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(A) :: Como se trata a dor nas pessoas mais velhas? 10 perguntas – e mitos – sobre os desafios do acompanhamento da dor nos idosos

Como se trata a dor nas pessoas mais velhas? 10 perguntas – e mitos – sobre os desafios do acompanhamento da dor nos idosos

Nas pessoas mais velhas, a dor “é a tempo inteiro”. Pode ser causada pelo desgaste biológico próprio da idade ou por várias outras causas, mas nunca deve ser desvalorizada ou encarada como “natural”.

Cláudia Pinto
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1 Quais são as dores mais frequentes nos idosos?

“A mais frequente é a dor musculoesquelética, que resulta da doença degenerativa dos ossos e das articulações”, diz Maria Fragoso, oncologista com competência em medicina da dor. “É a que vemos mais, como as artrites e as artroses.”

2 Quais as principais causas da dor nos idosos?

São várias. Desde logo devido à acumulação de várias alterações no organismo que o vão desgastando. “Não aparecemos só com rugas na cara, as ‘rugas’ surgem em todos os órgãos e vão levar a que o conjunto dos nossos órgãos vá perdendo capacidade funcional”, diz a médica que coordenou a Unidade de Estudo e Tratamento da Dor do IPO-Porto e passou pelo Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos.

A dor começa assim a surgir e a associar-se à dificuldade em sair do sofá ou mesmo de casa, em descer escadas, em caminhar ou ir às compras, entre outras atividades diárias.

3 Como se trata a dor nas pessoas mais velhas?

É muito importante explicar à pessoa com dor o que se está a passar e tentar gerir as suas expetativas de cura. A primeira abordagem é assim psicopedagógica. “Não nos devemos limitar a prescrever medicamentos e tratamentos de reabilitação. A dor vai massacrando, continua lá, e a persistência é desgastante”, diz Maria Fragoso. A pessoa deve perceber porque tem dor e é preciso partilhar a mensagem de que poderá viver com dor para sempre.

Podem ser receitados medicamento antidepressivos e antiepiléticos, ambos aprovados, por exemplo, na dor neuropática, o que pode originar algum sentimento de desconfiança por parte de doentes que afirmam não ter epilepsia ou depressão. “Devemos explicar as opções desde o primeiro dia: a proposta de medicação tem uma base biológica, mas poderemos ter de atuar por tentativa e erro até percebermos que medicação funciona com determinada pessoa.” Aqui residem algumas causas para a falha na toma de medicação. Estes medicamentos demoram a fazer efeito, podem demorar semanas, não atuam de um dia para o outro.

4 Então é habitual os idosos falharem a medicação?

Sim, muitas pessoas param a medicação para ver o que acontece — inclusive profissionais de saúde. Maria Fragoso já acompanhou pessoas que confirmaram ter deixado de tomar a medicação para experimentar e perceber como se sentiram, voltando a ter muitas dores. “Isto acontecia sobretudo quando propunha fazer o desmame [descontinuação gradual de medicação devidamente acompanhada pelo médico assistente], que obedece a regras, e deve ser acompanhado pelo médico.”

Por outro lado, algumas pessoas em consulta acabavam por confessar que a medicação era muito forte, achavam que aqueles medicamentos não se adequariam ao seu caso, ou tinham receio de tomar porque alguma vizinha tinha enjoos e vómitos com esses remédios.

5 Além dos medicamentos, o que pode ajudar a tratar a dor?

Muitas vezes a dor vem acompanhada de sofrimento e este não se trata com medicamentos. Por isso há quem melhore da dor, mas o sofrimento continua lá porque é existencial e relaciona-se com a incapacidade, os medos, as expetativas, e a perda de autonomia. A avaliação tem de ser muito ponderada caso a caso.

Além da medicação é esperado que as pessoas aprendam a usar estratégias pessoais e individuais para lidar com a dor. E isso pode passar por  estratégias como “colocar gelo quando a dor é mais aguda ou fazer uma massagem com um creme anti-inflamatório tópico, ou ainda tentar divergir o pensamento para outras áreas quando sabe que aquela dor é curta no tempo e vai conseguir ultrapassá-la rapidamente”.

Ter cuidado com a alimentação e praticar exercício físico devem ser práticas ao longo da vida. E ainda que o exercício deva ser adaptado a cada pessoa tendo em conta as suas capacidades e limitações, Maria Fragoso acha que uma caminhada diária não deve ser questionada. “Deveria ser um hábito de vida, tal como lavar os dentes.”

Outras técnicas, como a medicina física e de reabilitação ou a acupuntura são boas estratégias, mas só permitidas a um certo número de pessoas, não sendo de fácil acesso. “Estamos muito aquém das necessidades.”

Sair de casa é muito importante para que a pessoa tenha contacto com “um contexto fora do seu ninho de conforto” e seja submetida a estímulos que lhe permitam distrair da dor.

Maria Fragoso considera que “o foco ainda está muito centrado na medicação. A sociedade ainda não percebeu que a intervenção tem de ser a outro nível. A medicação é uma parte do tratamento da dor. A dor crónica deveria ser abordada numa lógica de pedagogia”.

6 O frio e o quente interferem na dor do idoso?

As casas portuguesas são frias, não têm isolamento térmico, e com o frio ficamos mais contraídos, o que agrava a dor musculoesquelética, nos ossos ou articulações. “No verão o calor é relaxante e a pessoa anda melhor, até do ponto de vista emocional.” O contexto com frio, calor e até humidade interferem com o mecanismo da dor.

“Na medicina física e reabilitação recorre-se ao calor húmido para relaxar a parte muscular ou o frio para tratar, por exemplo, uma pancada com reação inflamatória local”. O frio e o calor são agentes que devem e podem (se possível) ser usados no tratamento da dor e que as pessoas podem aprender a utilizar em casa”, diz a médica.

7 Os idosos com dor crónica devem ser encaminhados para uma consulta de dor?

Não necessariamente. Cada caso deve ser avaliado individualmente. A dor é transversal a todas as especialidades. “Acho inaceitável que existam médicos sem conhecimentos básicos sobre medicina da dor. Todos os médicos deveriam saber avaliar a pessoa com dor, mas a formação está muito aquém do desejado, infelizmente”, defende Maria Fragoso.

Os médicos de medicina geral e familiar seriam as pessoas mais indicadas para acompanhar a pessoa com dor “se tivessem agenda para tal”. Existem “excelentes exemplos de colegas desta área que tratam muito bem a dor”.

8 O que esperar quando um idoso chega a uma consulta de dor?

Como não existe uma análise ao sangue que indique se a dor no está acima do normal — não é possível medir de forma objetiva e adequada como se faz com o colesterol, por exemplo — é preciso ter tempo para ouvir as queixas do doente idoso.

As primeiras consultas podem demorar uma hora ou mais. “Na primeira abordagem há que perceber o que a dor impede de fazer, para depois, mais tarde, ser mais fácil provar pela positiva o que a pessoa vai conseguindo conquistar com o tratamento adequado.” Com o passar do tempo há que entender o que a pessoa conseguiu readquirir depois de o ter perdido. Por vezes, as pessoas nem têm essa consciência.

Nessas consultas colocam-se várias perguntas: O que a dor o impede de fazer? Como se comporta, que estratégias habitualmente usa para aliviar a dor? Consegue dormir? Consegue estar sentado à mesa? Consegue ir às compras? Está mais tempo deitado na cama do que em pé?  O que alivia ou agrava a sua dor? Que impacto tem no dia a dia?

9 Qual o papel da família e dos cuidadores?

A família ou cuidadores devem estar atentos às alterações do dia a dia que podem ser explicadas por uma situação de dor e que, às vezes, a própria pessoa não quer admitir.  Os familiares e pessoas que cuidam podem informar o médico se a pessoa deixou de se levantar da mesma forma, deixou de sair, de se sentar à mesa, e estarem atentos aos sinais. Também são eles que podem ajudar a identificar o que o seu familiar / pessoa cuidada já consegue fazer.

A dor é tratável, mas é necessário um esforço familiar para ajudar o doente e validar as queixas, por um lado, e criar estratégias de diversificação de interesses, por outro. “É preciso ajudar com a gestão da medicação e com a gestão da casa. Por exemplo, é importante perceber se não sobram caixas de medicamentos, mas sem retirar a autonomia das pessoas idosas.” Pode ser necessário ajudar “com a parte económica, que pode ser um impedimento ao cumprimento da medicação prescrita”, diz a oncologista.

10 A dor nos idosos pode afetar a saúde mental?

Quanto mais dificuldades tem o idoso, mais se isola, e quanto mais se isola, mais triste fica, pior o padrão alimentar, mais perda de funcionalidade terá. “No limite, as pessoas não conseguem ver cor na vida.”

A oncologista considera que a dor igual a zero é, muitas vezes, um objetivo não alcançável e o pior que pode acontecer a um idoso é ficar “estagnado na sua condição” e como não conseguimos mudar todos os fatores biológicos, é importante tentar melhorar a componente psicossocial.