(c) 2023 am|dev

(A) :: João Soalheiro, presidente do Património Cultural: "Não tenho problemas de orçamento, tenho problemas de recursos humanos"

João Soalheiro, presidente do Património Cultural: "Não tenho problemas de orçamento, tenho problemas de recursos humanos"

Responsável por quase 250 milhões do PRR, tem a seu cargo a salvaguarda dos monumentos mais emblemáticos do país. Na primeira entrevista desde que está no cargo, João Soalheiro faz um balanço.

Alexandra Carita
text
Francisco Romão Pereira
photography

João Soalheiro é, desde junho de 2024, o presidente do Património Cultural, instituto público criado seis meses antes por decreto do então ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, e que extinguia a Direção-Geral do Património Cultural, separando as suas competências em dois eixos: de um lado os museus e do outro os monumentos. Conhecedor profundo da realidade da administração cultural, foi diretor da Direção Regional de Cultura de Lisboa e Vale do Tejo durante três anos, trabalhando em articulação com o antigo IGESPAR (Instituto de Gestão do Património Arquitetónico e Arqueológico), foi também subdiretor-geral da Direção-Geral do Património Cultural.

Homem com uma visão própria do que é a Cultura, de como deve ser fruída e de como tem de se tornar “um chão comum” num Portugal ainda desencontrado com ela, João Soalheiro está neste momento a braços com a fatia de leão do financiamento em sede do PRR (Plano de Recuperação e Resiliência) no que respeita à componente Cultura e se refere à requalificação do património edificado, gerindo a execução de 243 milhões de euros, distribuídos por 81 intervenções em monumentos classificados. As obras têm mais sete meses para serem concluídas e as inaugurações começa em setembro do próximo ano. Esta semana, João Soalheiro falou à Imprensa pela primeira vez desde que exerce o cargo: “O Estado Português não ganha nada em ter investimentos ad hoc ou gizados na base das oportunidades circunstanciais que são determinadas ou pelos fundos ou por uma câmara municipal”, afirma.

O Instituto que dirige foi criado em 2024, quando se extinguiu a antiga Direção-Geral do Património Cultural e se criou também a Museus e Monumentos de Portugal EPE. Qual é o balanço que faz? Este modelo funciona melhor?
Falo de um posto de responsabilidade, mas sobretudo de uma visão pessoal: houve a oportunidade política de alguém com um itinerário público na área do património protagonizar uma reforma e fê-lo moldado pelas suas preocupações primárias.

Está a falar de quem?
Estou a falar do Governo liderado por António Costa quando era ministro da Cultura Pedro Adão e Silva e secretária de Estado da Cultura Isabel Cordeiro. Esta reforma foi protagonizada por alguém que vinha dos museus e a sua preocupação e a sua matriz patrimonial influiu nas decisões da cisão entre uma entidade pública empresarial para gerir os museus e um instituto público para a salvaguarda do património cultural. Se porventura a reforma tem sido protagonizada por alguém oriundo dos monumentos, neste momento teríamos uma situação diversa com outro tipo de construção. O que quero dizer com isto é que, em cada época, o legislador e a ação governativa na área da cultura encontraram soluções de governo para o património, a última foi a separação dos museus e da salvaguarda patrimonial.

Avalia essa separação positiva ou negativamente?
Se me pergunta se concordo com esta abordagem, direi que a administração cultural sobreviverá sempre a qualquer reestruturação que seja feita, já deu provas de resiliência e de serviço à cidadania que são garantia de que independentemente dos modelos de gestão, as responsabilidades públicas de salvaguarda são atuadas. A minha preocupação situa-se mais ao nível da eficácia do modelo de gestão do que propriamente na captação de competências num serviço ou noutro serviço. O Património Cultural I.P. ainda não teve o tempo e as circunstâncias necessárias à sua instalação, não lhe foi conferido esse tempo, nem lhe foi dada essa oportunidade, porque além de herdar um passivo de situações difíceis que têm sido paulatinamente enfrentadas, foi incumbido de implementar a parte de leão do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) da componente Cultura. É um instituto novo de que se espera muito e que está a responder não àquilo que é o universo tradicional das suas competências, mas a tudo isso mais um esforço extraordinário que tem um impacto brutal na vida do instituto. As competências que ficaram alocadas no Património Cultural I.P. são competências relevantes para a sociedade portuguesa do ponto de vista do exercício fundamental de salvaguarda do património cultural, e têm sido exercidas com prontidão, com competência técnica e, devo dizer para aqueles que andam um bocadinho distraídos, sem conflituosidade para com a sociedade.

Quando chegou, qual foi a sua maior preocupação?
Foi olhar para o que tinha sido transposto da DGPC e avaliar a capacidade ou incapacidade de responder não apenas à casuística dos processos e da sua tramitação, mas também de introduzir uma lógica de renovação em termos dos objetivos de intervenção no património cultural. Foi nesse sentido que procurámos reagrupar, refuncionalizar e reestruturar as unidades flexíveis de que dispúnhamos. Para se criarem novas divisões e departamentos têm que se extinguir velhas divisões, obviamente, tem de se sacrificar a estrutura. Introduzimos duas divisões importantes do ponto de vista do que é a atitude da relação com a sociedade portuguesa: a Rota das Catedrais e a Teodemirvs – Tesouros da Herança Cultural Portuguesa.

Quer explicar o que fazem esses departamentos novos?
As catedrais portuguesas constituem um núcleo de património altamente relevante, significante do ponto de vista coletivo, independentemente do posicionamento de qualquer cidadão quanto a matérias de foro religioso. Todos nos reconhecemos de alguma forma ligados àquelas pedras, seja pela arquitetura, pelo lado estético puro e duro, historicamente, enfim, olhamos para aqueles edifícios e sentimos que fazemos parte daquilo e aquilo faz parte de nós. A Conferência Episcopal Portuguesa tem um papel muito importante a este nível porque agrega do ponto de vista colaborativo as várias dioceses em que a Igreja Católica está organizada. Cada diocese é autónoma em relação à outra, mas tem na Conferência Episcopal o fórum de articulação institucional e nós, a partir do Ministério da Cultura, há muitos anos tivemos um movimento de colaboração no sentido de intervencionar as catedrais, recuperá-las do ponto de vista patrimonial para as projetar como uma mais-valia de comunhão e de realização das pessoas na sociedade portuguesa. A esse projeto chamou-se Rota das Catedrais. Há de demorar ainda muitos anos a operacionalizar, mas o itinerário de colaboração entre as entidades de foro canónico e o MC está para continuar e para ser aprofundado. Entendemos aqui internamente que era importante dar um sinal público de empenhamento nessa matéria e também transmitir à Conferência Episcopal um sinal muito inequívoco de empenhamento e por isso criámos a divisão para a Rota das Catedrais. Ainda se está a maturar o seu itinerário, um dia destes trará certamente novidades, porque estamos a olhar muito para aquilo que de bem feito está a acontecer pela Europa a este nível.

E a Teodemirvs?
A divisão agrupa todos os monumentos que estão afetos ao instituto do ponto de vista da sua organização enquanto sítios arqueológicos, enquanto castelos, enquanto mosteiros. Todos os monumentos que não têm enquadramento na Rota das Catedrais, estão na Teodemirvs. Essa divisão está a construir um projeto a dois níveis. Um: olhando para os monumentos ver as suas necessidades, mapeá-las, planear as intervenções que precisam de ser desencadeadas no futuro. Dois: trabalhar a sua divulgação e a sua valorização do ponto de vista da fruição pública. O objetivo é poder oferecer um produto que vamos ensaiar em 2026, mas que vai ser materializado no ano de 2027, em que os portugueses tenham um acesso ilimitado do ponto de vista digital ao melhor que cada monumento tem para oferecer.

Este trabalho envolve que recursos humanos?
Neste momento, a equipa ainda é pequena, o objetivo é externalizar algumas das realizações. Vamos contar muito com a colaboração do Turismo de Portugal e das Universidades. Estamos a tentar arrumar a casa cá dentro, projetar os objetivos e o itinerário e depois chamar a nós a colaboração de terceiros que nos vão ajudar a dar um passo em frente relativamente a estas matérias. O nome Teodemirvs tem uma particularidade que faço questão de explicar. No dia 1 de janeiro do ano 572, portanto há 1500 anos, o Estado da altura, centrado no rei Miro dos suevos, publicou lá em cima, em Braga, um decreto que fixava os limites territoriais da arquidiocese. É uma das ações mais importantes do ponto de vista da simbólica e do exercício do poder. O decreto tem um conjunto de informações que merecem ser conhecidas e entendidas. Vou só elencar algumas. Tratava-se de fixar os limites de uma forma aceitável para toda a gente. O rei nomeou uma comissão para estudar o assunto, a comissão foi aos arquivos analisar a documentação, depois foi para o terreno auscultar as testemunhas aldeia em aldeia para reconhecerem os limites, no fim, elaborou uma proposta de fixação dos limites em conformidade com aquilo que tinham lido e ouvido e mandou a proposta a uma comissão de peritos. Ouvidos os peritos e estabelecido o texto final, foi ao rei para promulgação. Tenho dito aos nossos técnicos e aos nossos interlocutores que todos os gestos fundamentais do itinerário da responsabilidade pública de salvaguarda do património cultural em que hoje atuamos estão materializados neste decreto. Alguém propõe uma classificação, os serviços técnicos estudam a proposta, vão aos arquivos fazer a pesquisa para estabelecer o histórico daquele bem, depois vão ao sítio ouvir quem está e ver de que se trata, depois escrevem uma proposta que vai ao Conselho Nacional de Cultura para ser validada pelos peritos, a seguir é elaborada a proposta de decreto, que por sua vez vai a promulgação por quem de direito. Ou seja, todos os gestos significantes da tutela pública por um bem cultural que hoje praticamos estão documentados num decreto do ano de 572.

"O esforço que tem sido feito para manter em dia tudo o que entra e resolver o passivo que vinha de trás é absolutamente extraordinário. Tenho um diretor de departamento e duas chefias de divisão que comummente às 20h, às 21h, ou às 22h, ou às 23h estão a despachar processos que terminam no dia seguinte e eles não os deixam prescrever."

Perguntei-lhe qual tinha sido a sua maior preocupação quando chegou, agora pergunto-lhe qual foi o maior alívio? O que é que estava melhor do que supunha?
A parte melhor que encontrei no instituto é sem sombra de dúvida a qualidade técnica do seu corpo humano. A administração cultural, apesar de todas as mudanças, subsiste com capacidade de intervenção porque os técnicos são de elevada qualidade, não apenas funcional, mas humana. Essa parte segurou outras deficiências e cobriu os problemas com que estamos confrontados. A extinção da DGPC e a criação do instituto Património Cultural foi uma operação que aconteceu sem aquilo que tradicionalmente se faz quando há grandes mudanças, que é o recurso a uma comissão instaladora. Ninguém cuidou de fazer a passagem das competências e dos dossiês, do inventário e dos problemas. Ainda hoje estamos a viver esse passivo que vai demorar tempo a ultrapassar. Os processos de classificação que, por vicissitudes várias, estavam parados há algum tempo já estão a correr na tramitação, embora o serviço só esteja normalizado no próximo ano. Estive a fazer contas, a secção especializada no património arquitetónico ou arqueológico e imaterial do Conselho Nacional de Cultura emitiu 79 pareceres entre dezembro de 2024 e dezembro de 2025. O esforço que tem sido feito para manter em dia tudo o que entra e resolver o passivo que vinha de trás é absolutamente extraordinário. Tenho um diretor de departamento e duas chefias de divisão que comummente às 20h, às 21h, ou às 22h, ou às 23h estão a despachar processos que terminam no dia seguinte e eles não os deixam prescrever.

O PRR, essa fatia de leão na área cultural, representa quanto dinheiro, quantas obras? Faltam sete meses para terminar a sua execução e o que falta realmente fazer?
Entrei no instituto como presidente no dia 5 de junho de 2024, o pacote financeiro que estava alocado ao investimento Património Cultural da componente Cultura do PRR eram 219 milhões de euros. Entretanto, esse pacote financeiro cresceu até aos 243 milhões de euros, o número correto é 243 milhões, 220 mil, 517 euros e 94 cêntimos. Quero dizer que no dia 5 de junho de 2024 estavam adjudicados cerca de 30 milhões dos 216 milhões de euros e à data de hoje [11 de dezembro] 195 milhões dos 243 milhões de euros. Quero também dizer, porque os números importam, que o Património Cultural I.P., enquanto beneficiário final, isto é, executor, tinha em 5 de junho de 2024, 33 milhões de euros no seu contrato e à data de hoje tem 52 milhões de euros. A taxa de esforço que o instituto está a desenvolver para implementar o PRR está em 155% do que tinha naquela altura. Estamos a lidar com cerca de 180 procedimentos de contratação pública no instituto, mais 500 procedimentos de contratação pública desenvolvidos pelos parceiros. Os técnicos desta casa não só são responsáveis pelo desenvolvimento dos procedimentos do instituto para os tais 52 milhões de euros, mas também são os responsáveis técnicos para validar os procedimentos e os processos de todos os outros parceiros, de acompanhar, de resolver e de propor decisões.

Como é que é possível?
Tem sido possível única e exclusivamente graças à competência aliada a elevadíssimos padrões de sentido de responsabilidade e de serviço público. As equipas que estão a trabalhar para ajudar a implementar o PRR estão empenhadas e, direi, levadas até ao limite dos seus esforços no sentido de que a responsabilidade última de um serviço público associado à cabimentação do PRR seja uma realidade.

Em concreto, estamos a referir-nos a que monumentos e a que obras? Qual é a complexidade desta dinâmica?
São 81 operações ou obras, a que se juntam obras em três teatros nacionais e ainda o Programa Saber Fazer. Nas 81 operações temos desde igrejas a museus, passando por castelos. Temos operações de 32 mil euros, por exemplo, a Domus Municipales em Bragança, e temos operações de 19 milhões de euros, neste momento, e falo do Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa. Os financiamentos são os mais diferentes e diversos à escala daquilo que foi projetado ou planeado para os monumentos. No Museu Nacional de Arte Antiga foi planeado um investimento de cerca de cinco milhões de euros, neste momento o investimento está em 8,5 milhões de euros. No Museu Nacional de Arqueologia chegou a estar previsto um investimento de 32 milhões de euros, neste momento está um investimento de 19 milhões de euros, amanhã pode estar um investimento de 22 milhões de euros.

Isto explica-se como?
O que temos feito é uma gestão o mais flexível possível dentro das condicionantes e das circunstâncias de execução por forma a aproveitarmos o máximo do financiamento. Imagine que um monumento tem alocados cinco milhões de euros, por qualquer motivo não consegue executar esse financiamento. A dado momento, retira-se-lhe esse financiamento e transfere-se o dinheiro para outro monumento que tem capacidade de execução.

Isso está a acontecer muito?
Fizemos alterações profundas de financiamento ao longo deste ano por sete vezes. Foram sete as vezes que transferimos verbas entre os projetos para sanearmos problemas de não execução em determinados sítios e potenciarmos em sítios que precisavam de financiamento para que as obras acontecessem. E não vai terminar por aqui, desconfio que ainda vamos ter de fazer uma nova republicação até ao fim do ano para agregar e desagregar e refuncionalizar os investimentos.

Isso prende-se com o mercado de obras públicas?
Sim, e é um fenómeno que não sei como vai ser compreendido daqui a uns anos, quando desaparecer esta circunstância. O facto de haver em simultâneo tantos concursos em empreitada e de o mercado profissional estar esgotado do ponto de vista da sua capacidade fez com que muitas obras tivessem concursos desertos. Nem sequer havia manifestação de interesse. É preciso compreender o seguinte: fazer uma obra em Lisboa não é a mesma coisa do que fazer uma obra Beja. As condições do contexto pesam. Houve dificuldades na distribuição de ferro, houve obras que não tinham condições para a implantação dos andaimes, não havia fornecimento. Chegámos a ver empreiteiros desviar trabalhadores, vimos isso acontecer no mercado. O que procurámos fazer foi tomar todo o tipo de soluções possíveis para cada um dos casos. A entrega dos projetos que foram contratados foi acontecendo a um ritmo demasiado lento em relação àquilo que eram as necessidades. Mas quando se está a desenvolver um projeto, por muito que inste junto de um arquiteto ou de uma equipa projetista para se despachar, não consegue que isso seja mais rápido. A um dado momento, disparámos inúmeros concursos quase em simultâneo de norte a sul do país, e se não era do MC era do Ministério da Justiça, ou era de outro sítio qualquer. Temos milhões a serem injetados na economia mas uma capacidade limitada de absorção e de capacidade de resposta aos concursos, por isso tivemos tantos concursos desertos. E de cada vez que há um concurso deserto põem-se dois ou três tipos de problemas. Porquê? Será que foi o preço que foi mal estimado? São os trabalhos? O que é? Há toda uma análise técnica a fazer. Nalguns casos chegámos à conclusão, por aquilo que eram os ecos das próprias empresas, que o tempo que estava disponível para executar aqueles trabalhos não era suficiente.

Por exemplo?
Vou dar exemplos: Museu de Arte Popular, Museu de Conimbriga, intervenção do Claustro do Cardeal em Alcobaça. São obras que seriam emblemáticas se tivessem sido feitas nesta circunstância. Foram a concurso, foram a concurso algumas até uma segunda vez, por exemplo em Alcobaça, com um incremento financeiro até bastante significativo, e mesmo assim não houve concorrentes. Desistimos dessas obras, redistribuímos o financiamento e não perdemos o dinheiro do PRR. Houve outro tipo de situações em que se desistiu de fazer aquela empreitada mas não se desistiu do monumento, porque foi possível montar outro tipo de empreitada para responder a outra necessidade desse monumento. E houve casos em que se diversificaram os trabalhos para lá daquilo que estava previsto e isso compensou outros casos em que os trabalhos foram anulados.

"Sempre ouvi dizer que enquanto não está tudo feito, nada está feito. E no jogo do deve e haver das nossas concretizações, nada do que fizemos até este momento, e foi muito, terá impacto ou terá significado senão concretizarmos mesmo até ao fim. Tenho pedido às equipas que tenham muito esse sentido, não há que abrandar agora, não há que desistir agora, não há que desviar o olhar agora."

Foi uma engenharia financeira constante?
Constante e com toda a documentação disponível online para consulta na página da Estrutura de Missão. Estão lá todas as alterações. Republicámos em 2 de maio, 8 de julho, 6 de agosto, 1 de setembro, 15 de setembro, 13 de outubro e 27 de novembro de 2025, foram sete republicações em que fizemos a reafetação de verbas.

Tira daqui e põe ali…
Exatamente. E essa reafetação normalmente diz respeito a entre uma dúzia e uma vintena de projetos e pode ser pôr dez ou 20 mil euros, ou mesmo 100 mil, ou até cinco milhões de euros. O que estava previsto inicialmente em sede de PRR para a intervenção no Picadeiro Real era um investimento de 645 mil euros. Mas, como deve calcular, pouco se faz no Picadeiro Real com esse dinheiro. A partir do momento em que tivemos processos que nos libertaram verba, potenciámos essa intervenção onde foi possível. E no Picadeiro Real foi possível fazer e estão a ser executados neste momento cinco milhões e 300 mil euros. É significativo. Aqui, no Palácio da Ajuda, o investimento inicial era de 4,360 milhões de euros. Neste momentos estão alocados ao Palácio da Ajuda 15 milhões de euros. É natural que baixe alguma coisa daqui até ao fim, estamos a pensar fazê-lo. No entanto, este aumento permitiu montar a operação de requalificação integral dos 10 mil m2 de coberturas mais os saguões, a recuperação das três salas que estão com os trabalhos interrompidos desde 1826 ou 28, temos um milhão de euros dedicado a resolver problemas do museu do palácio, desde os lustres à sala de banquetes, dos têxteis, os reposteiros e as cortinas e as alcatifas. Estamos muito empenhados em recuperar as salas patrimoniais do torreão sul, vamos ver se o conseguimos, ainda não está garantido, mas ainda estamos a lutar por isso. As instalações sanitárias do museu, que estão todas uma desgraça, vão ser renovadas nesta operação, o que equivale a mais um milhão e meio de euros. O investimento que está a ser feito aqui é um investimento com sentido patrimonial e estamos contentes com isso.

Nestes sete meses até ao final do período de execução falta essencialmente o quê?
Falta a parte mais significativa. Sempre ouvi dizer que enquanto não está tudo feito, nada está feito. E no jogo do deve e haver das nossas concretizações, nada do que fizemos até este momento, e foi muito, terá impacto ou terá significado senão concretizarmos mesmo até ao fim. Tenho pedido às equipas que tenham muito esse sentido, não há que abrandar agora, não há que desistir agora, não há que desviar o olhar agora. É foco, foco, foco. A meta está ali e temos que chegar lá.

E em agosto haverá festa?
Não. Em setembro vamos começar a comemorar. Em agosto vamos contar todas as horas para juntar as evidências documentais todas e transmitir à Estrutura de Missão. Mas a partir de setembro vamos mostrar aos portugueses os equipamentos abertos. E faremos o mesmo em outubro, em novembro, dezembro.

Se não fosse o PRR, já não tínhamos nada? O que seria dos nossos monumentos? O que vamos sentir e pensar?
Estamos a executar em sede de PRR o equivalente a 12 orçamentos anuais deste instituto. O PRR é uma oportunidade única de fazermos num curto espaço de tempo  investimentos que demorariam décadas.

Nós portugueses, que conhecemos melhor ou pior os monumentos, vamos ter essa perceção que alguma coisa mudou radicalmente neste curto espaço de tempo?
Em muitos monumentos que estão a ser intervencionados essa perceção vai ser um facto. A intervenção recente no Museu dos Biscainhos, em Braga, foi absolutamente extraordinária, ainda estamos a acabar os trabalhos, mas os ecos da população são fantásticos. A intervenção no Museu Abade Baçal, em Bragança, que foi agora reaberto, trouxe ecos extraordinários, as pessoas estão felizes com o que foi feito ali. Foi recentemente inaugurado o Museu Nacional da Música, em Mafra, e não vale a pena dizer o impacto que aquela intervenção conseguiu trazer e a felicidade das pessoas mais afetas a esta área ou até da generalidade da cidadania. Estou convencido de que o resultado final vai ser verificado, vai ser apreciado e vai ser vivido pelas pessoas.

Fala da felicidade que a recuperação destes monumentos trouxe às populações. Qual é o seu papel enquanto presidente do Património Cultural naquilo que diz respeito em fazer com que a nossa relação do dia a dia com os monumentos seja mais vivida, mais notada, mais valorizada ou mesmo mais necessitada?
Vou lhe falar de sonhos. De facto, temos que ter os olhos postos muito no futuro para conseguirmos viver o dia a dia com um sentido de esperança e um sentido motivacional forte. Quero acreditar que o património cultural é um chão comum para todos nós. Que apesar de todas as diferenças que possamos ter ou até cultivar, e vivemos numa sociedade altamente crispada desse ponto de vista, apesar disso tudo, quero acreditar que o património cultural é um lugar de encontro, onde nos possamos todos encontrar. Mas isso não depende apenas do reconhecimento público que é feito através das classificações, não depende apenas de uma intervenção de conservação e restauro tecnicamente competente, nem depende apenas da vontade de cada um de nós de nos relacionarmos ou não com aquele monumento. Depende essencialmente da humanidade que colocamos na nossa existência, na nossa relação com as outras pessoas, na nossa relação com o meio natural em que nos situamos e na nossa relação com as heranças. Precisávamos, porventura do ponto de vista da relação da cidadania com as políticas públicas de cultura, de encontrar novas formas de expressão daquilo que nos congrega, daquilo que nos pode permitir atos colaborativos generosos. As transformações sociais foram enormes, mas ainda não conquistámos um espaço, eu direi, de naturalidade para interagirmos e confrontarmos as diferenças de posicionamento de uns e de outros face à cultura. Gostava que o património cultural proporcionasse o máximo de ocasiões possíveis e imaginárias a todos, gestores, interventores culturais, tutela, técnicos e cidadania para nos conhecermos e nos partilharmos. Se isso acontecer através do património cultural, estas pedrinhas juntas a que atribuímos valor alcançarão um sentido pleno do ponto de vista daquilo que é a oportunidade de encontro e a oportunidade de crescimento. Dizem-me que tenho um lado muito romântico de olhar para as coisas e dizem-me que a vida não é isso, que a vida é essencialmente disputa e conquista de posições, determinação de itinerários e dizem-me ainda que as pessoas precisam de ser conduzidas. Não, o património cultural tem que ser disponibilizado para ser vivido sem que haja uma determinação do agente cultural para guiar o sentir das pessoas. Prezo muito um exercício de liberdade na fruição do bem cultural. Gostava sinceramente que este instituto tivesse a capacidade de oferecer aos portugueses espaços culturais e monumentais tratados, dignos, mas livres de carga seja ela de que natureza for, para que possam ser percebidos em liberdade. Essa tónica ainda vai demorar algum tempo a implementar no terreno.

Isso também passa por saber comunicar um trabalho que é tão invisível? Falamos de conservação, salvaguarda, classificação, estudo, inventariação…
E não é fácil de mostrar. Temos a obrigação de fazer alguma coisa de diferente daquilo que temos feito até este momento, reconheço, no sentido de partilhar estas vivências. Até a tramitação de um processo tem o seu charme, quando explicado. Quando uma portaria sai a classificar determinado bem, a verdade é que houve um escrutínio democrático, um olhar disciplinado e uma comunhão de espíritos que se conseguiu materializar desde que o proponente faz a proposta até que ela é decretada em Diário da República. Há de facto em algumas dimensões das nossas competências um trabalho escondido que também precisa de ser conhecido. Os portugueses sentem o seu património cultural de uma forma muito tangível. Basta ver, do ponto de vista da cidadania, as tomadas de posição quando o castelo está a ameaçar ruir, quando a igreja mete água por não sei o quê, quando o museu não tem as condições que devia ter. Esse carácter atento e reivindicativo é talvez uma das coisas mais impactantes e benéficas que temos em termos de cidadania para lá da fruição. Ao mesmo tempo, torna-se quase titânico procurar responder a tanta necessidade. Gostaria de ver o meu instituto com capacidade para acolher o lado reivindicativo que chega da cidadania e trabalhá-lo no sentido de incorporar a reivindicação nos planos de atuação futuros. E esse mecanismo não está tratado.

Seria esse o seu projeto para o instituto do Património Cultural a seguir ao PRR?
O que pretendo fazer com o instituto no pós-PRR é um bocadinho mais lato do que isso. Tenho uma preocupação, o objeto primário de atenção do instituto é o património classificado, temos que o conhecer, mapear as suas necessidades e temos que fazer uma fila de produção relativamente aos investimentos. Os técnicos do Património Cultural têm de ter a capacidade e têm de conseguir reunir as condições para olhar para o conjunto do património classificado e priorizar as intervenções. O Estado Português não ganha nada em ter investimentos ad hoc ou gizados na base das oportunidades circunstanciais que são determinadas ou pelos fundos ou por uma câmara municipal. Gostaria muito que o planeamento fosse a pedra de toque da vida do instituto.

"Temos que conhecer o estado de conservação dos monumentos e temos que ter essa informação atualizada. Não basta fazer um relatório a dizer que o monumento está bom ou está mau por isto ou por aquilo e depois esse relatório não ser revisitado nos próximos dez anos. E isso tem acontecido."

Um planeamento que servisse dois critérios talvez óbvios: a urgência da conservação e a importância do monumento?
Seria útil que não procedêssemos a um investimento hoje que pode ser feito amanhã sem prejuízo, tendo ao lado um monumento que sem um investimento hoje manifestamente tem um prejuízo no dia seguinte. O planeamento dá-nos garantias de respeito por todos, se o planeamento não existir, nós, com a melhor das boas-vontades, podemos estar a atender a uma circunstância que não é prioritária em relação a outras. O conhecimento do que se passa no terreno, o acolhimento da reivindicação, a sua ponderação, e depois a capacidade de resposta dentro de um itinerário planeado, para mim, é um mecanismo absolutamente fundamental.

Se lhe perguntar quais são as suas prioridades nesse plano em matéria de património material e de património imaterial, o que me diz?
Uma das prioridades que tenho elencada a fazer, e não apenas como projeto de vida para o futuro, é mapear as necessidades do património cultural português. Temos que conhecer o estado de conservação dos monumentos e temos que ter essa informação atualizada. Não basta fazer um relatório a dizer que o monumento está bom ou está mau por isto ou por aquilo e depois esse relatório não ser revisitado nos próximos dez anos. E isso tem acontecido. A monotorização e atualização constante do nosso conhecimento do estado dos monumentos é absolutamente prioritária. É isso que vai determinar a lógica de intervenção, saber onde vão as equipas, onde vão os recursos, onde fazemos os investimentos. Mas, se me perguntar se a minha prioridade se resume apenas ao problema patrimonial, eu direi que não. Enquanto não resolver o problema dos recursos humanos no instituto, não terei capacidade operativa para fazer isso.

Os recursos humanos são o seu maior problema ou é a dotação orçamental?
Não tenho problemas de dotação orçamental, é uma declaração formal que lhe faço. Tenho problemas de gestão orçamental, que é diferente. Os recursos humanos são prioritários porque é preciso completar equipas que não estão de todo apetrechadas para responder a todo o tipo de competências e de problemas, mas também porque é preciso sobretudo fazer a renovação geracional, estamos a perder a oportunidade dos nossos técnicos séniores terem tempo de transmitir, antes de se reformarem, o seu conhecimento às gerações mais jovens. A média de idades no instituto anda à volta dos 55/56 anos e, portanto, a renovação geracional tem que ser promovida. Do ponto de vista humano, a prioridade é precisamente a renovação dos recursos humanos. Do ponto de vista patrimonial, a prioridade é fazer o exercício da monotorização tendo em vista um planeamento adequado de intervenção futura.

E já agora, pode referir-se à gestão orçamental que diz ser complicada?
O problema da gestão deriva da falta de recursos humanos para a fazer em condições. Mas a esperança é sempre irmos melhorando os exercícios por forma a tirarmos o máximo partido das oportunidades. Nos dias que correm, podemos contentar-nos com as tarefas diárias ou dar sempre um suplemento de alma às nossas tarefas. Na nossa vida pessoal como é que fazemos? Temos as nossas obrigações e temos os nossos hobbies. Não sei se é pedir de mais, mas, será possível introduzir uma lógica de hobbies além das tarefas na administração pública? Poderemos um dia destes ter os nossos técnicos a fazer, além do que é o estritamente necessário, também aquilo de que gostam? Acredito que sim, mas estamos ainda longe de chegar a uma situação de bem-estar social a esse nível.