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(A) :: Henrique Dias, depressão e ansiedade: "O psiquiatra achou que era melhor ser internado. Foi violentíssimo"

Henrique Dias, depressão e ansiedade: "O psiquiatra achou que era melhor ser internado. Foi violentíssimo"

Teve o primeiro ataque de pânico aos 22 anos e foi "um choque tremendo" ouvir o diagnóstico. Procurou ajuda, esteve internado e só na psicanálise, que ainda faz, encontrou a terapia mais acertada.

Sara Antunes de Oliveira
text
João Porfírio
photography

"Ia regularmente a psiquiatras e psicólogos e já estava habituado."

"Entrava e dizia: 'Olhe, tive um ataque de pânico aqui, depois tive isto, depois aconteceu-me isto, depois tive uma depressão, depois comecei a tomar isto.'"

"E, quando acabo, diz-me ele: 'Então e você?'"

"Aquele 'então e você?' entrou em mim de uma maneira que não me lembro se chorei, mas sei que, de repente, alguém me olhou."

"Quando se está neste nível de ansiedade e ataques de pânico e de depressão, a mente não pára. O mais que eu queria era que o meu cérebro parasse."

"O psiquiatra achou que a melhor coisa que tínhamos a fazer era eu ser internado durante um período de tempo."

"Violentíssimo, violentíssimo."

"Nunca contei isto publicamente. Estou a contar hoje porque acho que pode ajudar algumas pessoas a perceberem que é violento, mas há alturas em que é preciso."

Foram precisos 12 anos, a partir do diagnóstico, para encontrar o psiquiatra certo para ele e a terapia que o pôs no caminho onde está hoje. Henrique Dias, guionista, autor de inúmeros textos no teatro e na televisão e um dos criadores da série “Pôr do Sol”, da RTP, era um jovem de 22 anos quando teve o primeiro ataque de pânico. Foi medicado e ficou a saber que tinha depressão e transtorno de ansiedade e pânico — um “choque tremendo” e um diagnóstico que, no início dos anos 2000, era raro alguém querer assumir.

Trabalhava, na altura, nas Produções Fictícias, onde escrevia textos de humor, e alguns colegas criaram uma personagem chamada Henriqueta, que estava sempre a tomar comprimidos, inspirada nele. Ficou, primeiro, “magoadíssimo”, mas concluiu que, provavelmente, teria feito o mesmo. Não era indiferença ou maldade — simplesmente, naquela altura, não se olhava para a saúde mental como se olha hoje. E o humor, de resto, acaba por funcionar, ainda agora, como “terapia”.

Nesta entrevista inserida na série “Labirinto — Conversas sobre Saúde Mental”, gravada no hotel Palácio do Visconde — The Coffee Experience, em Lisboa, o guionista, que se prepara para estrear a comédia “Sr. Engenheiro, Alegadamente um Musical”, inspirada na vida de José Sócrates, conta que foi difícil encontrar o tratamento certo, sobretudo porque entende que tem de haver uma “química” entre o doente e o psicólogo ou psiquiatra. Estava tão habituado a consultas com médicos novos que já debitava o historial clínico, “sem grande esperança”. Até que um deles, no final do relato, lhe perguntou: “Então, e você?” Sentiu, pela primeira vez, que estava a ser visto como “o Henrique” e não só um paciente, o que fez toda a diferença.

Foi esse o psiquiatra que, com o agravamento dos sintomas, recomendou que fosse internado. Um momento “violentíssimo”, de que nunca falou publicamente, que o levou até Londres, onde ficou durante pouco menos de um mês. Recorda que o hospital psiquiátrico era “muito britânico” durante o dia, mas lembrava o filme Voando sobre um Ninho de Cucos durante a noite, por causa dos gritos dos adolescentes internados no piso acima do quarto dele.

O internamento não resolveu, por si só, o problema, mas foi o início do processo que o levou à recuperação. Já em Lisboa, começou a fazer psicanálise e percebeu que era a terapia que mais fazia sentido para ele. Ainda que seja um processo muito difícil, que obriga a “desarrumar” todas as gavetas de quem somos para voltar a pôr tudo no sítio: “Nós queremos ir para a frente nas nossas vidas, mas há alguns que não conseguem ir para a frente sem ir atrás primeiro. E eu tive de ir atrás, tive de estar em paz com uma série de coisas que se passaram comigo, tive de estar em paz comigo.”

Em todos estes anos, além do além do internamento e das inúmeras consultas, esteve dois períodos de seis meses sem trabalhar. Sublinha que tudo isso foi (e é) um luxo a que, lamenta, a maioria das pessoas na mesma situação não se pode dar. Continua a fazer psicanálise e criou uma rotina de “higiene mental” que acha essencial. Não está “à espera de viver sem ter um ataque de pânico daqui uns dias, ou de ansiedade, ou de ter um princípio depressivo”, mas diz que isso, agora, “é muito menos provável”.

[Veja aqui a entrevista completa a Henrique Dias]

https://www.youtube.com/watch?v=d-gg6Mg049Y

Consegue identificar os momentos em que começou a achar que alguma coisa não estava bem consigo e que isso poderia ter a ver com a sua saúde mental? Ou é uma coisa difusa no tempo?
É uma coisa difusa até ao primeiro ataque de pânico. Ou seja, há ali uma altura na adolescência em que há muitas angústias, lidamos com muitas incertezas, é a altura de nos encontrarmos e de sabermos quem somos. E acho que até há uma fase que os adolescentes passam, uma espécie de fase meio depressiva, mas que faz parte. A minha talvez tenha sido um pouco mais intensa, mas nada que me fizesse pensar que podia ter algum tipo de problema. Onde a questão se tornou mesmo aguda e não consegui fugir dela foi quando já tinha acabado o curso, tinha 22 anos. Estava a trabalhar nas Produções Fictícias e um dia saí para ir almoçar às Amoreiras, ao centro comercial, e começo a sentir uma ansiedade e umas palpitações no coração, uma coisa completamente estranha. Mas, como tinha saído na noite anterior, pensei: “Isto ainda é ressaca dos copos, uma coisa qualquer”. Continuei e aquilo não parava.

A piorar? 
A piorar, sim. Eu ia com o Eduardo Madeira, que era meu colega na altura, íamos a subir da Mãe d’Água para as Amoreiras, e eu estava a dizer: “Não estou bem, é o coração, está a bater muito rápido.” E suava. O Eduardo perguntou: “Então, mas queres voltar para trás?” “Não, vamos, vamos.” E continuei, até que, quando ia entrar nas Amoreiras, disse: “Eh pá, não. Isto há qualquer coisa que não está bem, deixa-me voltar para trás.” Voltei para as Produções Fictícias, sentei-me, andava no pátio, tentava ver se me acalmava.

Além do coração, era mais o quê? Dificuldade em respirar? 
Nesse momento era só o coração a bater a uma velocidade completamente absurda. E tudo aquilo era novo para mim, que era a primeira vez que tinha tido alguma coisa do género. Portanto, é muito assustador. Tento acalmar, tento acalmar, mas não consegui.

E tinha a sensação de que era uma coisa totalmente física? 
Totalmente física. Nunca me passou pela cabeça que fosse um… Aliás, a primeira coisa que me veio à cabeça foi: “Isto foi ontem à noite, abusei dos copos, é uma ressaca que está aqui a ter uns efeitos um pouco estranhos.” Meto-me num táxi e, à medida que estou a ir para casa, aquilo não parava. E digo ao taxista: “Olhe, vamos ao hospital.” Entro no hospital convencido de que estava a ter um ataque cardíaco, foi o que eu pensei. Sou visto no hospital e dizem “não, está tudo bem, isso é stress, não há problema absolutamente nenhum”. Deram-me um ansiolítico, uma coisa qualquer, e fui para casa. Pensei que estava tudo bem. Nunca mais pensei naquilo nessa noite. Fiz a minha vida normal.

Mas fez sentido para si? Estava numa fase de maior stress?
Claro que sim. Estava numa fase de muito stress. Nas Produções Fictícias, o ambiente era de muito stress. E, pronto, andava com uma vida noturna muito intensa, e pensei: “Isto pode ser também dos meus excessos e tudo mais.” Nunca me passou pela cabeça um problema de saúde mental. No dia a seguir, vou trabalhar, e mal estou a entrar nas Produções Fictícias sinto exatamente a mesma coisa, o coração a bater, e dessa vez já não entrei. Meti-me no táxi e voltei para casa, não fui ao hospital. Aí, sim, comecei a pensar: “Isto pode ser outra coisa qualquer.” Tento acalmar-me sozinho e tomo os ansiolíticos que o médico me tinha dado, e não passa. Aí começou-se a instalar um pânico, já uma coisa completamente diferente.

Nem com os ansiolíticos? 
Não.

Portanto, continuava com os mesmos sintomas da véspera?
Não, piores. Começaram a subir, ou seja, começou a haver aquele medo de morrer, que é a coisa típica do pânico. “Vou morrer, parece que o mundo está a acabar.”

Estava sozinho? 
Sozinho. É uma energia tremenda que vem, que não consegue sair do nosso corpo. E lembro-me de que toquei na vizinha de baixo, que já conhecia há muitos anos, desde os meus cinco anos. “Ajuda-me, que eu não estou bem, ajuda-me, que eu não estou bem”, e chamam um médico. Vou outra vez para o hospital, aí sou medicado de uma forma um pouco mais violenta. E a coisa também durou ali mais dois, três, quatro dias, em que eu estava mais calmo devido à medicação. Sabia, on the back of my mind, “isto pode ter sido um problema mental”, mas tenta-se sempre afastar essa ideia, não sei porquê.

Stress, um momento, uma fase…? 
Mesmo que nos passe pela cabeça que temos um problema de saúde mental, isso aos vinte e poucos anos e naquela altura, no início dos anos 2000, não era uma coisa que quiséssemos assumir perante ninguém. E então eu próprio, para mim, dizia: “Não, isto é outra coisa qualquer.” Claro, depois com essa medicação mais forte, a coisa continua a escalar, a escalar. E lembro-me de que estava com a minha namorada na altura, a conversar sobre isto e a dizer-lhe “eu não aguento isto, isto é muito estranho”, e, de repente, tenho um ataque de choro quando estou a falar com ela. E ela diz: “Acho que já sei o que se passa contigo.” Porque ela tinha tido já uma depressão. E diz: “Vou levar-te a um médico”, que ela conhecia. Fui a um psicólogo, que me disse: “O que se passa consigo é transtorno da ansiedade e pânico e uma depressão, e vai ser medicado por uma depressão.” Foi, primeiro, um choque tremendo. “Mas como é que isto me acontece a mim?” Com vinte e dois anos, somos indestrutíveis, somos os reis do mundo e estamos cá para suportar tudo e mais alguma coisa. “Como é que isto me acontece?” Depois, a estranheza. Depois, a imagem que se tem de uma doença mental. É horrível, com vinte e dois anos. E tenho de marcar isto bem: naquela altura, nos anos 2000, a imagem que se tinha das doenças mentais era uma coisa que tinha um estigma absolutamente brutal. E fico em casa, medicado, fortemente medicado. Acho que ainda não tomei antipsicóticos nessa altura, mas foi uma coisa já muito grave.

E sem outros sinais que não essas crises de pânico, esses ataques agudos de pânico? Ou seja, se não tinha dado por eles antes, mesmo depois não conseguiu olhar para trás e ver outros sinais?
Absolutamente nada. Isto aconteceu tudo no espaço de um mês.

Nem aqueles sinais típicos de depressão? Uma pessoa, quando pensa em depressão, pensa num estado mais abatido, mais triste. Dormia bem?
Dormia perfeitamente. Tinha uma vida social muito intensa, dormia pouco por isso, não porque não conseguisse dormir. Não tinha absolutamente nenhum indício de nada. Talvez, lá está, ali na fase da adolescência, a parte depressiva que qualquer adolescente tem fosse um bocadinho mais carregada, mas era uma coisa quase performática, digamos assim. Não entendo muito aquilo como se fosse algum sinal já do que viria a ter. Foi, realmente, num mês.

Quando vai a essa consulta com o psicólogo, vai achar o quê? Que alguém lhe vai dizer: “Oh Henrique, não é nada disso, claro que não tem problema nenhum”? 
Não. Quando tive o ataque de choro a explicar à minha namorada o que estava a sentir, que estava muito ansioso, aí ainda não havia tristeza. “Estou muito ansioso, não consigo respirar.” E, de repente, ao contar-lhe isto, vem-me um ataque de choro, uma coisa incontrolável. A partir daí, percebi que era uma coisa mais grave que se estava a passar comigo. E ela própria me disse: “Eu já sei o que é que se passa contigo.” Disse-me aquilo com uma segurança que deu para perceber que percebia o que eu estava a sentir. E depois, quando vou ao médico, e quando ele me diz o que é que eu tinha e me manda para o psiquiatra, não ia nada à espera que me dissessem: “Não, isso não é nada, isso são cinco dias em casa.” Já percebia a gravidade do que se estava a passar.

"A partir do momento em que percebi a gravidade do que se estava a passar comigo, o estigma desapareceu da minha cabeça totalmente. Não havia minimamente vergonha, ou querer esconder, ou nada disso. Havia só o sofrimento.

Nem o incomodou a ideia de ter de fazer psicoterapia e de tomar comprimidos?
Esse foi o problema, não me recomendaram psicoterapia. Esse foi o grande problema.

Nem o psicólogo? Só o encaminhou para o psiquiatra? 
O psicólogo queria que eu continuasse com ele. O problema foi que eu demorei anos até encontrar alguém com quem eu conseguisse relacionar-me. Porque a psiquiatria é um pouco diferente, mas na psicologia tem de haver uma relação. É impossível estar sentado com alguém sem haver confiança do outro lado. Tive as experiências mais absurdas. E depois, como estou ligado ao humor, tenho sempre esta lente com que vejo as coisas. Tive um psicólogo que, uma vez, entrei para o conhecer, a ver se estava confortável com ele ou não. Começámos a conversar e eu digo-lhe: “Acho que isto não vai resultar, não há aqui…” Quase como uma química numa relação. E ele diz-me: “Vamos fazer assim, leve um objeto qualquer deste gabinete e pode trazê-lo quando quiser.” E eu, quando ele me diz aquilo, disse: “Ainda fizeste pior.” Estas coisas de banha da cobra… Infelizmente, no meu processo todo, o mais difícil foi encontrar as pessoas certas.

É difícil acertar à primeira, ou à segunda, ou à terceira? 
É muito difícil encontrar as pessoas certas, por duas razões. Primeiro, como em todas as profissões, há profissionais que não são grandes profissionais. E, depois, dentro dos que são grandes profissionais, temos de encontrar alguém que se consiga relacionar connosco. Ou até a metodologia não é certa. Tive um psiquiatra, que não interessa dizer o nome, mas é um dos psiquiatras mais respeitados em Portugal. Eu ia lá uma vez por semana, uma vez de 15 em 15 dias, na altura mais aguda. Sentava-me em frente a ele, ele estava com os olhos no bloco, não os levantava. Eu sentava-me e ele dizia: “Então?” Eu começava a relatar a minha semana e ele escrevia. E não me perguntava absolutamente nada. No final, dizia: “Vai tomar isto, vai continuar com isto, tomar isto.” E não levantava os olhos quando eu saía. Estendia-lhe a mão e ele cumprimentava sem olhar. E é um psiquiatra respeitadíssimo. Ou seja, é uma maneira que pode funcionar para muitas pessoas.

Funcionará para alguém, não é? 
Pode funcionar para alguém. Para mim, tinha de ter essa questão relacional, não tanto com o psiquiatra, que felizmente encontrei um também que tem isso, mas, essencialmente, com o psicólogo.

Então, não faz psicoterapia na altura? 
Nessa primeira fase, não faço.

É medicado e é a única forma de tratamento que tem na altura? 
Na altura.

E a medicação não ajudou ao estigma?
Não, a partir do momento em que percebi a gravidade do que se estava a passar comigo, o estigma desapareceu da minha cabeça, totalmente. Não havia minimamente vergonha, ou querer esconder, ou nada disso. Havia só o sofrimento. É um sofrimento atroz, isso sim. O olhar das pessoas não me interessava minimamente. Interessava-me o sofrimento que eu estava a ter. Nunca tive esse problema.

Um sofrimento que começou a ter aí? 
Primeiro, é um sofrimento físico. Pura e simplesmente, os ataques de pânico são um sofrimento. Esta imagem é um bocadinho… Eu costumo usá-la, pode ser um bocadinho disparatada, mas não é. Um orgasmo é uma explosão de energia para fora. Um ataque de pânico é uma explosão de energia tremenda para dentro, que não se liberta. É uma coisa horrível. Como se, de repente, houvesse uma corrente elétrica que vem para dentro de nós e não sai.

Parece que vamos implodir? 
Parece que vamos implodir. É doloroso fisicamente, dentro de nós. Tirando a questão de “eu vou morrer, o que é isto? Como é que isto passa?” E essa questão física foi o que eu tinha na altura. Era um sofrimento puramente físico. Quando me habituei, digamos, a isto, passou a haver um sofrimento psicológico. E é aquela velha questão: porque é que isto me está a acontecer a mim? O que é que vai ser de mim? Porquê eu? Isso é um sofrimento tremendo. Como é que vou sobreviver? Como é que vou ganhar dinheiro? Isso é um sofrimento, mas que eu via mais como uma análise que fazia de mim, não como o resultado do olhar dos outros.

"O que nós fazemos é lidar com o humor. E houve pessoas que pegaram naquilo e fizeram personagens a gozar com o estado em que eu estava, o que é violentíssimo na altura, mas eu percebo. Éramos umas crianças."

E que fazia sozinho? Ou fazia em conversa, por exemplo, com a sua namorada ou com algum amigo? 
É impossível. Acho que isso é impossível. Sim, a socioterapia é uma coisa que está mais do que provada, ou seja, termos um bom grupo de amigos ajuda imenso, conversar, mas é um processo que temos de fazer sozinhos. Vale a pena que os outros estejam connosco e ajudam muito, mas…

E estavam? Ou não partilhou muito?
Eu tentei partilhar, mas não estavam. E não fiquei magoado com nenhum deles. Dos meus amigos todos, provavelmente houve um que conseguiu estar ao meu lado, os outros não conseguiam, mas não era por não gostarem de mim. É que é muito estranho e muito difícil. Eles viam uma pessoa que conheciam há 20 e tal anos, que, de repente, andava de mão dada para andar — eu andava muito calmamente, porque estava a tomar medicação fortíssima —, um olhar vago e completamente perdido, a minha voz arrastada… Tudo isto, para uma pessoa que me conhece desde os 5, 6, 7 anos, é violentíssimo.

E eles não sabiam lidar com isso? 
Não sabiam lidar. Não sabiam lidar e não levo a mal nenhum deles. Houve apenas um que soube lidar e que fazia uma coisa: pegava em mim aos fins de semana e levava-me para uma casa que ele tinha em Azeitão — “passas lá comigo e com os meus pais”. Para quem visse de fora, eu não estava a absorver nada daquilo, mas aquilo fez-me um bem, e estou-lhe agradecido o resto da minha vida. E depois, a nível profissional, estava nas Produções Fictícias. O que nós fazemos é lidar com o humor. E houve ali pessoas que pegaram naquilo e fizeram personagens a gozar com o estado em que eu estava, o que é violentíssimo na altura, mas eu percebo. Éramos umas crianças, e também não havia o cuidado que há agora com a saúde mental. Um dia estou em casa e vejo uma personagem que era a Henriqueta, feita pela Maria Rueff, que era uma personagem que estava sempre a tomar comprimidos.

Era baseada em si? 
Aquilo foi violentíssimo.

Como é que lidou com isso? 
Estava em casa e foi violentíssimo. Mas depois, com o tempo, eu pensei: “Se calhar, se eu estivesse lá, faria o mesmo.” Mas foi violento.

E continuou a trabalhar? 
Não, não. Nessa altura, deixei de ir lá. Não conseguia. Aquilo foi mesmo violento ao ponto de eu estar dependente, do ponto de vista psicanalítico. Depois fiz psicanálise e foi quase como uma regressão à infância. Estava dependente de uma série de coisas.

Estava nesse estado, em parte, também por causa da medicação. Mas a medicação estava a funcionar para controlar a ansiedade e o pânico? 
Estava. E depois foi um processo gradual de ir baixando a medicação e começar a habituar-me a voltar um pouco à vida. Isto sem apoio terapêutico, só com uma espécie, sei lá, de intuição, de habituação. Não faço ideia do processo, como é que eu fiz, mas foi um processo que fiz sozinho, não sei muito bem como. E fui largando lentamente a medicação.

Tem ideia de em quanto tempo?
Em cerca de seis meses. Fui voltando paulatinamente a começar a trabalhar e a estar com as pessoas, mas tudo muito lentamente. De um dia para o outro, eram avanços mínimos.

E sentiu que as pessoas no trabalho o receberam da mesma maneira, ou sentiu aquilo que às vezes acontece muito, que é as pessoas olharem e pensarem: “Se calhar, não podemos pressionar aqui muito o Henrique”?
Não, quando eu voltei, mesmo às Produções Fictícias, lá está, pelo facto de nós trabalharmos com humor e de sermos todos irresponsáveis, porque faz parte da nossa natureza no humor, não senti isso. Senti que havia muito gozo sobre o que se tinha passado comigo — “e aquela vez que fizeste aquilo e tudo mais”. Isso já não me magoou. Na altura do sketch, magoou-me muito. Isso já não magoou nada, porque eu próprio já estava em condições de ver o ridículo daquilo.

E acha que, para os seus colegas, ou pelo menos para alguns deles, provavelmente os mais próximos, também era uma forma de lidarem com aquilo que lhe tinha acontecido a si? 
Não, aquilo era muito distante, naquela altura, para toda a gente.

Era só uma parvoíce? 
Era uma parvoíce. Lembro-me de que, na altura, um dos meus colegas foi contra fazer esse sketch e disse “não façam isso, isso não se faz”, mas nenhuma destas posições, era, acho eu, feita com os mesmos parâmetros de análise que temos hoje. Era completamente diferente. Nos anos 2000, e dentro de um grupo de putos de 20 e tal anos, era uma brincadeira, era uma palhaçada, não havia a mínima noção da gravidade do que se estava a passar, do que estava a passar por mim. Portanto, quando voltei, se não tinham visto a gravidade antes, não iam ver a gravidade naquela altura, foi perfeitamente tranquilo. “Então, já estás melhor? Como é que é? Vê lá se te estás a encher de comprimidos outra vez.” Eu também me ri, porque na altura já me conseguia rir daquilo. E a vida continuou com uma série de pequenas fobias que ganhei, mas que fui começando a gerir. Tornei-me um pouco claustrofóbico. Tinha algumas coisas que euia gerindo, mas a vida tornou-se funcional. Há aquele critério para as doenças psiquiátricas, que é a intensidade, duração e funcionalidade. A funcionalidade foi tranquila, a intensidade também foi — naquele momento, desapareceu. E, sim, a duração foi longa, mas em coisas muito pequenas, ou seja, eu conseguia funcionar normalmente. Quem não me conhecesse, e quem não tivesse uma relação para eu contar estas coisas, estava comigo e não percebia que eu tinha estas pequenas batalhas a vencer, mas muito curtas. Não tinha nada a ver.

Mas ficou mais atento? 
Super atento. Esse é o problema: fiquei hiper-alerta. Entrava numa sala de teatro e via imediatamente onde eram as portas para sair. Entrava numa sala de cinema e também tentava ficar sempre mais próximo da porta de saída. Que eram coisas, essas sim, de que eu tinha vergonha e tentava que as pessoas não percebessem. Com o passar do tempo, as pessoas vão percebendo que não é por acaso. Mas fiquei super alerta e super atento a uma série de coisas. Como consegui ir fazendo a minha vida normal, a coisa foi andando normalmente e eu pensei: “Isto está a desaparecer”, ou então “isto é uma coisa que eu vou ter de me habituar a viver desta maneira”.

E, a dada altura, chegou a pensar “está resolvido”? Ou nunca chegou a esse momento de dizer que já estava bem?
Não, o que eu fazia era atirar aquilo para trás das costas e fingia que não estava a acontecer. Quando tinha de lidar — por exemplo, entrar numa sala de teatro e ter de lidar com o “para onde é que eu saio agora” — aí sim, pronto, “és este Henrique”. A partir do momento em que estava em situações normais, fazia de conta que aquilo não existia, enganava-me a mim próprio.

Mas não tinha crises? 
Não, nunca mais.

Quando é que percebe que ainda há aqui um problema para resolver? 
A coisa vai continuando, ou seja, vão continuando esses pequenos sinais e depois há uma altura, por questões pessoais, em que há uma escalada, outra vez, do grau da ansiedade, do ataque de pânico e esses pequenos evitamentos, em vez de ser o evitamento do cinema, tornam-se o cinema e tornam-se outra coisa qualquer. Chegou a um ponto em que não conseguia estar sozinho, era-me difícil sair à rua… Mas isto foi tudo num crescendo ao longo de meses, anos.

"A doença faz parte de mim, não tenho problema nenhum com isso, mas essa doença está dentro de uma pessoa. Essa questão de verem a pessoa que é que raramente acontece."

Essa é uma ideia interessante, a dos evitamentos. “Eu começo por evitar isto e, daqui a pouco, já estou a evitar tudo.” Ficou isolado em casa? 
Fiquei. Era muito difícil sair e, depois, lembro-me de uma altura em Madrid, em que entrei num hotel e o quarto do hotel deu-me ansiedade. Disse “este quarto de hotel está a dar-me um ataque de ansiedade, não pode ser este quarto”. E mudámos para outro hotel, para outro quarto. Entrei no segundo quarto e, passado 20 minutos, “não, esta janela é muito grande, está a dar-me ansiedade”. Isto é uma bola gigante que, de repente, começa a tomar conta. Não tinha nada a ver com aquela janela nem com a outra, mas, de repente, a coisa começa a tomar um tamanho tal que a nossa vida deixa de existir. Começa a ficar cada vez mais cerceada por estes medos e estes pequenos evitamentos.

E, nesses momentos, fazia o quê? Tinha medicação SOS, por exemplo? 
Tinha medicação SOS, que começou a não resultar, ou seja, sempre que a coisa ia escalando, havia uma altura em que a medicação resultava e depois havia uma altura em que ia subindo a tal ponto que a medicação já não funcionava — a medicação que eu estava a tomar na altura. Eram uns ansiolíticos, o antidepressivo já não estava a tomar porque, entretanto, a questão da depressão tinha desaparecido. Eram só uns ansiolíticos que eu ia tomando, depois ia aumentando as doses, e depois, nessa altura, a coisa foi escalando. Foi quando descobri o psiquiatra que até hoje me acompanha.

Porque deixou de ir ao mesmo? 
Deixei.

Mudou de psiquiatra e encontrou um psiquiatra que fez o mesmo diagnóstico? 
Fez o mesmo diagnóstico, mas entrou e tratou-me como uma pessoa, essa é a grande diferença, eu não fui um paciente. Isto é relacional. Eu agora faço psicanálise e cheguei à conclusão de que esta questão da saúde mental é uma questão relacional — a minha relação comigo e a minha relação com os outros. Tudo o resto são sintomas. Sim, tem de se tratar os sintomas. Obviamente, sem a medicação eu não estaria onde estou hoje. Mas, na verdade, ou se trata a causa disto tudo, que é uma coisa muito mais profunda, ou então andamos aqui a pôr pensos rápidos e pensos rápidos, até, de repente, haver um corte mais fundo em que o penso rápido não dá, e a infeção alastra, e vamos para aí fora.

Na primeira consulta com o novo psiquiatra, o que é que foi diferente? 
Lembro-me perfeitamente do que é que foi. Estava tão habituado a ir a psiquiatras e psicólogos… Estamos a falar desde os 22 anos até aos 34, por aí, quando encontrei o psiquiatra onde estou.

Doze anos?
Sim. Ia regularmente a psiquiatras e psicólogos e já estava habituado. Entrava e dizia: “Olhe, tive um ataque de pânico aqui, depois tive isto, depois aconteceu-me isto, depois tive uma depressão, depois comecei a tomar isto.” E qual era a medicação? “Tomava isto e isto.” E tinha medo de quê? “Tinha medo disto e isto e isto e isto.” Portanto, cheguei, entrei e fiz a mesma coisa. Sentei-me no sofá e ele disse: “Então, diga-me lá.” Ele começa a fazer o número todo e eu já com muita pouca esperança que resultasse. E, quando acabo, diz-me ele: “Então e você?” E aquele “então e você?” entrou em mim de uma maneira que não me lembro se chorei, mas sei que, de repente, alguém me olhou. Ou seja, não sou um paciente, sou o Henrique.

Porque descreveu um doente e, de repente, estão a perguntar-lhe por si. 
A doença faz parte de mim, não tenho problema nenhum com isso, mas essa doença está dentro de uma pessoa. Essa questão de verem a pessoa que é que raramente acontece. Quando ele me disse “então, e você?”, demorou um tempo — aquele sketch do “computer says no”, demorou um bocadinho a coisa entrar. “Então, e eu?” Depois, pensei: “Espera lá, ele quer saber de mim.” E comecei a falar-lhe da minha vida, das minhas relações, dos meus pais, do meu trabalho, das minhas angústias, e lá está: comecei a falar do que é o âmago que todos nós, os nossos medos, as nossas ansiedades, as nossas aspirações, os nossos amores, os desamores, tudo isso. Isso é o que nós somos.

"Sentia-me mais apoiado pelo psiquiatra e sentia que ele sabia exatamente o que estava a fazer. Mas fui subindo a um ponto em que já estava a tomar antipsicóticos, já estava numa coisa mesmo muito, muito violenta."

Aquilo que, na verdade, nos empurra para um lado ou para o outro. 
Exatamente. E comecei a falar-lhe disso tudo. E ele começou a falar-me disso. E estivemos ali imenso tempo. Ele tinha outro paciente a seguir, a quem pediu para ser um pouco mais tarde, porque disse-me “o seu caso é sério, preciso falar um pouco mais consigo”. E ficámos a falar. Passou a ser ele a medicar-me, passei a ser acompanhado por ele, e as coisas começaram, não a melhorar, mas senti que estava a ser bem acompanhado. Lá na altura, falámos da questão de fazer psicoterapia ou psicanálise. Ele disse: “Vamos deixar isso para você tomar essa decisão.” A metáfora que ele me deu da psicanálise é absolutamente brilhante e certeira — porque, na altura, comecei a perceber (e ele também me estava a levar para ali) que tinha de fazer mais alguma coisa. “Olhe, pense na psicanálise assim: você é uma cómoda gigante e, de repente, vão abrir as gavetas todas e pôr a roupa toda cá fora. Enquanto a roupa estiver toda cá fora, Henrique, vai ser um sofrimento tremendo. Você vai andar perdido e é perigoso, no seu caso, porque aquilo vai dar-lhe um sofrimento tremendo. No momento em que você começar a guardar as coisas nas gavetas e a fechá-las, vai sentir um alívio e uma coisa fantástica.”

A perspetiva dele é que era preciso desarrumar tudo para poder começar a arrumar?
Que a psicanálise fazia isso, era a perspetiva dele.

Mas ele achava que precisava disso? Ou deixou a decisão totalmente consigo?
Totalmente. Eu perguntava-lhe e ele dizia sempre: “A decisão é sua.”

Porque é difícil fazer? 
É muito difícil. É muito difícil. E essa questão é verdade. Na verdade, nós construímos um edifício — se quiser outra metáfora —, nós somos um edifício feito, e pode estar torto, mas está feito. Para o pormos direito, temos de destruí-lo e voltar a construir. Essa parte da desconstrução é ficar perdido no mundo.

A medicação era muito diferente?
Era muito diferente, mas a coisa não melhorava. Sentia-me mais apoiado por ele e sentia que ele sabia exatamente o que estava a fazer, e explicava-me o que se estava a passar comigo. Mas fui subindo a um ponto em que já estava a tomar antipsicóticos, já estava numa coisa mesmo muito, muito violenta.

E conseguia ser funcional nessa altura? 
Aí já não. Já não conseguia escrever, já não conseguia fazer nada. E uma coisa que me marcou muito foi que, quando se está neste nível de ansiedade e ataques de pânico e de depressão, tudo junto ao mesmo tempo, a mente não pára. O mais que eu queria era que o meu cérebro parasse.

Nem com os medicamentos parava? 
Com nenhuns, a não ser com os antipsicóticos. E, a dada altura, ele disse: “Olhe, Henrique, a partir daqui só há uma coisa, mas é muito violenta.” E eu disse: “O meu cérebro tem de parar, senão eu vou ficar louco.” Receitou-me esses medicamentos, eu tomo aquilo e lembro-me perfeitamente do momento em que estava, o sítio onde estava. Tomo aquilo e, de repente, o meu cérebro, passado meia hora, uma hora, acalma. Para quem estava de fora, não foi nada bonito de se ver, dizem. Mas, para mim, foi uma paz e um descanso de um sofrimento que andava a ter há anos. Depois, continuei a fazer essa medicação, mas, mesmo assim, ele disse: “Isto não é uma solução para o que você tem.”

"Estava muito debilitado do ponto de vista cognitivo, portanto tudo aquilo me entrava como uma espécie de flash. E o processo de ir para o hospital psiquiátrico e estar lá foi muito, muito violento."

Nessa fase, já tinham passado mais de 10 anos daquele início, daqueles anos 2000. Nós já tínhamos todos evoluído um bocadinho. A relação com os seus amigos, ou a informação que dava aos seus amigos, às pessoas à sua volta, mudou de alguma forma? Ou ainda era cedo? 
Era estranho, porque, se da primeira vez foi aquele “o que é que lhe aconteceu” e não conseguirem lidar, da segunda vez eu já tinha uma sentença. Já estava sentenciado, já não era uma coisa tão estranha. Os dois grandes momentos em que me fui abaixo, foi nessa altura, da primeira vez nas Produções Fictícias; e esta de que me estava a aproximar agora. Esta, para eles, já não foi uma surpresa, era a sentença que eu já tinha. Portanto, “olha, lá está o Henrique com aquilo, aconteceu outra vez”. Já não foi tão violento. Não é que soubessem lidar, mas já havia ali uma espécie de uma empatia diferente. Quando digo empatia, não é que eles não gostem de mim, eu percebo…

Uma capacidade de se ligar. 
Exatamente. Pondo-me do outro lado, na verdade, o que acontece é que as pessoas têm medo de que lhes aconteça a elas. É isso.

Por isso é que fugimos das doenças e das pessoas doentes? 
Claro. No fundo, é esse medo. E então, começo a fazer essa medicação mais forte e, mesmo assim, com essa medicação forte, não estava a fazer o caminho de volta ao meu eu normal, como fiz com os outros medicamentos. Na altura, tinha uma psicóloga indicada pelo meu psiquiatra, que tinha feito a formação na Inglaterra, que era muito cognitivo-comportamental. E o psiquiatra achou que a melhor coisa que tínhamos a fazer era eu ser internado durante um período de tempo, porque tinha mesmo de ter uma intervenção intensiva durante algum tempo.

Porque aquilo não estava a funcionar para travar aquela fase mais aguda. 
Não estava, e todo o ambiente à minha volta também não. Quando se chega a um certo ponto, a pessoa precisa de ser cuidada, primeiro de tudo. E, mais do que cuidar, precisa de uma intervenção intensiva. Quando digo intensiva, é todos os dias. Nesse hospital psiquiátrico onde estive, acordava e deitava-me e durante todo o dia era tudo: terapia de grupo, exercícios, coisas que aprendia sobre o que é a ansiedade, sobre o que é a depressão.

Não era uma ou duas vezes por semana, uma conversa de uma hora. 
No estado em que eu estava, isso já não resolvia.

E como é que foi esse processo? Como é ouvir uma coisa do género: “Henrique, vamos ter de o internar”? 
Violentíssimo, violentíssimo. Deste processo todo, foi a parte violenta. O ouvir isso e todo o processo de ir para o avião, tudo isso foi de uma violência tremenda. Primeiro porque eu estava muito debilitado do ponto de vista cognitivo, portanto tudo aquilo me entrava como uma espécie de flash. E o processo de ir para lá e estar lá foi muito, muito violento.

Mas violento ao ponto de ter recusado no início? 
Não, nunca recusei. Quando conheci o psiquiatra onde estava, percebi que era a única pessoa que estava a perceber o que se estava a passar e que podia ajudar. Entreguei-me completamente na mão dele.

Confiava plenamente? 
Totalmente, até hoje. Confio totalmente nele porque, realmente, foi ele que me tirou desse buraco em que eu estava.

E vai sozinho, a saber ou sem saber durante quanto tempo? 
Sem saber quanto tempo. A questão é que eu estive num colégio interno quando era mais novo, e as memórias de colégio interno nunca são agradáveis. E, quando vou daqui para lá, tudo aquilo era de uma violência tremenda, e lembro-me de que, quando cheguei a esse hospital, que era o Priory, em Londres, parecia Downton Abbey, mas para doenças mentais. É lindíssimo: um jardim, uma casa senhorial, tudo aquilo é fantástico. E lembro-me de que, quando entrei, vi aquilo e pensei: “Ok, isto pode não ser assim tão mau.” Entro e recebem-me — muito ingleses, muito british —, mostram-me a sala onde se almoçava e jantava. “Pronto, então agora vamos levá-lo ao seu quarto.” E, de repente, vou para uma ala que tem uma porta com vidro com arames e com um código. E eu pensei: “Ok, aquela imagem idílica já foi.” Ele põe um código e, quando passo lá para dentro, entrei noutra realidade. E depois a cena de ficar no quarto fechado, ter de entregar as minhas coisas todas… Aquilo é muito, muito, muito violento.

Porque despersonaliza? 
Para já, porque temos a noção da gravidade do problema que temos — isso é a primeira coisa. Ali, temos claramente a noção da gravidade. E, depois, é o estarmos entregues àquelas pessoas, porque eles é que nos dão a medicação, tiram-nos tudo… Eu tinha os meus medicamentos em SOS, que era uma espécie de mágica que eu tinha no bolso e tomava. E tiraram-me tudo, fiquei ali entregue a pessoas que não conhecia, num quarto que, para sair, tinha de pôr um código, cada vez que passávamos por portas tínhamos outro código para pôr, horas para tudo, horas para acordar… Ou seja, era um misto de tropa, colégio interno e hospital psiquiátrico.

Nesse primeiro impacto, joga na sua cabeça o conjunto de imagens que fomos construindo dos hospitais psiquiátricos? Já percebi, pela descrição inicial, que não era propriamente um manicómio dos anos 50, mas entra com a ideia de “estou num hospital de malucos”?
Só à noite. À noite era Voando Sobre Um Ninho de Cucos, porque, por cima da ala onde eu estava, era onde estavam os adolescentes. Eu estava nos adultos e, estranhamente, os casos piores não eram dos adultos, eram dos adolescentes que estavam no piso de cima. Então, à noite, ouvíamos os gritos lá em cima e ouvíamos as discussões e coisas a partir. E pessoas que entravam internadas durante a noite. E sim, à noite era Voando Sobre Um Ninho de Cucos. Depois, quando acordávamos, tudo aquilo era muito inglês. Ouviam-se os passarinhos, elas eram muito atenciosas, tudo aquilo fazia com que estivesse um bocado mascarado o sítio onde eu estava.

Mas a fazer todas essas terapias? 
Sim. Os ingleses são muito ligados à vertente cognitivo-comportamental. Ou seja: vamos ensinar o seu cérebro a reagir de outra maneira, vamos explicar o que é que se está a passar… E isso pode não funcionar para algumas pessoas. Eu percebi que, no meu caso, o que funciona é ir mais fundo, é ir a uma vertente mais psicanalítica. Mas aquilo ajudou-me, obviamente que me ajudou.

O que é que se faz nesse trabalho? É fazer com que a pessoa reaja de forma diferente às coisas que vão acontecendo? 
É uma reprogramação do cérebro. Na teoria cognitivo-comportamental existe uma coisa que se chama exposure, que é: vamos expor a pessoa ao que lhe causa medo e, supostamente, ao expormos a isso várias vezes, a reação do cérebro vai sendo cada vez menor, a pessoa vai-se habituando. Isto pode ser verdade de um ponto de vista médico, mas o sofrimento que é preciso para passar… Tive coisas horríveis, viagens que não queria fazer de avião, que me obrigavam a fazer para vencer esse medo. Fiz uma viagem a Espanha, uma vez, que foram duas horas de ataques de pânico. Um vinha e acabava — os ataques de pânico duram três minutos no máximo. Três minutos de ataque de pânico, dois minutos em que conseguia respirar, três minutos de um ataque de pânico — e fui assim durante duas horas, o que é uma violência tremenda. E, às vezes, com a minha psicóloga em Lisboa, fazia experiências no elevador do hotel do Bairro Alto. Era um dos sítios onde ela me dizia: “Agora tens de entrar no elevador e subir aquilo.” Eram exercícios que eu ia fazendo. Não digo que não resulte com algumas pessoas, e que não haja um conhecimento científico e uma base científica por trás daquilo, mas, nas doenças mentais, acho que cada pessoa tem de encontrar a sua maneira. E a minha não era aquela. Portanto, a única coisa que me ajudou no Priory foi ver que, ao nível dos adultos — não falo dos que estavam em cima, dos adolescentes —, o meu caso era grave, mas também não era assim tão grave. Nunca mais me esqueço de uma rapariga que tinha 20 e tal anos, linda de morrer, que se achava feíssima, feíssima. E, nas sessões de terapia, ela contava o que fazia, automutilava-se, fazia uma série de coisas, e era das mulheres mais bonitas que vi até hoje. E achava-se horrível, dizia que nunca ia encontrar ninguém. Outra senhora, que tinha uma cadeia de lojas em Londres, tinha ataques de pânico que nem sequer conseguia ficar durante as sessões de terapia em grupo até o final. Ou seja, comecei a ver que isto é uma coisa muito mais abrangente. Tu tens um caso grave, mas há pessoas que têm casos mais graves do que tu. Há uma relativização.

"A terapia cognitivo-comportamental dá-nos muitas ferramentas, e aprendi muitas com eles. Isso foi o que me permitiu agarrar-me um pouco à vida e continuar a ser funcional."

E aprende-se com os casos dos outros? 
Muito, muito. Porque, lá está, volto àquela questão do relacionamento. Para mim, há aqui uma génese de relacionamento comigo e com os outros. Estar com outras pessoas que têm o mesmo problema, falar sobre isso, apesar de serem doenças diferentes — a anorexia não tem nada a ver com o meu caso —, mas o facto de falarmos uns com os outros do que sofremos e do que fazemos para esse sofrimento, tudo isso nos ajuda muito. Porque há uma solidão tremenda nas doenças mentais.

Quanto tempo ficou? 
Não fiquei um mês, foram 15 dias, 3 semanas.

No meio desse tempo, nunca pensou em desistir? 
Não, nunca. Queria cumprir aquilo até o fim.

E a reação das pessoas cá? Os seus amigos? 
Não sabiam, não disse a ninguém.

Ninguém sabia? 
Não. Acho que nunca contei isto publicamente.

Porque é que tomou essa decisão de não contar, mesmo às pessoas mais próximas? 
Não sei, acho que isso já era uma coisa tão minha, tão minha, que achei que não fazia sentido. Acho que todos nós temos uma vida pública, privada e secreta. Isto não era a minha vida privada, era a minha vida secreta, já ia mais fundo do que isso. E achei que não fazia sentido. Estou a contar hoje porque acho que pode ajudar algumas pessoas que oiçam isto e perceberam que também não é assim… É violento, mas há alturas em que é preciso. E que era a única maneira de eu sair daquele processo em que estava.

Funcionou para começar esse regresso. 
Para começar. Ou seja, ganhei uma série de ferramentas — desse ponto de vista, a terapia cognitivo-comportamental dá-nos muitas ferramentas, e aprendi muitas com eles. E, depois, isso foi o que me permitiu agarrar-me um pouco à vida e continuar a ser funcional para perceber “ok, então agora vamos lá tratar disto de uma forma mais perene”.

Quando lhe dizem “olhe, Henrique, vai ter alta, pode voltar a Portugal”, teve medo? 
Tive um certo receio, “vou voltar e vai ficar tudo no mesmo”, porque ali era uma coisa extremamente protegida e idílica. Pensei que isso ia acontecer. E aconteceu. Quando cheguei, obviamente que as coisas voltaram quase ao que estavam. Só que, lá está, eu tinha algumas técnicas para me defender. Fiquei a perceber muito melhor os aspetos fisiológicos que se estavam a passar comigo, quando aconteciam os ataques de pânico, a ansiedade, a depressão, tudo isso, do ponto de vista fisiológico.

E isso ajudava-o a controlar algumas coisas melhor ou a lidar com elas quando elas aconteciam? 
A lidar, mais do que controlar. Esse foi o problema. Eu percebia-as melhor, mas não as conseguia controlar. E depois voltei aonde estava do ponto de vista da evolução da doença, a coisa voltou a escalar outra vez e voltou a chegar a um ponto muito complicado em que volto a tomar os antipsicóticos. E só depois dessa altura, só depois dessa segunda fase, em que faço outra vez o mesmo percurso de antipsicóticos durante um tempo, até a coisa estabilizar, volto depois a ser funcional já com os conhecimentos do Priory e com ter estado nesta fase um pouco mais calma, e mais tarde vem a psicanálise, que foi a grande diferença na minha vida.

Como é que foi a primeira consulta da psicanálise? 
Não queria ir, essa foi a única a que eu não queria ir.

Porquê?
Por causa da questão das gavetas. O final é muito bonito, mas, de repente… não me vou meter nisto. Eu já tinha uma dificuldade tremenda em me aguentar de pé enquanto edifício mental, e vão-me dizer: “Agora vão-te tirar mais umas gavetas e tu vais…”

Isto vai piorar antes de melhorar. 
Vou ficar louco, sei lá o que é que me vai acontecer. Se eu, assim, já tenho uma dificuldade, isto vai ser uma coisa…

"Quando vou à psicanálise, o objetivo é deixar de me preocupar comigo. Porque, durante muito tempo, só me preocupava comigo, com os problemas que tinha. Quero tirar-me a mim da equação."

Se não queria, porque é que foi?
É a batalha entre o inconsciente e o consciente, que anda sempre a nós. Os persas, quando tomavam decisões, faziam de duas maneiras: tomavam as decisões bêbados e depois, no dia a seguir, quando acordavam, pensavam sobre o mesmo assunto sóbrios. Se as duas decisões fossem a mesma, sóbrios e bêbados, eles faziam. Mas decisões grandes, tipo invadir um país ou uma coisa qualquer. Porquê? Porque isto é o lógico e o irracional, é ter os dois de acordo. Portanto, eu, de um ponto de vista inconsciente, queria ir; de um ponto de vista racional, não queria ir. E como não fiz o teste bêbado e sóbrio, acabei por ir. E é verdade, foi muito violento, ao princípio, mas foi o começo do caminho para onde estou hoje. Não sei se é da Clarice Lispector, mas há uma frase que me marcou a vida toda, que é: a infância é o chão que pisamos a vida inteira. Que é daquelas frases que me ficam para sempre. E acho que é isso. Nós queremos ir para a frente nas nossas vidas, mas há alguns que não conseguem ir para a frente sem ir atrás primeiro. E eu tive de ir atrás, tive de estar em paz com uma série de coisas que se passaram comigo, tive de estar em paz comigo.

E descobriu coisas nesse trabalho que nem sequer tinha noção de que tinham tido um impacto? 
Descobri aquelas coisas com que eu lidava a pensar: “Ah, isto é disto, isto é daquilo…” De repente, entra-se num campo completamente diferente, em que se lida muito com o simbólico, em que há aquela imagem muito caricatural da mãe. Sim, isso também existe, mas é muito mais do que isso.

Às vezes, tenta-se reduzir a psicanálise a “sim, no final, a culpa é dos pais”. É muito mais do que isso?
Muito mais do que isso, isso é reduzir um jogo de futebol ao penálti. É muito mais do que isso. Se tivesse de resumir, é tirarmo-nos do caminho a nós para podermos ser aquilo que queremos ser. Quando vou à psicanálise, quando estou lá — e ainda estou hoje —, o objetivo para mim é deixar de me preocupar comigo. Porque, durante muito tempo, só me preocupava comigo, com os problemas que tinha. Quero tirar-me a mim da equação para poder ser um bom marido, um bom pai, um bom argumentista, o que quer que seja. E para isso, primeiro, temos de nos resolver a nós. É isso que a psicanálise faz. Agora, ir buscar só a questão da mãe, ou do pai, ou das infâncias, ou dos traumas… Sim, isso está tudo lá, mas é muito mais do que isso. É uma conversa connosco e é uma conversa connosco moderada por alguém, que nos ajuda a conversar connosco.

E arrumar essas gavetas significa que essas questões, por serem revisitadas e resolvidas de alguma forma, deixam de doer? 
Não, as coisas nunca deixam de doer. Acho que a grande questão que podemos fazer enquanto seres humanos é: quem é que nós somos? A psicanálise é esse caminho para percebemos quem é que somos. Há um documentário do Cruzeiro Seixas com uma frase que me marcou para a vida toda. Ele estava a mostrar umas coisas da infância dele e mostra uma foto dele com vinte e tal anos. E ele, já velhote, diz para a câmara: “Eu, na altura, pensava que era este.” Aquela frase é de uma profundidade… É isso que acontece. Ou seja, temos de perceber quem é que somos. E nós, quando somos mais novos, achamos que somos aquilo, achamos que somos outra coisa aos trinta. E temos, acima de tudo, de estar em paz com aquilo que somos. Isto parece simples, parece um clichê, parece um coach, mas é de uma profundidade tremenda e de uma dificuldade tremenda, percebermos quem é que somos.

A sua depressão, o seu pânico e a sua ansiedade naquela altura estavam no espaço entre quem o Henrique achava que era e quem o Henrique efetivamente era? 
Isso foi sempre o meu problema, desde o início. Não quero generalizar isto para ninguém, mas é sempre o problema, ou seja, uma luta entre aquilo que somos e aquilo que queremos ser, ou que achamos que devemos ser. É sempre isso. Agora estou em citações: o David Bowie diz que, à medida que vamos envelhecendo, vamo-nos tornando aquilo que deveríamos ser ou que deveríamos ter sido. E é isso. Todo este meu processo ajudou, mas também a idade ajudou um pouco. Acho que há uma luta muito grande entre o que nós queremos ser para a sociedade, porque nos exigem, e entre o que nós achamos que devemos ser, porque nos temos sempre em alta conta. E, na verdade, a maior parte das vezes não somos assim tão especiais. “Não, eu não sou rancoroso.” Se calhar, és, mas nunca admitiste que és. Estar em paz com isto tudo é uma coisa muito difícil, mas é o único caminho para podermos estar felizes. Aquela felicidade que é estarmos sozinhos, não termos ninguém, não termos Netflix, não termos rede, e estarmos a contemplar. E está tudo bem, não precisamos de nos esconder em nada.

"Tento manter muito uma espécie de higiene mental, que também é importante. As pessoas, quando falam em saúde mental, ignoram três coisas muito simples: dormir bem, comer bem e fazer exercício."

Uma das coisas difíceis de fazer terapia, para quem nunca fez, é pensar “o que é que eu digo, vou falar de quê?” Há um bocadinho a ideia de que a pessoa é que tem de conduzir tudo. Não dá ainda mais medo na psicanálise, por não se saber para o que é que se vai?
Mas é importante esse medo. Para quem não sabe, na terapia não psicanalítica está-se sentado como nós estamos e vai-se falando cara a cara; na psicanálise, está-se num divã, não se está a ver a pessoa que está a falar connosco. O que é que isso faz? Faz com que, na verdade, o diálogo seja muito mais connosco, e aquela voz acaba por ser uma voz meio etérea. Isso faz com que nos libertemos mais e vamos para um campo mais simbólico.

Também não temos de estar a olhar para a cara da pessoa. 
Exatamente, isso é a primeira coisa, porque é uma espécie de julgamento logo que está a vir quando estamos com outra pessoa. Ali não há julgamento absolutamente nenhum, e abres o campo para o simbolismo e para uma série de coisas.

E não dá mais medo?
Dá mais medo, até por essa questão de chegarmos lá e pensarmos “agora o que é que eu vou dizer?” As minhas primeiras sessões foram muito conturbadas, porque eu estava numa fase muito agitada, muito aguda, e aquilo foi muito difícil até para o meu psicanalista. Mas, quando o processo estabilizou, o silêncio faz parte. Eu chegar lá um dia e não dizer nada e estar deitado, isso faz parte, isso tem um significado, isso acontece por alguma razão.

Porque no diálogo consigo não estava calado? 
Ou porque há alguma coisa que eu tenho para dizer e não quero dizer, ou porque me sinto vazio, ou porque tenho vergonha de dizer aquilo que estou a pensar. Há sempre uma razão.

Durante quanto tempo fez psicanálise? 
Continuo a fazer. Naquela fase aguda, fazia três vezes por semana. Agora consigo, à distância, perceber o quão hardcore foi. Depois passei a duas vezes por semana, durante muito tempo, e agora faço só uma vez por semana, mas já estou nisto há mais de dez anos.

E continua a desarrumar ou continua ainda a arrumar tudo o que desarrumou? 
Não, as gavetas já estão todas no sítio. Agora ando a afinar várias coisas, aqui e acolá. Tento manter muito uma espécie de higiene mental, que também é importante. As pessoas, quando falam em saúde mental, ignoram três coisas muito simples: dormir bem, comer bem e fazer exercício.

Começou a fazer isso na altura?
Sim, comecei. O ginásio foi muito importante para mim. Ter algumas regras, por exemplo: acordo, tomo o pequeno-almoço, vou passear as minhas cadelas e não olho para o telemóvel, mesmo que esteja a coisa mais importante a acontecer naquele dia. A coisa de acordar e pegar no telemóvel, para uma pessoa como eu, que tem estas tendências, não posso fazer. E houve essas coisas de higiene que eu fui aprendendo a ter para não sentir a pressão, porque o trabalho que faço tem muita pressão. Ter uma folha em branco, ter de entregar um texto, ter de ter graça ou ter de acabar um guião, é pesado. Tira-se sempre um pouco de nós para o trabalho que se está a fazer. Portanto, tive de arranjar maneiras de me proteger. Agora, o trabalho que faço, hoje em dia, em psicanálise já não é tão intenso como aquilo que fazia no início.

Na altura, naquela fase aguda, quanto tempo demorou, por exemplo, a voltar a trabalhar? 
Sou internado, volto à medicação e foram mais seis meses. E voltei a trabalhar. Tenho de estar mesmo muito mal para não trabalhar. Até agora, foram duas vezes que me aconteceu: quando estava nas Produções Fictícias, aqueles esses seis meses em que não trabalhei; e depois, nos meus 35 ou 33 anos, em que estive seis meses também sem trabalhar. Depois, nas outras altura, estou a trabalhar, mas com o dobro do esforço para conseguir sair alguma coisa, porque a minha mente está um pouco adormecida. As coisas saem, mas… Quem está ali do outro lado, não vai perceber, mas, para mim, conseguir fazer aquela página foi o dobro do esforço. Depois, quando comecei com a psicanálise, foi exatamente o contrário. A minha mente libertou-se. Não tenho problema nenhum com as coisas que fiz antes, mas acho que as coisas melhores que fiz foram depois de ter começado a fazer psicanálise. Porque a mente liberta-se de uma série de constrangimentos, de coisas que não se quer dizer, coisas em que não se quer tocar, tudo isso deixa de fazer sentido.

"O que quero é estar bem comigo e estar bem com as pessoas à minha volta. Já percebi ao longo destes anos da minha vida os infernos onde se pode ir, os falsos paraísos onde se pode ir, esses caminhos todos."

O trabalho contribuía mais como pressão para entregar, para ter graça, ou o humor também funcionava como uma forma de salvação? 
Terapia. O que é complicado nisto é quando se está a fazer três projetos ao mesmo tempo e o prazo é muito apertado. Isso é a pressão, é o stress, como em qualquer trabalho. Agora, um trabalho normal que eu esteja a fazer — fazer uma série, escrever um programa — e tenha os meus prazos de entrega, aquilo é a minha terapia, já percebi que o trabalho é uma coisa muito identitária para mim. E, depois, o humor está muito ligado às pessoas depressivas. Costuma-se perguntar às pessoas depressivas: “Estás ligado ao humor? Tens alguns traços depressivos.” A verdadeira pergunta não é essa. Uma vez fizeram essa pergunta ao Alain de Botton num podcast. Ele disse: “Não, a pergunta verdadeira não é essa. A pergunta é se a pessoa que está ligada ao humor teve alguém na família, um pai ou uma mãe, que era depressivo. Porque aí é que nasce o humor como forma de reagir a isso. Se a pessoa depois se torna depressiva ou não, é outro campeonato. Estamos a generalizar, o que é horrível.

Mas, havendo também uma componente genética familiar, é muito provável… 
Exatamente, mas, normalmente, o humor nasce não como estratégia de reagir à minha depressão, ao meu traço depressivo, mas de pôr aqui a minha mãe a rir, ou o meu pai a rir, ou então “isto está aqui tudo tão tenso que tenho de fugir um bocadinho deste mundo e inventar umas palhaçadas”. Lá está, de uma forma muito inconsciente, de que nós não nos apercebemos.

É essa a explicação para, sobretudo recentemente, se ter percebido que tantas pessoas ligadas ao humor estão, na verdade, muitas vezes sentadas a uma secretária a produzir um texto humorístico quando estão profundamente tristes?
Isso sempre aconteceu. Só que os humoristas agora têm a liberdade, acham que as pessoas estão preparadas para ouvir isso ser dito, e na altura não estavam. Ou seja, um humorista dizer “eu sinto-me profundamente deprimido” podia ser até ofensivo para as pessoas. “Mas este gajo é humorista, escreve piadas e agora tem uma depressão?!” Aquilo não iria fazer sentido. Depois há a questão do estigma. E depois há a questão da vergonha de quem diz. Portanto, estas três alteraram-se. Quer a vergonha de quem diz, quer o estigma da sociedade, quer esta reação, de achar que isto não bate certo, o humor com a depressão e com a tristeza. Bate. Aliás, o humor é isso. É uma espécie de vingança contra a mortalidade. E a mortalidade é, não vou dizer o derradeiro dos sofrimentos, porque, provavelmente, tirando alguns casos, não se sofre, mas é um sofrimento constante que anda sempre cá dentro de nós. “Isto vai acabar, isto vai acabar.” É uma vingança contra isso. Portanto, o humor e o sofrimento estão sempre muito próximos.

Já teve momentos, neste tempo que passou, de pensar: eu já estou bem? Ou nunca caiu nessa tentação de achar que já está bem? 
Não, porque eu não quero estar curado.

Não quer no sentido de ser um objetivo? 
Não é só isso, porque há um certo desequilíbrio na minha profissão. E o estar curado, às vezes, também pode ser… Eu percebo que tenho um certo desequilíbrio, não olho para as coisas da mesma maneira que as outras pessoas e não quero perder isso agora. O que quero é conseguir fazer isso de uma forma feliz e saudável, que não conseguia. E, mais uma vez, acho que isto tem a ver com uma lógica relacional, interna e externa. Quero estar bem comigo e bem com os outros. Quando não se está bem consigo nem com os outros, aí é que há o problema. Isso é a coisa a que eu aspiro: estar bem comigo; estar contente com aquilo que sou; mesmo que não esteja contente, estar consciente daquilo que eu sou, que já é difícil; e estar bem com as outras pessoas que estão à minha volta. Agora, se isto é curado, se não é curado… Porque depois vamos entrar naquelas questões do normal e o que não é normal. Eu não faço ideia. O que quero é estar bem comigo e estar bem com as pessoas à minha volta. Já percebi, ao longo destes anos da minha vida, os infernos onde se pode ir, os falsos paraísos onde se pode ir, esses caminhos todos. Acho que a única baliza e o único barómetro para isto — tirando as questões práticas, como falámos, da psiquiatria, que é ser funcional ou não, a intensidade e a duração, como critério para uma doença mental — é uma coisa um bocadinho mais abrangente e mais profunda para mim, que é estar bem comigo e estar bem com os outros.

"A pior coisa que eu tinha era a hipervigilância. Isso desapareceu, por causa desta rotina. Da mesma forma que cuidamos do corpo, da aparência, eu aprendi a cuidar da minha mente também."

E a salvação é o quê? Se se aproxima um ataque de pânico, se se aproxima uma situação que o leva a relembrar esse tempo que passou, saber como reagir, ter estratégias para reagir? Mais do que essas coisas deixarem de acontecer? 
Há pouco, quando falávamos do Priory, a minha ansiedade subiu. Mas, pronto, subiu. E não estou à espera de que agora possa contar esta experiência 500 vezes e nunca tenha ansiedade. A questão é que não disparou de uma forma absoluta, porque estou mais em paz com aquilo que passei. Obviamente que foi traumático, obviamente que alguma coisa criou ansiedade, como várias coisas na minha vida me criam ansiedade. Mas não estou à espera de viver sem ter um ataque de pânico daqui uns dias, ou de ansiedade, ou de ter um princípio depressivo. Pode acontecer, mas é muito menos provável.

Mas não vive também sempre a olhar por cima do ombro? 
Não, isso era horrível. Isso era a pior coisa que eu tinha, essa hipervigilância. Isso desapareceu, por causa desta rotina. Da mesma forma que nós cuidamos do corpo, da aparência — hoje em dia, também de uma forma muito exacerbada —, eu aprendi a cuidar da minha mente também. E não é só ir fazer psicoterapia, ir a um psicanalista. São pequenas coisas. É fazer férias quando podemos fazer; é pegar nos cães num dia em que estou chateado e ir passear, é pegar na minha mulher e ir jantar porque hoje não me interessa de nada, é desligar o telefone e não querer saber. Estas pequenas coisas, nós achamos que não são nada, são tanto. É ter um alarme no TikTok, que tenho de ter. A partir de não sei quantos minutos de TikTok, pus um alarme e ele diz-me que já estou há não sei quanto tempo. E eu desligo. Porque também não concordo com aquela história de agora não podermos fugir das redes sociais. Eu sou de Direito e a minha formação é jurídica. E havia um juiz americano que dizia que devia haver uma pena para as pessoas poderem ser julgadas por não viverem o tempo em que estão. Devia haver uma pena. A pessoa não viver o tempo em que está devia ser um crime. E eu concordo com isso. Provavelmente, a imprensa, quando surgiu, também diziam “tu lês jornais e isso dá-te cabo da tua noção de realidade”. A rádio, a televisão, tudo. Vamos conviver com redes sociais, com esta velocidade que temos, que é completamente diferente. Agora, vamos aprender a defender-nos, não é? Não nos vamos entregar a isso. É tirar o melhor que as coisas têm. Eu aprendi muita coisa no TikTok. Muita coisa. Inclusivamente, pequenos exercícios de respiração, de saúde mental. Coisas desse género. É só ter uma espécie de higiene mental. Acho que isso é muito importante.

Agradecimento: Palácio do Visconde — The Coffee Experience

“Labirinto – Conversas sobre Saúde Mental” é uma série de entrevistas do Observador que faz parte do Mental, a secção do Observador dedicada a temas da Saúde Mental. Em cada conversa, os convidados — figuras públicas de várias áreas, da política ao entretenimento — fazem um relato pessoal e detalhado da forma como lidaram ou lidam ainda com problemas de saúde mental — os sintomas, os tratamentos, as recaídas e a recuperação — num esforço para combater o estigma associado a este tipo de doenças. Pode ler aqui as entrevistas anteriores: