“Tem sido sempre esquecido/À margem, ao sul do Tejo/Há gente desempregada/Tanta terra abandonada/É tão grande o Alentejo”, diz a canção popular, gravada e interpretada em diversas ocasiões, de Dulce Pontes a Buba Espinho. A maior região portuguesa, com um terço do território nacional, tem sido, historicamente, também uma das mais pobres — de acordo com dados de 2023, representava pouco mais de 6% da economia do país.
Com uma população envelhecida e um território desertificado, com uma baixa densidade populacional, é do Alentejo que tem emergido um dos maiores fenómenos pop da música portuguesa dos últimos anos. Precisamente agarrando nas raízes da terra com orgulho, enfrentando os arautos da desgraça e a desesperança — uma resistência feita da comunhão coletiva, do sentimento de pertença, do trabalho árduo que não reconhecemos nos estereótipos anedóticos da região.
A música alentejana, com base no cante e nos grupos corais, tem vindo a fazer o crossover para a música pop e das rádios, para a indústria musical profissionalizada, com uma geração de jovens artistas onde se incluem Buba Espinho, Luís Trigacheiro, os Bandidos do Cante e o mais recente fenómeno, os Vizinhos. Todos apontam o conterrâneo António Zambujo como uma referência, mas não é um acontecimento isolado.
Os D.A.M.A revelaram-se essenciais para a convergência destes dois universos, Pedro Abrunhosa esteve em digressão nacional (e internacional) com um grupo de cante alentejano, Pedro Mafama recuperou o emblemático Hino dos Mineiros de Aljustrel para o seu cancioneiro pop vanguardista. Nem se pode dissociar esta história do fenómeno mais alargado da reconciliação da música contemporânea portuguesa com as suas tradições, que já de si é a expressão nacional de algo maior, de uma música global com raízes locais que tem quebrado convenções e padrões um pouco por todo o mundo.
Uma nova geração que se profissionalizou na indústria com as raízes do cante
Classificado como Património Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO desde 2014, o cante alentejano — com origens muito discutidas, tendo em conta que tanto se fala de uma herança árabe como de uma inspiração judaica, além de uma possível influência do canto gregoriano — não era propriamente popular na geração de miúdos nascidos nos anos 90. Os jovens que cantavam eram uma pequena minoria, um reduto daqueles que não eram avessos às tradições dos pais ou dos avós.

“Quando comecei a cantar, tinha 12 ou 13 anos e estudava em Portel, a malta gozava connosco: ‘isso é para velhos e bêbados’, diziam. Era uma coisa que estava esquecida”, recorda Francisco Pestana ao Observador, hoje um dos Bandidos do Cante, grupo com apenas três singles editados em nome próprio, mas com quase 300 mil ouvintes mensais no Spotify, que tem andado na estrada ao nível nacional, a percorrer palco atrás de palco. “Juntávamo-nos nos intervalos, na escola, e cantávamos. Até cantávamos na casa de banho, que tinha uma acústica engraçada. Lembro-me perfeitamente de que, nessa altura, surgiu o grupo coral Os Bubedanas, onde o Buba e muitos jovens cantavam, e isso veio reforçar a nossa vontade de continuar.”
Filho de um dos músicos dos Adiafa — o grupo de Beja que popularizou As Meninas da Ribeira do Sado, tornando-se também um verdadeiro fenómeno pop no início dos anos 2000 —, Buba Espinho sublinha que o cante alentejano sempre esteve presente, mas que “não se estava a renovar” antes da sua geração. “Os jovens não gostavam das suas raízes.”
Durante a adolescência, no seu grupo de amigos “toda a gente cantava”, e o facto de muitos terem familiares mais velhos ligados a grupos corais fez com que tivessem o interesse e a vontade de formar um coletivo. “Só o facto de termos feito um grupo apenas de jovens, o que era único na altura, acredito que isso tenha influenciado muitos outros que, como eu costumo dizer, estavam escondidos no armário. Aqueles jovens que sempre gostaram do cante alentejano mas que, como eram os únicos na sua aldeia ou vila, não tinham companheiros e não cantavam. E a partir dessa altura, em 2011 ou 2012, começaram a aparecer muitos mais. A malta pergunta-se: ‘mas de onde é que saem os cantores alentejanos?’ Acho que estavam todos no armário com vergonha de assumir que gostavam de música tradicional.”
Foi nessa altura, há quase 15 anos, que o grupo de Buba Espinho, que frequentava a Escola Secundária Diogo de Gouveia, concorreu a um concurso na outra secundária de Beja, a D. Manuel I. “Vencemos e foi espetacular, porque um vídeo foi parar à Internet e tornou-se completamente viral. Muitas pessoas, especialmente os alentejanos que estavam fora, começaram a partilhar porque era algo muito forte e aquilo ganhou uma enorme dimensão. Às tantas estávamos a fazer 70 ou 80 concertos por ano e éramos um grupo amador. Isso deu muita força às gerações mais jovens e ao cante alentejano.”
Também Luís Trigacheiro, outro dos músicos profissionais que têm feito este crossover do cante alentejano para o universo da pop, passou pelo grupo d’Os Bubedanas, quando tinha apenas 15 anos. “Fiz parte de outros grupos, mas esse foi talvez aquele que me despertou um gosto maior para a música, porque desde então não deixei de cantar”, conta. “Nunca vou esquecer toda essa escola que tenho e o que fui recolhendo.”
Tinha 21 anos quando decidiu concorrer ao The Voice Portugal, o concurso de talentos da RTP, que acabou por vencer na edição de 2020. A vitória, graças a interpretações de temas populares como As Mondadeiras ou de fados de Mariza ou Carlos do Carmo, garantiu-lhe um contrato com a editora Universal Music, que editou o seu álbum de estreia, Fado Do Meu Cante, em 2022. Desde então tem trilhado um percurso de sucesso, que incluiu recentes coliseus esgotados.
O cante alentejano e o fado também são universos que se têm cruzado frequentemente, pelas mãos (e voz) de António Zambujo, Buba Espinho ou Luís Trigacheiro, além de exemplos anteriores como é o caso de Dulce Pontes.
“É interessante e acho que tem a ver com as melodias, os melismas e os floreados na voz, o trinado, que são muito da terra, é muito específico do nosso país”, acredita Buba Espinho. “Ainda que o fado seja de Lisboa, soa muito a Portugal, e encontra-se com o cante alentejano na expressão de sentimentos, na alma, no sofrer, de dar tudo pela canção e pela melodia. Mas é algo mais recente, curiosamente, só me recordo de a Amália ter feito uma música com um grupo coral, que é o Lírio Roxo. E acho que o cante alentejano tem uma maior influência árabe, as melodias são totalmente árabes, é um canto modal.”
Buba Espinho lançou o seu álbum homónimo de estreia em 2020. A partir daí, foi crescendo passo a passo, passando para palcos cada vez maiores. Só este ano fez quatro coliseus. Mas um dos grandes momentos do seu percurso foi quando se juntou em 2022 aos D.A.M.A — uma banda declaradamente pop, com uma carreira firmada na indústria portuguesa — para um single que se tornou um gigantesco êxito, Casa. Hit radiofónico, soma quase 20 milhões de reproduções na plataforma de streaming mais usada em Portugal, o Spotify.

“Teve um sucesso enorme junto das crianças”, conta Buba Espinho. “40% do meu público, nos concertos, são crianças. Elas têm esta capacidade pura de reagir e de se identificarem com o cante alentejano porque é um canto coletivo, muito integrativo, em que qualquer pessoa pode cantar — nunca excluímos quem canta mal e até há várias quadras sobre isso. Acho que o cante alentejano tem essa particularidade de envolver quem queira e goste de cantar.”
“Acho que a Casa veio fazer este cruzamento de que o cante merece não só ter uma voz no Alentejo, mas na música portuguesa”, acredita, por sua vez, João Direitinho, músico de Évora que pertence à banda pop Átoa. “Quando a malta de Lisboa se junta à malta do Alentejo e cantamos todos a mesma ‘língua’, que neste caso é o alentejano, isso retira o estigma e temos este sabor literalmente a casa, de estarmos todos juntos e bem acolhidos. Acho que esta canção teve um papel fundamental e meteu muita gente a olhar para o Buba, que é uma pessoa importantíssima nisto, é um embaixador do cante alentejano. É uma pessoa que nos representa e que se esforça há muito tempo para estar envolvido, desde os grupos que criou, passando pela carreira dele, e alimenta o cante com todas estas simbioses. O Luís Trigacheiro, quando apareceu no The Voice, também foi muito importante. E o António Zambujo já faz este trabalho há anos e anos.”
Foi precisamente a partir de Casa que os Bandidos do Cante se formaram. Para o coro da canção, Buba Espinho convocou uma série de amigos com experiência em grupos corais — Duarte Farias, Francisco Pestana, Francisco Raposo, Luís Aleixo e Miguel Costa, entre outros que acabaram por não ficar nos Bandidos. “Gravámos a música e a coisa foi crescendo porque se tornou um sucesso”, recorda Francisco Pestana. “Ficámos amigos, partilhámos alguns palcos e começaram a dizer-nos que devíamos fazer um grupo. E decidimos levar isto a sério e formámos os Bandidos do Cante. Começámos logo com o Buba Espinho com três coliseus esgotados. Acho que eles foram visionários com aquela canção, ao perceberem que isto poderia resultar.”
Tal como o padrinho Buba Espinho, os Bandidos do Cante transportam as suas raízes dos grupos corais alentejanos para uma expressão mais pop — não é só uma questão de posicionamento ou dos circuitos em que estão envolvidos, mas também algo que é notório na própria música. “Não fazemos um cante puro, é um cante feito à nossa maneira, com uma abordagem um pouco mais pop. Utilizamos muito as vozes e harmonias do cante alentejano, mas adaptamos para um formato mais pop.”
Preparam-se para lançar o álbum de estreia no final do ano. Os concertos oficiais de apresentação estão marcados para 20 de dezembro no Pax Julia Teatro Municipal, em Beja — uma sessão já está esgotada, mas foi marcado um espetáculo extra. “O objetivo é lançar o álbum e no próximo ano apresentá-lo na estrada.”
O grande fenómeno deste ano: os Vizinhos
Foram o grande fenómeno nas festas de verão de 2025 em Portugal. “Amor, eu já pensei, ir ver o pôr do sol/Se achas Lisboa grande, o Alentejo ainda é maior”, ouve-se no quase omnipresente single Pôr do Sol, que ocupou estações de rádio e palcos de norte a sul do país e que afirmou os Vizinhos como uma potência pop em ebulição. O grupo, formado a partir da tuna académica da Universidade de Évora, também só tem três singles cá fora — mas acumulam uns impressionantes 820 mil ouvintes mensais no Spotify.
“Começámos a tocar juntos, percebemos que havia ali uma química de composição, mas inicialmente sempre com o intuito de continuar no grupo académico”, conta David Mendonça, que forma os Vizinhos com Miguel Brites e os irmãos Francisco e Tomás Cartaxo. Foi após perderem as eleições académicas e abandonarem a direção que esta história fortuita teve início.
“Ficámos todos tristes, a chorar, e estávamos a beber um copinho à beira da piscina e a afogar as mágoas”, recorda o músico. “Foi quando olhámos uns para os outros e dissemos: e que tal se criássemos uma coisa nossa? Isto foi em julho de 2024, mas ainda não havia música nem nada.”

David Mendonça — que é algarvio, ao contrário dos restantes Vizinhos, todos de Évora — conta que não fazia ideia de que uma tuna académica que reunisse estudantes de várias zonas do país pudesse servir para fazer germinar o cante alentejano. “Nunca pensei que aquilo pudesse ser uma ponte de ligação entre a cultura alentejana e as pessoas que vêm de fora, como eu, mas foi lá que aprendi a cantar cante e onde começámos a cantar as nossas modinhas.”
Depois de reunirem um núcleo inicial de seguidores em seu torno, o grupo foi ganhando visibilidade e acabou por ascender ao mainstream logo quando lançaram o single de estreia, Pôr do Sol, em março. “Foi uma avalanche. Não foi nada planeado nem sabíamos que conseguiríamos entrar assim tão facilmente no mercado. Do nada fizemos um sucesso, as pessoas estão a vir atrás de nós e foi tudo muito rápido e precoce.”
O verão tornou-se “fenomenal”, com concertos consecutivos por todo o país. “No início até íamos sempre a medo tocar nas terrinhas: mas quem é que vem para aqui, enfiar-se neste buraco no meio da serra? No fim, tínhamos uma multidão de milhares de pessoas. Quando estamos no Alentejo, ao pé de casa, sabemos que temos pessoas que nos vão ver. Mas quando vamos tocar a centenas de quilómetros ou apanhamos um avião para tocar nos Açores… As pessoas acreditaram em nós com uma ou duas músicas e tem sido muito giro mesmo. Ainda agora está a começar.”
Embora só tenham três temas lançados, cantam sete ou oito canções originais nos concertos, além de algumas versões — incluindo temas que interpretavam nos tempos da tuna. O objetivo é continuarem a lançar singles a conta-gotas, um combustível lento mas rentável que vai alimentando a máquina em que se tornaram, para depois culminar num EP ou num álbum.
“Podemos dizer que derivamos do cante, sempre foi uma coisa obrigatória no nosso grupo académico, e hoje em dia ainda cantamos assim nos nossos concertos para as pessoas perceberem a origem de onde vimos. O Alentejo estava muito esquecido. Claro que isso já está muito bem representado e não queremos entrar tanto por essa vertente, queremos modernizar a música tradicional e levá-la para a pop, mas as vozes e as harmonias continuam lá. E de vez em quando fazemos aquelas noites de cantorias que acabam por ser a base de tudo.”
Uma das pessoas que melhor podem explicar este fenómeno dos Vizinhos e da música alentejana no geral — até por representar, em grande medida, esse crossover — é João Direitinho. O músico dos Átoa tem trabalhado como manager e compositor dos seus conterrâneos.
“Os Vizinhos retratam aquilo que é a vida académica do Alentejo e aquilo que vivemos em Évora”, acredita. “Acho que a explosão tem muito a ver com esta abertura que surgiu para o Alentejo e com aquilo que eles promovem nas músicas. Quando compomos para Vizinhos procuramos chegar a um sítio feliz, sem preconceitos nem vergonhas. Há um acordeão, soa a popular, espetáculo, estamos todos a abanar a cabeça e ‘bora.”
Os espetáculos, explica, também têm sido um lugar fulcral de conquista do público — pela atitude e entrega que os quatro músicos apresentam em palco. “Queremos que as pessoas saiam dos concertos e que sintam que tiveram uma festa daquelas. E a verdade é que a maior guerra com eles é tirá-los das festas, porque eles acabam os concertos e vão para as barraquinhas conhecer a malta, servir imperiais… O concerto pode ter uma hora, mas a magia da participação deles nestes eventos tem muito mais horas e ação do que aquilo que acontece em palco. O palco é o chão que todos pisamos e as canções que cantamos juntos, com ou sem microfone.”
A maneira como têm promovido o envolvimento dos fãs com a banda, utilizando não só a presença física como a comunicação digital, também ajuda a explicar o êxito do grupo. “As pessoas sentem-se convidadas a entrar na viagem, a apoiar a caminhada deles rumo ao Coliseu dos Recreios, a acompanharem-nos a chegar pela primeira vez à rádio, a promessa de ir a pé a Fátima… E quem acredita que os Vizinhos tiveram sorte é porque não está a olhar para as coisas da forma certa, porque não sabe que ainda ontem acabaram o concerto às duas da manhã e o Francisco entrou no trabalho às três porque anda nas vindimas e que o David vai ser pai e anda a conciliar tudo com os muitos concertos.”
O que explica o sucesso desta versão pop do cante alentejano?
Buba Espinho olha para a música alentejana como um “cordel”, um fio condutor, sentindo-se herdeiro dos Adiafa, de António Zambujo e de Vitorino. “Também sinto que as pessoas do resto do país se identificam, porque o cante alentejano, sobretudo o tradicional, fala muito sobre partida e chegada, e por isso também temos muita expressão no norte, de onde saíram muitos emigrantes em busca de uma vida melhor. E também faz parte da nossa cultura, somos um povo que vive muito à mesa, e de repente senta-se um amigo com uma guitarra e vamos cantar”, defende.

“Agora foi uma maneira de apresentarmos estas mensagens de uma forma diferente, num contexto diferente, colocámos alguns instrumentos e outras melodias, o próprio cante também se foi alterando ao longo do tempo, sinto que agora está mais acessível para as pessoas do resto do país. Há uma nostalgia, uma ligação às raízes e aos tempos de infância, uma ideia de voltar às terras. E, no meu caso, se calhar também mostrei um Alentejo diferente — havia muita tristeza associada ao Alentejo, muita coisa com os ‘molengões’, havia muito preconceito.”
O artista de 30 anos acredita que o facto de músicos conceituados de outras regiões — como o caso do portuense Pedro Abrunhosa — terem feito colaborações com grupos de cante alentejano, também é algo que fortalece todo o imaginário em torno destas práticas tradicionais que têm sido renovadas. “As pessoas viram que o cante alentejano se veste de várias formas e hoje querem ouvir mais e percebem que os alentejanos casam bem com qualquer canção. Antigamente, ao vivermos no interior, também era mais difícil chegarmos às rádios e às televisões. O Alentejo ainda era mais distante. E todos os artistas e projetos que têm aparecido, mesmo com outras inspirações e gostos, cada um com as suas características mas sempre com aqueles ingredientes alentejanos, é muito interessante estar a assistir a isto. Termos a música alentejana a passar nas rádios e nas grandes salas e festivais do país é ótimo para a nossa região e para a nossa música.”
Luís Trigacheiro aponta no mesmo sentido. “De repente, a nossa região começa a ser vista com outros olhos e isso para nós é altamente gratificante, não somos só nós a ganhar com isso.” Embora seja uma “coisa muito sofrida”, fruto de uma cultura “pobre”, acredita que estas canções também emergem de um ambiente de “união” e de “família”.
“Isto vem dos meus avós e dos meus tetravós, das pessoas que trabalhavam no campo, e é muito gratificante ver que hoje podemos ser referências, exemplos próximos para os miúdos e contribuirmos para que outros apareçam. Somos um pouco a cara disto, mas venham mais. Quantos mais formos, melhor, porque a nossa região é mais falada, a música é mais ouvida, chegamos a mais pessoas e a música é mesmo essa inspiração e partilha, é andarmos de braços dados uns com os outros e fazermos disto uma coisa muito maior do que nós.”
João Direitinho encara o cante alentejano, enquanto prática de comunhão coletiva, como uma “resposta cultural” a uma sociedade cada vez mais individualista, em que as comunidades se diluíram.
“Estamos numa sociedade do culto do ‘eu’ e as redes sociais vieram trazer uma pressão em relação aos seguidores, ao dinheiro, às grandes fotografias, aos carros. E a música alentejana, e foi por isso que me apaixonei por ela, reflete muito o hábito que temos de receber bem, de partilhar e de fazer os outros sentirem-se em casa. O cante alentejano nem é bem um estilo musical, é um estilo de vida mesmo, é uma cultura muito mais abrangente do que uma sonoridade, é um sítio onde estamos a trabalhar por algo maior. É pôr de lado o ‘eu tenho que soar bem’, ‘eu tenho que crescer’, para meter à frente o ‘temos de trabalhar para isto que nos pertence’, ‘temos esta missão com a nossa cultura de passar isto aos mais novos’. De lhes mostrar que o bonito na vida não é chegares ao pé do teu avô e dizeres que tens um Ferrari, é dizeres ‘avô, ‘bora cantar aquela canção que cantavas para mim quando era pequenino’. Aquelas canções à mesa, na taberna, no Natal… O cante alentejano vem dar uma resposta muito bonita a esta fase, porque é uma resposta cultural, não é invasiva. É artística e leve, de sermos uma comunidade, de podermos dar a mão uns aos outros, de cantarmos em conjunto por algo que é nosso e que nos une. É chegarmos a um sítio e cantarmos todos juntos, cada um com a sua voz, umas mais agudas, outras mais desafinadas, outras com uma dicção menos percetível, mas quando entra toda a gente está a soar bem — e isso é o reflexo daquilo que deve ser uma comunidade, é todos juntos.”
Isso também se reflete, argumenta o músico e manager dos Vizinhos, na maneira como as comunidades alentejanas têm percecionado o sucesso destes artistas fora de portas. “Sente-se que existe esse agradecimento. Hoje em dia entro em restaurantes em Évora e estão lá expostos os quadros de platina dos Vizinhos… há este orgulho. E o nosso trabalho também é mostrar que Évora é um sítio espetacular para se viver, para se criar família e os nossos projetos. Também tentar desmistificar com a malta mais nova aquela coisa de que temos de ir para Lisboa para termos sucesso. Não, dá para fazer cá. A maior parte da nossa equipa é de Évora, as músicas são gravadas no Redondo, os nossos técnicos são quase todos do Alentejo. E a coisa funciona.”
A importância da ligação às bases e a ambiciosa internacionalização do cante alentejano
Quando perspetiva o futuro do cante alentejano, Buba Espinho distingue dois eixos. O primeiro passa por “preservar a mensagem dos ancestrais” e por manter uma ligação às bases. “Quem quer que se apresente como artista de música tradicional do Alentejo tem que estar ligado aos grupos corais ou aos grupos de folclore da sua terra, porque é a origem de quase tudo, é na banda filarmónica ou no grupo coral. Por isso é muito justo, nesta fase das nossas carreiras, continuarmos a olhar para trás. Hoje posso convidar um grupo coral e dar-lhe um cachet merecido e é o que vou fazer e é o que o Zambujo também faz. Sinto que, no cante alentejano, nunca houve esta coisa dos mais velhos olharem para os mais jovens e dizerem: ‘lá estão os meninos a fazer coisas novas, isso não presta’. Senti sempre o contrário, senti sempre apoio e orgulho, e já gravei canções muito estranhas, com projetos muito diferentes. Portanto, agora quando temos capacidade para enquadrar os grupos em salas e festivais maiores, vou ser sempre o primeiro a fazê-lo. Nós só também lá chegámos porque eles nos deram identidade, nos deram terra.”
O segundo eixo, aberto à modernidade, tem a ver com “continuar a fusão e experimentar o cante alentejano com outros géneros”. A internacionalização do cante alentejano, um objetivo ambicionado por muitos mas que se torna desafiante pelas enormes comitivas dos grupos corais — o que torna o investimento muito mais dispendioso comparativamente à grande maioria dos projetos musicais — é difícil, mas não impossível, defende, dando o exemplo de quando em maio deste ano António Zambujo atuou com o Rancho de Cantadores da Aldeia Nova de São Bento na Expo 2025 de Osaka, no Japão.

“Era muito merecido ter o cante alentejano a correr os quatro cantos do mundo, com os grupos corais, com projetos mais pequenos, com a viola campaniça… Acho que o Alentejo ainda tem muito para mostrar ao mundo e cá estarei para continuar esta luta. Se eu não conseguir, certamente que as gerações que virão a seguir terão outras vantagens, um caminho já feito e facilitado, e é necessário que continuem este trabalho e assumirmos que o cante alentejano é maior do que qualquer artista. Nós fizemos os projetos profissionais, mas as entidades têm é que apoiar os grupos e eles é que merecem lá estar. As pessoas têm de ouvir a origem. Nós processámos as coisas, tornámo-las mais móveis para podermos fazer as nossas carreiras, mas o cante alentejano puro e duro é aquele. E acredito que seja possível termos 30 ou 40 homens a fazer tournées mundiais.”
Francisco Pestana, dos Bandidos do Cante, que já cantou no Dubai a acompanhar Celina da Piedade, também o assume como uma missão de vida. “É o grande desafio, mas vamos tentar abrir esse mercado e se o canto puro puder ir, melhor.”
Já Luís Trigacheiro olha tanto para os vizinhos espanhóis como para o fado português como exemplos de que existe um caminho que pode ser feito. “A Rosalía chegou ao mundo inteiro. Claro que é uma língua falada em mais países, nós temos uma cultura mais fechada, mas o fado também é cantado em português e chega ao mundo inteiro. Talvez não no patamar do flamenco e do reggaeton, mas também chega. E se o fado consegue, porque é que o cante alentejano não há-de conseguir? E as músicas das Beiras e do Minho? Temos toda uma cultura musical muito rica e é uma pena se acharmos que estamos limitados à nossa região. Temos é que pensar em maneiras de a tornar audível, representativa e levá-la a outros povos. Está-se a trabalhar nesse sentido, mas é um trabalho que leva tempo, que tem que ser construído e não há ninguém que nos diga que tem de ser feito desta ou daquela forma.”