a importância que a flora ali tem. A edição com tiragem reduzida, mas produzida a alto gabarito tem aqui um excelente ponto de referência. Escrevi sobre este livro no Observador, creio que raros terão notado nele. É agora tempo de reavaliação.
Vulcões
Daniel Blaufuks e outros
(Araucária)
Depois de Nuvens, originalíssimo, colocando-as pela primeira vez na história da paisagem açoriana, como elemento essencial, ainda que sempre preterido, e aproximando arte e ciência, o que não é de somenos, esta nova editora de Ponta Delgada propõe um livro sobre vulcanologia que sintetiza toda a bibliografia científica, e dum modo mais acessível a todos. As fotos de Blaufuks podiam ser — com clara vantagem, diria — preteridas pelas de um fotógrafo açoriano, pois os há bastantes bons, mas aceita-se a escolha pessoal da editora e esse ensaio por uma atenção extra-regional.
Uma casa é uma montanha é um chapéu
Yara Kono, Filipa Thomaz e Letícia do Carmo
(Trienal de Arquitectura de Lisboa)
Eloquente trabalho de inclusão de invisuais no elogio da arquitetura doméstica como parte essencial da condição e experiência humana, exigindo cuidados e colaborações técnicas especiais que reconduzem o livro à condição de grande objeto de civilização. Não duvido que seja uma enorme surpresa para a exponencial indústria de literatura infanto-juvenil, e receba prémios internacionais, inteiramente ao seu alcance.
Rainha D. Amélia, pintora e mecenas do património histórico
José Alberto Ribeiro
(Caleidoscópio)
É o livro que faltava para uma revisitação e reavaliação da figura da rainha D. Amélia e duma época (que vinha detrás) de defesa do património artístico do país, como infelizmente poucas assim teríamos depois. A princesa francesa de Orléans que casou com D. Carlos — também ele um artista de muito mérito — fez por igrejas, museus e palácios portugueses o que a sua educação e formação lhe ensinara e depois transmitiu a seu filho Manuel, um bibliófilo no exílio mas fiel ao país.
A Água das Lágrimas
Cristina Castel-Branco
(Fundação Francisco Manuel dos Santos)
O longo processo de recuperação do jardim da Quinta das Lágrimas, nos arredores de Coimbra, pela voz da arquiteta paisagista que o protagonizou. Um trabalho de amor, sem dúvida, pela natureza mas também pela história de um lugar. Um livrinho reconfortante.
