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A urgência num palco: 10 espetáculos de teatro e dança que marcaram 2025

Histórias de chegada, exclusão e luta emergem em quase todas as peças do ano. O que fica de 2025? Um périplo pelos grandes momentos do teatro e da dança que passaram pelos palcos nacionais.

Joana Moreira
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Ana Moreira
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Se, dentro de alguns anos, revisitarmos a lista que se segue, talvez reconheçamos um retrato nítido do tempo que agora atravessamos. Os espetáculos que abaixo destacamos insurgiram-se contra a indiferença e voltaram o olhar para o tema que, em 2025, tudo atravessa: a imigração e o ódio que sobre ela se abate, espelho das fraturas profundas que rasgam a Europa — em Portugal, com direito a cartazes à beira da estrada.

Nos últimos 12 meses, passaram pelos palcos nacionais criadores que sentiram a urgência de pensar o mundo confrontando-nos com as violências quotidianas, pulsões autoritárias e formas de polarização modernas. Haverá sempre espaço para a beleza e abstração (ou, pelo menos, é desejável que assim seja), mas, em 2025, o teatro e a dança cumpriram um desígnio maior: testemunhar a dureza da realidade.

Um Inimigo do Povo

De Marco Martins

A fotografia de imigrantes encostados à parede na Rua do Benformoso, em Lisboa, a 19 de dezembro de 2024, durante uma rusga da PSP, foi o gatilho que levou o encenador Marco Martins a avançar com uma adaptação de Um Inimigo do Povo, de Henrik Ibsen. Histórias de violência quotidiana sobre os imigrantes (física, verbal, psicológica, nas ruas, nos transportes públicos, nas repartições públicas) tomam o palco pela voz de imigrantes do Bangladesh e do Nepal que nada mais fazem do que contar a própria vida. Só que parecer fácil dá trabalho: no caso, um trabalho de pesquisa exemplar e um casting perfeito de Marco Martins e respetiva equipa. A atualidade impele-nos a dizer que talvez estejamos perante a grande peça deste tempo: uma que enfrenta a retórica das generalizações, do populismo, do conforto das narrativas fáceis. E a perguntar: quem tem medo das minorias? Talvez seja preciso, como se escuta a dada altura, ter “cuidado com a maioria”.

Suplicantes

De Sara Barros Leitão

Sara Barros Leitão reescreve a tragédia de Ésquilo para colocar um espelho diante da Europa contemporânea, onde os imigrantes continuam a servir de “bode expiatório” para todos os males. Soa familiar? A encenadora, dramaturga e atriz põe em diálogo um deputado social-democrata com um estafeta migrante, mediados por uma intérprete. Suplicantes lança uma reflexão urgente sobre a crise do projeto europeu e da social-democracia, sobre os pactos de acolhimento, a integração falhada e a exploração de quem chega à Europa em busca de uma vida melhor. E lembra-nos, com a sabedoria antiga da tragédia, que as migrações sempre existiram — e que o preconceito contra estrangeiros, afinal, também vem de muito longe.

No Yogurt for the Dead

De Tiago Rodrigues

Profundamente comovente a peça que Tiago Rodrigues criou a partir dos últimos dias de vida do pai, o jornalista Rogério Rodrigues. O dramaturgo, encenador e diretor do Festival de Avignon transformou um caderno de rabiscos ilegíveis em matéria de palco, onde a memória ganha uma dimensão fantástica fruto da liberdade de fugir à ditadura do rigor jornalístico. Entre factos e ficção, entre a vida e a morte, revela-se um grande espetáculo com soberbas canções. Fica gravado a interpretação de Manuela Azevedo de Teresa Torga, de José Afonso, numa versão de Hélder Gonçalves.

NÔT

de Marlene Monteiro Freitas

Chegou a Portugal com a força de um assombro já coroado, mas também contestado em AvignonNÔT confirma Marlene Monteiro Freitas como uma artista de vanguarda total: um espetáculo sublime, inspirado em As Mil e Uma Noites, onde corpos se tornam fábulas de luta, sonhos e pesadelos, embalados por Nick Cave, Stravinsky e ritmos diversos. Na peça da coreógrafa cabo-verdiana as palavras são escassas e deixam brilhar um elenco magistral que trabalha o corpo como língua e linguagem para contar os contos dentro do conto, atravessando momentos de humor escatológico e uma dureza que não poupa ninguém. Uma experiência total, excessiva, que se cola à pele do espectador e o confronta com aquilo que projeta na ficção — e na noite que o espetáculo convoca. A interpretação de Mariana Tembe é simplesmente de outro mundo.

Uma Casa de Bonecas

De Henrik Ibsen, encenação de Yngvild Aspeli

É uma viagem pelo fantástico esta abordagem da companhia Plexus Polaire para o clássico de Ibsen Uma Casa de Bonecas, que abriu a edição deste ano do FIMFA — Festival Internacional de Marionetas e Formas Animadas. A norueguesa Yngvid Aspeli é a encenadora, manuseadora de marionetas e atriz que partilha o palco com marionetas hiper-realistas (pássaros e corpos híbridos misturam-se), que, ao longo do tempo, crescem enquanto símbolos da opressão doméstica. É um espetáculo que nos envolve, encanta e perturba.

History of Violence

Texto de Édouard Louis, encenação de Thomas Ostermeier

Um dos grandes momentos da edição deste ano do Festival de Almada: a História da Violência, do escritor francês Édouard Louis, na encenação que o alemão Thomas Ostermeier assinou para a histórica Schaubühne de Berlim. O encontro sexual que culmina em roubo e violação é exposto em cena com a mesma precisão crua e fragmentada que marca a escrita de Louis, sem floreados. Um espetáculo violento e profundamente político, que nos obriga a refletir sobre quem controla a narrativa da violência.

Quando Eu Morrer, Vou Fazer Filmes no Inferno!

De Mário Coelho

Se em 2024 apontámos Mário Coelho como um nome a seguir, 2025 foi um ano de afirmação, com dois novos espetáculos. Quando eu morrer, vou fazer filmes no Inferno! é um texto afinado e provocador sobre uma tragédia hereditária, num plano, e as muitas tragédias da indústria audiovisual nacional, no outro, e bem mereceu ser levado à cena num grande palco como o da Culturgest, em Lisboa. De assinalar ainda o elenco amplo e notável, um autêntico bingo de promessas da representação portuguesa.

Burn Burn Burn

De Catarina Rôlo Salgueiro e Isabel Costa

Num tempo em que as discussões se inflamam com facilidade e o diálogo parece cada vez mais difícil, Burn Burn Burn surge como uma espécie de sopro de oxigénio. A partir do clássico Fahrenheit 451, Isabel Costa e Catarina Rôlo Salgueiro, do coletivo Os Possessos, transportam-nos para um mundo em que os bombeiros ateiam fogo a livros. Só que a tentativa de apagar a História acende sempre novas formas de resistência. Um espetáculo pertinente, que através de uma ficção distópica nos diz muito sobre a realidade atual. E que nos faz pensar: que papel tem literatura, a arte, o teatro, perante a polarização que incendeia o mundo em que vivemos?

Adilson

De Dino D’Santiago

É frustrante, e por vezes até embaraçoso, assistir ao périplo burocrático imposto a um homem afrodescendente, nascido em Angola, filho de pais cabo-verdianos, que vive há mais de 40 anos em Portugal, na luta pela obtenção da cidadania portuguesa. Que país é este em que a história levada a palco é tão real como a de Adilson, o protagonista que inspira a primeira incursão de Dino D’Santiago no território da ópera? É uma peça-denúncia que aponta o dedo ao Estado e que, ainda assim, encontra a poesia possível na espera infinita, com momentos luminosos que revelam grandes, grandes cantores.

Extra Moenia

De Emma Dante

Mais performativo do que narrativo, o espetáculo da italiana Emma Dante que passou pelo Festival de Almada é um retrato feroz da Europa contemporânea e da sua gente, marcada pela guerra, pela migração forçada, refém da crise ecológica e de habitação, sujeita à violência (em particular sobre as mulheres) e vítima de uma repressão crescente imposta por governos autoritários. Com 14 intérpretes sempre em movimento, as histórias desfilam diante de nós uma a uma, e reconhecemo-las de imediato: são as que ouvimos nas notícias, as que atravessam as ruas das nossas cidades, as que já conhecemos demasiado bem. Pois bem, o teatro coloca-as no palco. E agora?