Este artigo faz parte da série “O que eu aprendi com a dor dos outros”, um conjunto de reportagens escritas por um jornalista a partir de entrevistas com profissionais de saúde que acompanham doentes com dor crónica.
A dor, neste momento, é uma parte enorme da minha vida. Porque a estudo e porque a sinto.
Sou psicóloga clínica e da saúde e fiz o meu doutoramento na área da adesão terapêutica, ou seja, estudei o que leva as pessoas a seguir ou não o tratamento e as recomendações médicas. Há pouco mais de dez anos, integrei um projeto de investigação na área da dor, na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP) e, desde então, tenho feito investigação sobre este tema. É assim que estudo a dor.
Em agosto de 2024, recebi um diagnóstico de cancro de mama e tenho uma dor secundária aos tratamentos: uma dor neuropática pós-quimioterapia e uma dor musculoesquelética decorrente dos tratamentos de hormonoterapia. E agora também digo, como ouvi tantas vezes, tantas pessoas com dor dizer: “Há alturas em que me doem os ossinhos todos do corpo.” Então, neste momento, quando falo sobre a dor, já não é apenas a partir do lugar da profissional que a estuda, mas também como alguém que a sente.
A dor é o quinto sinal vital. Tão fundamental como a temperatura, a frequência cardíaca, a frequência respiratória e a tensão arterial. Sabemos que é um dos principais motivos de procura dos cuidados de saúde e que é uma experiência inevitável, mais cedo ou mais tarde na vida. No entanto, apesar de ser universal é, ao mesmo tempo, pessoal e subjetiva.

Ao longo destes anos de investigação, entrevistei mais de mil pessoas com dor. Ouvi muitas histórias, muitas partilhas, muitos casos de sofrimento. Foram investigações muito diferentes, em diferentes contextos, mas, em qualquer estudo que faça, a grande questão é sempre perceber a experiência da pessoa.
É isso que nos permite sair de dentro da nossa própria cabeça, do nosso pensamento, das nossas crenças e perceber as emoções, as histórias, a visão e a atitude dos outros. Essa compreensão é essencial, porque se queremos mudar os comportamentos das pessoas ou melhorar a sua qualidade de vida, temos de atender a essa subjetividade, saber o que pensam e o que sentem.
Porque as pessoas são as maiores especialistas em si próprias, desenvolvem estratégias e formas de resistir, conhecem os seus limites e os seus recursos e as intervenções, para serem bem-sucedidas, têm de partir daí.
Tenho tido a felicidade de fazer muitos estudos que me marcaram. Como a minha investigação sobre adesão terapêutica, por exemplo. Aderir à terapêutica é mais do que tomar a medicação prescrita: é tomar o medicamento na dose certa, à hora certa, de acordo com a prescrição, mas é também cumprir outras recomendações de tratamento para aliviar a dor, como fisioterapia, o exercício físico ou a psicoterapia cognitivo-comportamental.
Este trabalho permitiu-me concluir que, sete dias após a avaliação inicial, 37% das pessoas já não está a aderir à terapêutica de forma correta. Já não tomam os medicamentos certos, à hora certa, na dose certa. Passado um ano, esse número já subiu para 51%. Fui tentar perceber por que é que isso acontecia e identifiquei que na origem destes números estão precisamente crenças. Como a perceção de ineficácia dos medicamentos ou preocupações com eventuais efeitos secundários. O que isto mostra com clareza é que são as representações da doença e do tratamento, bem como os preconceitos, que conduzem a certos comportamentos.
Vou dar o meu próprio exemplo para explicar isto: na minha família não há nenhum caso de doença oncológica, eu não tenho comportamentos de risco e tenho um bom estilo de vida. Ora, isto criou em mim uma crença de que seria imune ao cancro. Quando senti dor na mama direita e um nódulo, a representação de ameaça que esta descoberta significou para mim foi zero. Zero, nenhuma. Porque eu tinha a crença de que nunca teria uma doença oncológica. Portanto, isso levou-me a um comportamento: ignorei o assunto e adiei os exames. Quando finalmente os fiz, fui diagnosticada com cancro da mama já no estádio 3.
Como é possível? Como é possível que eu, uma profissional de saúde que faz investigação também na Unidade de Dor do IPO, tenha tomado esta decisão? É possível porque estamos todos carregados de preconceitos e a forma como percebemos a realidade determina o nosso comportamento que, por sua vez, vai ter implicações claríssimas no diagnóstico e no tratamento. E é por isto que é necessário estudar as motivações, as crenças e as perceções das pessoas para as ajudar. Não basta dizer-lhes “faça este exame” ou “tome este medicamento.”
“É preciso ter coragem para falar da dor que se sente”
Apesar das conclusões e percentagens que saíram dos estudos que fiz, talvez o que de mais importante retirei de todas estas conversas é que a dor é inevitável, mas o sofrimento pode ser atenuado quando há compreensão e humanidade. Quando há o cuidado de não reduzir a pessoa ao sintoma.
O meu compromisso como psicóloga, como investigadora e como pessoa que vive com dor é dar voz a estas pessoas. Muitas vezes elas sentem-se invisíveis. Há muito esta ideia de que quando uma pessoa fala na sua dor está a ser “queixinhas”. Isso é entendido como um sinal de fraqueza. Não é assim: é preciso ter coragem para falar da dor que se sente. E quem está do outro lado, a ouvir, precisa de saber escutar. Nós temos muito esta necessidade de querer dar soluções. Se alguém se queixa, temos tendência para dar sugestões: “Já tentaste isto?”, “Já fizeste aquilo?”. Ou então falamos sobre nós e sobre a nossa experiência: “Pois, eu uma vez também tive isso” ou “Quando a minha tia teve isso, fez aquilo.”
Quando uma pessoa com dor se queixa a um familiar ou amigo, não quer soluções, nem quer as histórias do outro, quer apenas ser escutada. O melhor que lhe podemos oferecer é empatia. Ouvi-la, tentar perceber o que está a sentir e dizer qualquer coisa como: “Compreendo e lamento o teu sofrimento.” Dar oportunidade à pessoa de contar a sua história e ser ouvida é importantíssimo. A literatura científica e a experiência clínica mostram-nos que o silêncio pode agravar o sofrimento e a partilha pode aliviá-lo.
Há muita coisa que sabemos sobre a dor, mas também ainda há muito por fazer. A Inteligência Artificial é uma realidade que não devemos temer e deveríamos explorar mais, já que começam a surgir muitas soluções e aplicações, tanto para avaliação, como para intervenção na dor. Interessa-me também a questão dos suplementos e vitaminas de venda livre. Muitas vezes são vendidos como supostas soluções e penso que seria importante termos um retrato do que está a ser consumido e como.
Estou também envolvida, aqui na FMUP, num projeto para a criação de um laboratório para avaliar e quantificar a função sensorial e perceção da dor e, por outro lado, gostava de fazer mais investigação na área da dor pélvica, uma problemática pouco falada. Há muito a fazer. E eu sou uma formiguinha, muito pequenina, mas tenho este desejo grande de fazer coisas com outras pessoas e pelas outras pessoas. E não é pelo ego. Os egos não têm espaço no cemitério, que é onde todos vamos parar: aí só está o nome, a data de nascimento e a data de morte. Mas enquanto cá estamos, se pudermos, devemos fazer o que estiver ao nosso alcance pelos outros. Até porque, um dia, “os outros” podemos ser nós.
“O processo de doença e de dor não é bonito”
Sou psicóloga porque sempre quis ouvir as pessoas e as suas histórias. Faz parte da minha maneira de ser. Lembro-me que, quando era pequena, ia para a aldeia da minha bisavó, em Trás-os-Montes, e em vez de ir brincar com as outras crianças ficava sentada junto daquelas velhinhas todas vestidas de preto que me contavam as suas vidas.
Como investigadora é isso que faço. Escuto as pessoas. As entrevistas, no contexto de investigação, são essencialmente isso: uma escuta ativa, sem preconceitos. Ao contrário da psicologia clínica ou da psicoterapia, como investigadora não estou ali para fazer uma intervenção terapêutica, estou a recolher um testemunho e a tentar entender uma experiência pessoal. E acho que isso permite ouvir melhor, ouvir mesmo, ouvir a fundo.
Quando penso no que essas histórias, essas partilhas, essas escutas todas me ensinaram, penso imediatamente na capacidade de aceitar a vulnerabilidade. Qualquer um de nós, quando passa por uma situação muito difícil tem de começar a partilhar a sua narrativa para lidar com a situação. E talvez seja isso que eu estou a fazer agora mesmo. Precisamente porque aprendi com os outros que isso é importante. E apesar de ser muito difícil falar a partir deste lugar em que não me posiciono só como profissional de saúde e investigadora, mas também como doente com dor, acho que tenho essa obrigação moral e ética.
No último ano tenho passado por diversos processos de adaptação à doença e à dor, e vejo que é realmente um processo muito complicado. E uma das coisas mais interessantes para mim foi compreender como continua a ser difícil apesar de todo o conhecimento que tenho. Na verdade, foi um choque perceber que o saber científico não nos protege da nossa própria vulnerabilidade. Mas ter ouvido antes de chegar aqui tantas histórias de pessoas com dor, tão diferentes, deu-me uma bagagem que acabou por me ajudar no meu caminho.
O processo de doença e de dor não é bonito. A mim, não me trouxe nada de bom, nem fez de mim uma pessoa melhor. Quando muito, enfatizou uma característica que sempre tive: ser muito assertiva e ter o coração na boca. Hoje talvez seja muito mais capaz de não me sujeitar a fazer fretes. Digo com mais facilidade “não quero”, “não gosto”, “não me apetece”. Livro-me, sem culpa, do que não me interessa.
Por outro lado, acho que me deu uma empatia acrescida. Claro que eu sempre fui capaz de ter empatia, até porque fui formada para isso, mas agora percebo, realmente, muitas das narrativas partilhadas por quem entrevisto de uma forma diferente.
A vida com dor não é a mesma
A nossa dor é sempre nossa. É tão íntima que, por vezes, parece impossível partilhá-la. E pode ser tão grande que parece impossível lidar com ela.
Quando alguém diz a um profissional de saúde “Prefiro morrer a viver assim”, a reação muitas vezes é de espanto, medo ou incompreensão. Há quem entenda essa frase como um desejo literal de morrer. Há quem, com a melhor das intenções, fuja do desconforto e responda com lugares-comuns: “Pense nas coisas boas, nos seus filhos, nos seus netos.”
Hoje, vivendo este processo de doença e de dor, percebo esse sentimento de uma forma que nunca percebi como profissional. Tenho tantas coisas boas na minha vida — uma filha extraordinária, um marido maravilhoso, amigos que nunca me largaram, colegas incansáveis, um trabalho que adoro — e, ainda assim, há momentos em que me dói cada osso do corpo e penso precisamente isso: “prefiro morrer a viver assim”. Não porque queira realmente morrer, mas porque, naquele instante, a dor é muito grande e tenho dificuldade em lidar com ela. E depois há as nossas boias — e cada pessoa tem as suas — que nos mantêm à tona quando tudo pesa.

Se há algo que aprendi com a dor dos outros é que as boias às quais se lança a mão são muito diferentes de pessoa para pessoa. Há quem encontre conforto na partilha e nas atividades com outras pessoas com dor, quem recorra à religiosidade ou espiritualidade, quem prefira o conforto do seu sofá com uma botija de água quente e um programa de que gosta na televisão. E não há coisas certas ou erradas, cada um tem de descobrir o que o conforta e lhe permite seguir em frente.
No meu caso foi o trabalho. Foi uma forma de manter a minha identidade e de não ser só a minha doença e a minha dor, deu-me sanidade mental e capacidade de resistência. Levantava-me e tinha um objetivo — e isso, eu já sabia quer pela teoria, quer pelas experiências ouvidas — que é talvez o mais importante.
Lembro-me que durante este processo houve uma altura em que fui fazer entrevistas ao IPO-Porto. Como eu estava de máscara, uma doente perguntou-me: “A Dra. está com Covid?” e eu respondi-lhe “Não, estou com cancro.” E a partir daí houve uma partilha diferente, muito mais profunda. Uma partilha feita de silêncios cheios de significado.
"Quando alguém diz isto a um profissional de saúde, a reação às vezes é de espanto, medo ou incompreensão. Há quem fuja do desconforto e responda com lugares-comuns: 'Pense nas coisas boas, nos filhos, nos netos.' Hoje, vivendo este processo de doença e de dor, percebo esse sentimento de uma forma que nunca percebi como profissional. Tenho tantas coisas boas na minha vida mas há momentos em que me dói cada osso do corpo e penso precisamente que 'prefiro morrer a viver assim'.”
Também usei estratégias menos convencionais. Eu tinha um cabelo comprido e maravilhoso que adorava e que perdi. Então, tive sete perucas. Um dia aparecia loira, outro dia ruiva, outro de cabelos pretos, às vezes de cabelo curto, outras vezes de cabelo comprido aos caracóis.
Há outra coisa que já tinha entendido como psicóloga e investigadora que agora, como paciente, tem mexido comigo. O hábito que os profissionais de saúde têm de dizer ao doente, depois da alta ou de um tratamento agressivo “Agora é fazer a sua vida normal.” Detesto esta frase. O que é isso, “vida normal”? Todos sabemos que não existe. Nós não somos os mesmos depois de uma mera conversa — como é que alguém com cancro ou com dor, depois de um tratamento devastador, pode simplesmente “voltar à sua vida normal”? Não pode. Porque a vida já não é a mesma. Nós também não.





