O galego Agustín Álvarez entrou, com outros dois tripulantes equatorianos, num narcosubmarino. A missão era complicada, mas o pagamento compensaria: quase 50 mil euros. Agustín só tinha de pilotar a embarcação e fazer uma travessia histórica pelo Atlântico, entre a Colômbia e a Península Ibérica. A bordo, os três tripulantes levavam consigo 152 fardos de cocaína — mais de três toneladas de droga —, com um valor de mercado que podia chegar aos 123 milhões de euros. O que Agustín não sabia é que, sentado no seu gabinete em Lisboa, um analista especializado em operações de combate ao tráfico de droga começaria em breve a prestar muita atenção àquele transporte. Nesse mesmo edifício, onde Gustavo* seguia com atenção os avanços da embarcação carregada de droga, já estava a ser coordenada a ação policial que levaria a uma apreensão histórica do primeiro narcosubmarino a cruzar o Atlântico.
Gustavo é apenas um entre os vários analistas do Centro de Análise e Operações Marítimas — Narcóticos (o MAOC, na sigla em inglês). Aquela embarcação de Agustín foi, também, apenas uma das muitas que regularmente cruzam o oceano para transportar drogas até à Europa. E Portugal é uma das principais portas de entrada para esses produtos.
Ações de vigilância como a que Gustavo realizava naquele final de 2019 repetem-se desde setembro de 2007. Nesse ano, sete países da União Europeia juntaram-se para tentar combater uma “guerra que não se pode vencer” contra os traficantes de droga. “É um esforço constante que só consegue ser efetivo se as várias entidades e países cooperarem, e se isso for transversal a polícias, alfândegas, militares e à parte judicial ou judiciária”, defende José Ferreira, português que está há quase 30 anos a combater o narcotráfico e que em setembro de 2025 se tornou diretor-executivo do organismo europeu.
Quem sobe os degraus dos três pisos do MAOC vai sendo recebido pelos cumprimentos dos vários elementos que ali operam — e são quase sempre dirigidos em inglês. À primeira vista, não se distingue aquele espaço de uma qualquer empresa com trabalhadores de diferentes países. Mas a decoração denuncia algumas diferenças. Nas paredes estão afixados quadros que elencam as inúmeras operações em que o organismo participou ao longo dos últimos 20 anos: veleiros, lanchas, semi-submersíveis. Há de tudo, mas todas as embarcações ali anotadas têm um dado em comum: quando foram intercetadas, vinham carregadas com várias toneladas de droga.

As portas dos corredores abrem-se para os vários gabinetes onde se concentram oficiais de ligação que fazem a ponte entre o MAOC e os países que representam, todos eles membros do organismo. Mas as diferentes divisões deste edifício nevrálgico no combate à droga não são preenchidas apenas por militares e polícias. Também há civis que, diariamente, se sentam numa sala de analistas e, ainda que não tenham formação policial, assumem uma posição essencial nesta guerra sem fim.
Pelo menos duas vezes por semana, os gabinetes ficam vazios e os oficiais de ligação rumam à sala de reuniões, onde, sentados à volta de uma larga mesa oval, partilham informação sobre potenciais alvos sensíveis, discutem o apoio de cada país às operações em curso e acompanham a evolução dos trabalhos realizados no MAOC. Para o sucesso desta empreitada é fulcral a confiança entre as várias entidades, que, não sendo obrigadas a revelar informação obtida pelas forças e serviços de segurança dos respetivos países, entendem a necessidade de estarem todos a remar para o mesmo lado.
Civis, militares e polícias organizam-se numa mistura única que tenta traduzir em sucesso a aposta dos diferentes países. “Esta mistura é o que nos torna únicos. Isto não é comum, não há estruturas como a nossa em muitos lados, especialmente deste lado do Atlântico. Essa é a primeira componente da eficácia do nosso funcionamento”, diz José Ferreira. Quando iniciaram a missão, há quase 20 anos, os veleiros eram o principal alvo. Hoje, os narcotraficantes, que se organizam “como uma verdadeira multinacional”, adaptaram-se: têm lanchas rápidas e narcosubmarinos muitos difíceis de detetar, mas que não são imunes à malha do MAOC.
O diretor contrapõe: “Aqui não fazemos investigação criminal”. Então, afinal, que trabalho é realizado no MAOC? O que levou à sua criação? Porque está este organismo em Portugal? Porque tem sido tão importante no combate ao tráfico de droga e porque tem sido amplamente elogiado por ministros internacionais, pelo centro do poder político europeu, em Bruxelas, e por autoridades judiciárias de vários países?
“Os meios são escassos”. A necessidade de organizar e coordenar melhor o combate aos ‘narcos’ criou o MAOC
Em 2007, quando o Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (também sediado em Lisboa) revelou algumas “mensagens positivas” sobre a evolução do consumo da droga na União Europeia, já a criação do MAOC havia sido formalmente oficializada há dois meses. No documento, a agência afirmava que as considerações otimistas eram “ensombradas pela elevada mortalidade relacionada com o consumo de droga e com o aumento do consumo de cocaína”.
No ano anterior, a produção desta droga tinha atingido um dos valores mais elevados até então verificados (quase 900 toneladas). Entre 1998 e 2006, os números de apreensões tinham subido de 32 toneladas para 121, segundo dados das Nações Unidas citados pelo portal Insight Crime. A tendência apontava para o crescimento do consumo e, assim, sete países decidiram unir esforços e meios: França, Irlanda, Itália, Espanha, Países Baixos, Portugal e Reino Unido. Entretanto, Bélgica e Alemanha decidiram juntar-se a uma missão que contou, desde o primeiro momento, com forte cooperação dos Estados Unidos da América.
Sentado à mesa onde regularmente se reúne com oficiais de ligação — incluindo os norte-americanos da Drug Enforcement Administration, ou DEA, o organismo que combate o tráfico de droga nos EUA —, José Ferreira explica ao Observador que estes países identificaram duas necessidades prementes. Primeiro, ao nível da coordenação “dos meios navais e aéreos disponibilizados para as abordagens em alto mar de embarcações suspeitas de transportarem produto estupefaciente”. No caso do MAOC, e tendo em conta “as áreas geográficas em que o mandato incide”, esse trabalho centra-se, sobretudo, em “cocaína, da América do Sul, e canábis, de Marrocos”.
“Os meios navais e aéreos são escassos e normalmente pertencem aos militares, que têm outras prioridades que nem sempre se conjugam com as prioridades das polícias. E [os meios] também são bastante caros”. Até este organismo internacional ser criado, podia acontecer um país estar a postos para fazer uma apreensão e, por não ter meios posicionados perto do alvo, a operação ficar comprometida — ou, pelo menos, não ter soluções mais imediatas. Com o MAOC, surgiu a possibilidade de um país receber ’emprestados’ os meios de outro Estado. “Hoje, podemos ter uma investigação de Portugal, Espanha e Itália, mas o meio aéreo acionado para fazer a vigilância ser americano e depois a abordagem pode ser feita por França”, exemplifica o diretor.
A segunda necessidade, que motivou a criação de “uma estrutura de analistas altamente especializados com acesso a ferramentas que nem todos os países têm”, esteve relacionada com a “coordenação e com a partilha da informação”. Além de conhecerem os meios disponíveis, era essencial criar uma plataforma que centralizasse os conhecimentos das várias investigações em curso. “Para as operações ocorrerem, tem que haver, naturalmente, informação. E essa informação tem que ser não só partilhada, mas também coordenada. Temos que garantir que o país A não está a investigar o mesmo que o país B e C. E isso também é uma das funções que temos aqui”, acrescenta o diretor executivo.

José Ferreira deixa claro que o MAOC não inventou a “coordenação” nas “investigações internacionais”. “Já havia emprego de meios navais e aéreos de outros países em operações deste género antes de existir o MAOC. E quando o MAOC acabar, se algum dia acabar, há de continuar o esforço de coordenação internacional para que este combate seja efetivo. O que o MAOC vem trazer é uma organização internacional que oferece aos países — não só aos países membros, mas também a outros que, não sendo membros, podem recorrer ao MAOC para melhor coordenar informação — mais efetividade, mais eficácia” no combate ao tráfico.
Este combate, continua o novo diretor executivo, “tem que ser conjunto, tem que ser holístico, tem que ser coordenado e tem que haver um esforço de todos de uma maneira em que se coordene e se partilhe a informação relevante e que se coordene e se partilhe, também, os meios navais e aéreos necessários”.
A grande conquista do organismo sediado em Lisboa prende-se mais com a centralização da informação para combater o fenómeno do que com a cooperação multilateral, que já se verificava antes. Mas, ao mesmo tempo, se antigamente era preciso “bater às portas”, de forma menos coordenada, para aferir a possibilidade de usar meios ’emprestados’, com o MAOC é criada uma “mais valia” que permite aos países terem informação permanente sobre os meios disponíveis, mesmo que eles sejam de outras entidades. “Apesar de sermos neste momento dez países — nove países europeus, mais os EUA —, a ação do MAOC não protege só esses nove países europeus.”

MAOC vive da “confiança” entre entidades — e está a crescer: “Estamos em conversações com outros países”
De costas para a janela e de frente para a entrada na sala de reuniões, onde a parede branca é preenchida por dezenas de brasões de autoridades militares e policiais, José Ferreira elabora sobre a confluência de fatores que levaram a que o MAOC fosse instalado em Lisboa. “Quando este projeto surge, obviamente que há uma liderança. Portugal, já nessa altura, tinha muito protagonismo [no combate ao narcotráfico]. Portugal era, como é, uma porta de entrada de cocaína e de haxixe na Europa.”
Essa posição de liderança numa fase inicial, fruto das “operações internacionais relevantes” que Polícia Judiciária, Marinha e Força Aérea levavam a cabo, tinha a concorrência de países que estiveram mais envolvidos na criação da organização internacional financiada pelos países e pela Comissão Europeia, como o Reino Unido, a França e Espanha. “Mas as negociações acabaram por trazer o centro [para Lisboa]. Entendeu-se que Portugal fazia sentido”, à semelhança do que acontece com outros organismos — como a Agência da União Europeia sobre Drogas e a Agência Europeia da Segurança Marítima.
E foi mesmo na capital portuguesa que se começou a desenvolver um trabalho que tem crescido nos últimos anos a todos os níveis. Alemanha e Bélgica foram as únicas duas adições, há mais de um ano, mas o diretor revela ao Observador que há mais lugares na mesa a serem discutidos. “Estamos em conversações com outros países que demonstraram interesse em juntar-se”. Além de ter mais países, em relação a 2007, o MAOC já tem mais oficiais de ligação, mais analistas, mais orçamento, mais participações em apreensões e mais droga apreendida.
Mas, em concreto, o que acontece no MAOC? A estrutura divide-se entre cerca de uma dezena de analistas e os oficiais de ligação (que podem ser militares ou polícias, de diferentes proveniências: alfândega, marinha, força aérea, exército, polícias, entre outros). “O MAOC, neste momento, tem nove países membros e uma parceria muito especial, desde a sua criação, com os Estados Unidos da América. Esses países têm oficiais de ligação fisicamente presentes”.
Estes oficiais de ligação, que vão sendo trocados periodicamente, permitem que haja um contacto constante entre todos os países sobre as investigações em curso, garantindo que todos estão a par do que está a ser feito a cada momento. Esta partilha de informação, como recorda José Ferreira, não é obrigatória, mas os países que querem pertencer ao MAOC têm que saber que não devem fornecer informação a apenas um país — uma vez que, neste organismo, qualquer informação a que se chegue pode ser benéfica para todos os envolvidos. “Se querem utilizar a plataforma MAOC, e é voluntário, [os países] sabem que vão partilhar com todos ao mesmo tempo e sem restrições. A lógica disto é a paridade na partilha de informação”.
Como exemplo: anteriormente, a Polícia Judiciária poderia estar a desenvolver uma investigação e partilhar informação com as autoridades espanholas por identificar um veleiro usado para tráfico de droga com bandeira de Espanha. Com o MAOC, o objetivo é que os países partilhem os dados com todos ao mesmo tempo, porque no momento da investigação até se pode entender que não há nenhum interesse de outro país para o caso, mas passado pouco ou muito tempo, esse país pode acrescentar alguma informação que tem na sua posse e que não iria partilhar se não soubesse da investigação em curso. “É voluntário”, reforça o diretor, “mas se trouxerem informação para aqui, as regras são estas: partilhar com todos, independentemente da conexão ao caso”.

Entre a informalidade dos almoços na copa e a formalidade das reuniões bissemanais, os oficiais de ligação estabelecem vínculos de confiança que são essenciais para a partilha de informação. A ainda reduzida dimensão do MAOC promove a relação próxima entre todos os intervenientes.
Assim, o trabalho do MAOC segue, habitualmente, uma cronologia, que começa sempre com o registo de um alvo: esse objeto, que pode ser uma embarcação ou uma aeronave, é sinalizado pelo país “que traz a informação ao centro”; depois, os dados são trabalhados pelos analistas com as múltiplas ferramentas que têm ao seu dispor, num processo ‘vaivem’ com os oficiais de ligação que têm acesso à informação de cada país. Essa sequência de acontecimentos termina quando há fortes suspeitas de que é de facto um caso de tráfico de droga — e se avança para a tentativa de neutralizar o alvo.
Nesse último passo, volta a entrar em campo outra mais valia do MAOC: a articulação com os oficiais de ligação para definir qual o país em melhores condições de fornecer um meio útil para intercetar o alvo. “Quando há uma operação em que um pesqueiro é suspeito de estar carregado com cocaína do Brasil e que vem a atravessar o oceano, os investigadores e os militares têm informação relativamente aos meios navais e aéreos dos seus países que estão disponíveis, onde é que estão e o que é preciso fazer para os ativar e se podem ou não colaborar na operação. Isto acontece quase todas as semanas”, explica José Ferreira.
Esta articulação funciona não só com os países que integram o organismo, mas também com “parceiros” privilegiados como Cabo Verde, Senegal, Colômbia e Brasil. Porque há investigações sobre determinados alvos que são em zonas do globo onde é mais difícil ser um país europeu a fazer a interseção, além de questões técnicas como as datas limite para “apresentação dos detidos em prazo útil à jurisdição criminal”. Por estarem tantos oficiais de ligação no mesmo edifício e em contacto direto, o MAOC dá alguma agilidade aos contactos entre diferentes países, que não ficam presos às burocracias que muitas vezes atrasam as apreensões.
“Temos aqui um oficial de ligação de Espanha que, no caso concreto, é da Polícia Nacional. Apesar disso, ele está aqui a representar não só a Polícia Nacional de Espanha, mas também a Guarda Civil e as alfândegas, e com isso tem acesso às bases de dados e à informação de todas estas entidades em Espanha. Tem também acesso a toda a rede de oficiais de ligação que está espalhada pelo mundo da Polícia Nacional de Espanha, da Guarda Civil de Espanha e da alfândega de Espanha. E isto é multiplicado por dez, porque são dez os países que estão aqui. O MAOC tem acesso a uma rede de informação e de oficiais de ligação, que são centenas, porque correspondem a toda a estrutura que os países, de forma generosa, e sem custos para o MAOC nem para a União Europeia, colocam à disposição deste centro que serve de barreira não só para o tráfico de droga para estes nove países, mas para toda a União Europeia e para além da União Europeia”.
Assim, depois de os alvos serem sinalizados, os oficiais de ligação recorrem aos seus contactos nas autoridades locais para perceber que meios podem avançar para a apreensão. “Por isso é que é importante ter aqui oficiais de ligação, porque não são só eles que contribuem para o esforço no combate ao tráfico de droga. Coordenado através do MAOC, é toda uma rede de oficiais de ligação de colegas de contactos que eles próprios têm”. As investigações desenvolvidas sempre pelos países encontram no MAOC um parceiro privilegiado que não se encerra nos oficiais de ligação: a última e discreta peça vem da sociedade civil.

Os civis que combatem o narcotráfico. “Responsabilidade é de todos, temos um escrutínio alto”
“É como se fosse um puzzle. Os analistas vão acrescentando peças e vai-se construindo, pouco a pouco. Às vezes é lento, outras vezes é rápido”, resume Maria*, uma das analistas que acompanha a conversa do Observador com o diretor do MAOC. A sala onde trabalham os analistas fica no mesmo piso da divisão das reuniões, num espaço rodeado de mapas e com vários computadores onde são seguidos milhares de pontos a navegar pelo oceano.
Gustavo, o outro analista presente, admite que a única coisa que o ligava ao mundo do narcotráfico, antes de chegar ao organismo europeu, era a curiosidade obsessiva por uma realidade que já inspirou inúmeras séries, filmes e livros. Agora, é ele que inspira produções como a Operação Maré Negra — uma série luso-espanhola para a Prime Video, com apoio da RTP —, que retrata a travessia do primeiro narcosubmarino apanhado na Europa.
“Temos uma estrutura de analistas que são contratados diretamente pelo MAOC, que têm um grau de especialização muito elevado e acesso a ferramentas que são essenciais para este combate e que nem todos os países têm”, reforça o diretor. Nos dois enormes ecrãs táteis perto das cabeceiras da mesa oval, os analistas representam a visão de um dia normal de trabalho. Além da já referida sinalização pelos países que investigam um alvo — no caso do MAOC, a maioria dos alvos são barcos, mas também há trabalho desenvolvido na aviação privada —, também há casos em que é um analista do MAOC a identificar uma possível embarcação utilizada para o narcotráfico.
“Os analistas começam a trabalhar na informação com as bases de dados e com as ferramentas que têm. Depois é um processo vaivém, com os oficiais de ligação, que também têm acesso à informação e que pedem aos seus aos seus países informação que possa complementar”. Reunidos mais dados, os analistas verificam várias informações. Quais? O histórico de movimentos da embarcação, quem faz parte da tripulação, qual a bandeira ou quem são os donos do barco.

“A informação vai crescendo. O objetivo é que para qualquer informação que seja trazida para o MAOC consiga ser devolvido algo mais ao país que a trouxe. E, se não conseguir, pelo menos que dê feedback a dizer que não há mais nada. Não sei a percentagem, mas diria que em mais de 80% dos casos acrescentamos alguma coisa a qualquer informação que entra aqui” — seja um nome de um tripulante ou o último porto onde esteve determinada embarcação.
É nesta análise que entra, novamente, a centralização da informação reunida por diferentes entidades internacionais. Se um veleiro tem um tripulante espanhol, uma bandeira inglesa, um dono norte-americano e registo de movimento em portos portugueses, todos estes países devem cooperar para perceber se há ou não alguma irregularidade na sua atividade. “É um processo circular de troca de informação, quer dos países quer de nós próprios, analistas. Estamos sempre a tentar adicionar valor às informações que trazem para cá”, completa Gustavo, no MAOC desde 2017, quando tinha apenas dois colegas na sala de analistas.
Hoje, ultrapassam uma dezena, o que reflete o crescimento do organismo e a maior confiança depositada pelos países no MAOC. “O número de analistas foi crescendo à medida que os países foram pondo cada vez mais informação e partilhando mais as suas investigações com o centro”, acrescenta o analista. Apesar de chegarem sem passado na área, garantem ao Observador que têm “muita formação” dada pelo MAOC, mas também pelos países que o integram.
Gustavo e Maria reforçam a importância de um trabalho que consideram ser “completamente diferente”, que é realizado por civis e por militares/polícias, na tal “mistura única” que dizem “resultar muito bem”. “O que fazemos é o apoio às investigações dos países. E depois temos um papel aqui no detetar de tendências a nível do tráfico de droga e na elaboração de relatórios”. Além da formação intensa dos primeiros tempos no MAOC, estes profissionais lidam com treinos teóricos contínuos para corresponder à adaptação constante da realidade do combate ao tráfico de droga.
Assim, conscientes da realidade que têm em mãos, mas sem grandes alarmismos, sentam-se diante dos ecrãs e analisam toda a informação que é transmitida pelos países ao MAOC. Depois de receberem os dados por e-mail, comparam com os dados que têm nos arquivos e tentam dissecar a atividade do barco, procurando tendências mais facilmente detetadas por quem tem experiência na área.
Nos ecrãs da sala, multiplicam-se os pontos e setas que desbravam os oceanos — principalmente o Atlântico — num mapa onde se cruzam viagens suspeitas e transportes absolutamente banais de pessoas ou mercadorias. Em aplicações acessíveis a todas as pessoas, como o Marine Traffic, é possível acompanhar as embarcações com AIS (sistema de identificação automática) — o GPS dos barcos que tem que estar obrigatoriamente ligado nas embarcações com mais de 300 toneladas. Os de menores dimensões, habitualmente usados no tráfico de drogas, não são obrigatórios, o que leva a que os países tenham de utilizar outros métodos. O MAOC não intervém quando se trata do transporte de droga por contentores.
Quando têm informação sólida sobre um alvo, transmitem-na aos oficiais de ligação, mas apenas quando há “muita confiança” nesses dados. “A informação que sai da equipa de analistas é revista e partilhada pelos analistas como um todo, antes de ser disseminada. A responsabilidade é de todos, como uma equipa. Temos um escrutínio alto”, explica Maria.
Além das pequenas embarcações, também os narcosubmarinos escapam à obrigatoriedade do AIS, o que dificulta a missão do MAOC. Mas esta realidade cada vez mais presente no tráfico de droga, sobretudo cocaína, não passa despercebida ao organismo, que só no último ano foi essencial para a apreensão de pelo menos 8,7 toneladas de cocaína apreendidas pela Polícia Judiciária em pleno Oceano Atlântico. Em março, os investigadores portugueses detetaram um semi-submersível com “tecnologia de ponta” que levava traficantes pagos “principescamente” para levar sete toneladas de cocaína da América do Sul para a Península Ibérica. Em novembro, nova apreensão: desta vez, um narcosubmarino “artesanal” com quatro tripulantes e 1,7 toneladas de cocaína.
Muitas vezes, a travessia habitual do Atlântico contempla a utilização de embarcações de apoio, que auxiliam o semi-submersível, ou um barco, com mantimentos ou combustível, o que aumenta o raio de atenção de quem controla os movimentos marítimos dos narcotraficantes. Naturalmente, nem o MAOC nem os países responsáveis pelas investigações conseguem prever quando um barco vai partir da América do Sul, ou quando vai, caso aconteça, passar a carga para uma lancha. Por isso, há sempre analistas disponíveis para realizar o trabalho necessário.
Os elementos do MAOC destacam a função de “complementaridade” do seu trabalho. Não se substituem às investigações que vão sendo desenvolvidas em cada país, mas reforçam-nas com as suas análises. “Trabalhamos lado a lado com os oficiais de ligação e estamos ao serviço dos países. Estamos ao serviço dos países do MAOC e não só, dos outros também”, reforça Gustavo.

Portugal ainda é “porta de entrada” para cocaína. Rotas pouco mudam, mas meios são diferentes
Desde que o MAOC surgiu na cena internacional que alguns dos principais responsáveis pelo tráfico de droga no mundo se alteraram. No entanto, como recorda o diretor do organismo, há um respeito dos narcotraficantes pela “tradição” que os leva a seguir o negócio praticamente dentro dos mesmos moldes.
“Tirando uma ou outra apreensão, no MAOC trabalhamos 99% com cocaína e com canábis. A cocaína tem três países produtores fundamentais: Colômbia, Peru e Bolívia. Portanto, obviamente, as rotas começam aí. Ou seja, há rotas que são as originais, as básicas desses países produtores para os mercados de consumo, sejam os Estados Unidos, seja Oceânia, seja na Europa. No caso, estamos a falar da Europa e isto é uma rota evidente”, clarifica José Ferreira.
O responsável pelo organismo chegou à PJ em 1998 e acabou colocado na Unidade Nacional de Combate ao Tráfico de Estupefacientes, onde chegou a adjunto do diretor, em 2010. Cinco anos depois aterrou, pela primeira vez, no MAOC, como chefe de operações. A vasta experiência que acumulou consolidou-se em 2023, quando foi nomeado conselheiro político para assuntos de segurança e drogas na Delegação da União Europeia na Colômbia.
Sobre a relação com o país sul-americano, destaca não só a experiência pessoal, mas a rede de oficiais de ligação dos países MAOC, que reconhecem a importância do país que alberga muitos cartéis com extensão na Europa. “Estive dois anos na Colômbia antes de vir para cá. E lá há 16 países europeus com missão diplomática: metade tem oficiais de ligação. E esses [8] são todos países MAOC.”

As organizações criminosas vão-se adaptando às autoridades e percebem que, pelas apreensões, a polícia está mais ou menos atenta a determinado local. Assim, começaram a surgir alguns “países de trânsito”, com “rotas” e modus operandi alternativos: os traficantes utilizam tanto a África Ocidental — um “entreposto temporário da cocaína” traficada, depois, para a Europa — como as Caraíbas. “Há um conjunto de países que não sendo produtores de cocaína, são países ou regiões de trânsito.”
Mas, de modo geral, com mais ou menos entreposto, a rota clássica não se altera. E também não sofre alteração o papel de Portugal no tabuleiro mundial do tráfico de droga. José Teixeira recorda a já reiterada posição geográfica como um ponto fulcral que explica a preferência dos traficantes pelo território nacional. Mas não é motivo único: “Temos comunidades, não só de imigrantes, mas também de emigrantes, em países que não são produtores, mas de trânsito, como o Brasil, a Venezuela, Cabo Verde e Guiné-Bissau”.
“Facilita a infiltração. O negócio é facilitado também pelas trocas comerciais, que servem, obviamente, de camuflagem para o transporte de droga, seja por contentor, seja com embarcações pesqueiras, seja com um veleiro. Não somos a principal, longe disso, mas somos uma das portas de entrada da cocaína para a Europa. (…) Mas isto vai mudando. Nos últimos anos houve um fluxo gigantesco em determinados portos europeus com apreensões extraordinárias — Antuérpia, Hamburgo, Roterdão — em que a origem principal já não era tanto nem Brasil nem Venezuela [através de contentores] mas já era, por exemplo, Guayaquil no Equador. Eles vão-se adaptando”.
Recusando comentar matérias de investigação, que não são do âmbito do MAOC, o diretor entende como natural a presença de membros do PCC em Portugal. “Parece-me relativamente lógico, sendo a Europa um dos principais mercados de consumo de cocaína e sendo o Brasil um dos principais países de trânsito, que as estruturas que dominam este tipo de tráfico também se instalem em países como Portugal”, beneficiando da referida proximidade cultural — como acontece com os colombianos instalados em Espanha.
“Não temos [no MAOC] informação específica. O que sei é que há casos ou operações do MAOC em que — porque temos uma colaboração estreita com a Polícia Federal do Brasil — depois recebemos informação de que estes grupos estão por detrás das apreensões de cocaína. Portanto não custa nada a acreditar… Isto é factual, já nem é no âmbito da especulação, existem elementos de grupos organizados brasileiros dedicados ao tráfico de droga que são muito importantes e que dominam, juntamente com os grupos criminosos europeus, uma parte do tráfico de cocaína para a Europa desde o Brasil”.

Se as rotas se mantêm, o mesmo não se pode dizer dos meios utilizados. Em 2019, quando foi apreendido o primeiro narcosubmarino, poucos acreditavam que a embarcação sinalizada era, efetivamente, um semi-submersível. Hoje, ninguém duvida desta realidade que ameaça a costa da Península Ibérica. “Temos várias ameaças neste momento que temos tentado trabalhar com os países e que, não sendo completamente novas, começamos a ter os semi-submersíveis. Desde 2019 que foi apreendido, localizado, detetado o primeiro que foi apreendido pelos aliados espanhóis, mas numa operação também coordenada aqui”.
Desde então, já foram detetados “umas dezenas, nem todos apreendidos”, de “semi-submersíveis que fizeram a travessia transatlântica desde o Brasil, Colômbia ou Venezuela. “Portugal, apreendeu, só este ano, dois, tudo em operações coordenadas pelo MAOC”.
Apesar da evolução dos grupos de traficantes, o diretor do organismo europeu não classifica o combate como uma luta injusta, mas reconhece que é uma guerra sem fim contra “grupos extremamente organizados” com cada vez “mais meios financeiros”. “Basta ver que, por exemplo, na Colômbia, já começam a utilizar drones”.
São verdadeiras “empresas multinacionais que não têm barreiras legais nem fronteiriças e estão cada vez mais aptas a cooperar umas com as outras”. “Há uma cooperação entre organizações criminosas sul americanas e organizações criminosas europeias. E isso é algo que, obviamente, coloca problemas à atuação das autoridades, porque nós temos que cumprir a lei, (…) que nem sempre é tão célere como gostaríamos. E eles não têm essas restrições. Têm cada vez mais o espírito corporativo de empresa e de colaboração entre todos”. Hoje, há registo de transportes de droga que são aproveitados por mais do que uma organização, dividindo os custos e maximizando o lucro.
Apesar de Portugal ser um clássico ponto de entrada de cocaína, que depois é traficada para outros países europeus, há dados que apontam para um aumento do consumo desta droga em território nacional. “A cocaína tem vindo a ganhar terreno entre as substâncias mais consumidas em Portugal. (…) Neste momento, a cocaína é mais utilizada do que a heroína e contribui de uma forma muito significativa para intoxicações, algumas de gravidade importante e levando à ocorrência de overdoses”, disse à Renascença João Goulão, presidente do Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências (ICAD).

MAOC apreendeu quantidade recorde de cocaína em 2025. Modelo pode ser replicado no combate a mais crime?
Desde 2007, o MAOC apreendeu um total de 1.199 toneladas de droga — maioritariamente cocaína e canábis —, num total de 454 apreensões. Já despoletaram meios para operações deste organismo 30 países, o que demonstra a abrangência para lá dos membros europeus. Focado na parte marítima, há uma grande preocupação em aumentar o trabalho na aviação privada, tendo o MAOC criado uma célula, com analistas especializados, dedicados a esta área.
As várias entidades que se deslocam a Lisboa para conhecer este organismo quase desconhecido revela bem a importância que este assume no combate mundial ao tráfico de droga. De ministros a embaixadores, muitas figuras de relevo têm falado com José Ferreira para aprender com a experiência dos elementos daquela unidade.
No mais recente relatório da Comissão Europeia para a estratégia de combate e plano de ação para o combate ao tráfico de droga, é destacado o papel do MAOC e o reforço do organismo é apontado como uma de seis prioridades. Além da Europol, também as “operações do MAOC serão expandidas para travar o tráfico de droga pelo mar”.
“Em consonância com a Estratégia de Segurança Marítima da UE85, a UE reforçará a cooperação no Golfo da Guiné, no Mar Vermelho e no Oceano Índico para combater o tráfico e a pirataria, apoiando a cooperação intra-África e regional, nomeadamente com o apoio das presenças marítimas coordenadas (PMC) da UE e do Centro de Análise e Operações Marítimas – Narcóticos (MAOC-N)”.
“À luz do cenário em evolução do tráfico internacional de drogas, particularmente o aumento do uso de rotas marítimas e de aviação geral, a Comissão [Europeia] vai intensificar a sua colaboração com o MAOC”, diz o diretor executivo. “O objetivo é explorar o aprofundamento das atividades operacionais atuais do MAOC e da possível expansão, com foco no alargamento da pegada operacional na região do Mediterrâneo e no incentivo à participação ou adesão mais ampla por parte dos Estados-membros. A possível expansão da base de membros do MAOC-N fortaleceria o seu alcance geográfico”, defende mesmo José Ferreira.
Para o responsável, a avaliação que a comissão faz é uma prova de que o MAOC é visto “um bocadinho como um case study“. Porque, sustenta, com um orçamento que, não sendo “escasso”, é o “suficiente” — e que é “muito baixo” quando comparado com agências europeias —, apresenta resultados reconhecidos internacionalmente pelo seu “valor custo-benefício”. Em 2025, a cerca de um mês de o ano acabar, o MAOC já bateu um recorde no que diz respeito às apreensões de cocaína, com 87.15 toneladas apreendidas (mais oito do que no ano anterior, num valor que tem aumentado nos anos recentes).
“Temos sido alvo de várias abordagens no sentido de perceber como é que funcionamos e para tentar replicar este modelo noutros pontos do globo. Faz todo o sentido, porque isto é uma plataforma ágil, pouco burocrática. Funciona com os atores que devem estar presentes e com princípios que são inclusivos. A tal história da partilha, e da paridade na partilha de informação; com o mix militar, polícias e analistas — que realmente fecham o circulo e portanto, obviamente que depois temos resultados para apresentar”. Por isso, a intenção de replicar este modelo no combate a outros tipos de criminalidade “é evidente”.
*Os nomes são fictícios e servem para proteger a identidade dos analistas do MAOC.