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(A) :: "Às vezes, o problema não é doer muito. É doer sempre"

"Às vezes, o problema não é doer muito. É doer sempre"

Médico há cinquenta anos, a trabalhar em dor quase há quarenta, o anestesista José Manuel Caseiro acredita que os doentes têm uma resiliência notável — e que o têm ensinado a tê-la também.

Sofia Teixeira
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Francisco Romão Pereira
photography

Este artigo faz parte da série “O que eu aprendi com a dor dos outros”, um conjunto de reportagens escritas por um jornalista a partir de entrevistas com profissionais de saúde que acompanham doentes com dor crónica.

O que é que eu aprendi com a dor dos outros? Essa expressão — “a dor dos outros” — faz-me pensar numa frase de um cirurgião vascular francês do século XX, René Leriche: “A única dor que toleramos é a dor dos outros.” E é verdade.

Aqui, na Unidade da Dor do Hospital Lusíadas de Lisboa, que coordenei durante 14 anos, quando os doentes se sentam à minha frente pela primeira vez, mais de metade diz: “Doutor, eu sou muito resistente à dor. Portanto, para me estar a queixar…” Isto mostra muito sobre a forma como se vê a dor e a pessoa com dor, e também sobre as experiências anteriores que tiveram. O doente sente sempre esta necessidade de nos convencer de que a sua dor é mesmo séria.

A experiência da dor tem inspirado artistas e poetas, mas também devia inspirar clínicos e decisores, porque a dor fica sempre para trás. É quase como se só tivéssemos o direito de falar sobre ela quando não a sentimos. Mas as decisões seriam completamente diferentes se nos expressássemos sobre a dor quando a estamos a viver.

Eu interessei-me pela dor desde cedo. Tenho 73 anos, acabei a licenciatura em Medicina em 1976 e, tanto como aluno como depois de licenciado, sentia que a dor era desvalorizada. Mesmo nos pequenos gestos técnicos: uma pessoa que se queixava ao tirar sangue era logo apelidada de “piegas”.

Sentia que a minha vocação era a medicina interna — que considero ser mãe de todas as especialidades. Mas antes de fazer o exame de acesso à especialidade, fiquei indeciso entre medicina interna e medicina geral. Estava no Hospital Curry Cabral e partilhei essa dúvida com o diretor do serviço onde trabalhava, o Dr. Almeida Dias – uma referência na minha vida. Foi ele que me perguntou: “Já pensaste na anestesiologia?” Nunca tinha pensado.

Faltavam quatro meses para o exame e passei-os no piso de cima, da cirurgia, no Serviço de Anestesiologia dirigido pelo Dr. Santos Marques — outra referência para mim. Ele era um entusiasta da dor, sobretudo da dor aguda pós-operatória. Tinha-se especializado nos Estados Unidos e dominava técnicas que hoje são rotina, como a epidural, mas que na altura não eram prática corrente.

Se antes eu achava que a dor era desvalorizada, aqueles quatro meses no serviço de cirurgia cimentaram ainda mais essa ideia. Era desvalorizadíssima. Aquilo era penoso de ver. Os médicos eram excelentes — era um ótimo serviço de cirurgia —, mas o pós-operatório era sempre conduzido pela premissa de que “a dor não mata, o importante é que o doente esteja bem operado”. Aquilo fazia-me imensa impressão. Quatro meses depois, fiz o exame de acesso à especialidade e, para surpresa de muitos colegas, escolhi anestesiologia.

“Não é possível tratar dor crónica em part-time”

A dor nunca é aceitável. O alívio do sofrimento que causa é um dever ético do médico e um direito do doente. Qualquer dor: a dor de quem é operado, a dor de quem está em trabalho de parto ou a dor de quem vive com dor crónica.

Hoje tenho a certeza de que quis ser anestesista para me dedicar à dor. Não tenho a menor dúvida. Quando terminei a especialidade, concorri ao lugar de anestesista no Instituto Português de Oncologia Francisco Gentil de Lisboa (IPO Lisboa), pela mesma razão: o IPO foi um dos pioneiros nesta área – já tinha uma consulta de dor desde 1978.

Estive no IPO durante 27 anos. Adorei. É uma experiência que não se esquece. O IPO não sai de dentro de nós. Comecei a trabalhar nesta área em 1988 e em 2001 passei a diretor do Serviço de Anestesiologia. Foi quando tomei a decisão de me dedicar em exclusivo à dor – ou seja, deixar de fazer anestesia generalista e focar-me apenas neste campo. Lembro-me de que, quando tomei essa decisão, houve alguma estranheza à minha volta, principalmente entre os cirurgiões com quem trabalhava. O tempo mostrou-me que foi a escolha certa.

Mais tarde, tomei outra decisão: dedicar-me apenas à dor crónica. Defendo que esta é uma escolha que qualquer profissional de saúde que queira trabalhar nesta área deve fazer. Tem de haver compromisso e exclusividade. Falando da anestesiologia, que é a minha área de formação, entendo que não é possível tratar a dor crónica em part-time, uma ou duas vezes por semana, ou nas horas vagas. Um anestesista, quando se especializa, é especialista em dor aguda — não em dor crónica. E exercer medicina da dor exige competências, experiência e uma disponibilidade que não são compatíveis com a anestesia clínica. É um trabalho a tempo inteiro.

"Eu não faço consultas de dez minutos. A primeira dura 45 minutos e, em alguns casos, não é suficiente. Na semana passada recebi uma doente que trazia um processo tão grande que precisei de duas horas para o esmiuçar. As consultas seguintes, geralmente, duram meia hora. É preciso esta disponibilidade para avaliar as questões clínicas e para conversar com o doente e estabelecer uma relação."

Hoje, há muitos médicos mais novos que têm interesse em dor crónica, têm mais informação disponível e até gostariam de se dedicar a esta área. Mas fazê-lo em exclusivo continua a ser uma decisão difícil. E algumas das dificuldades que existem hoje, infelizmente, são as mesmas de há quarenta anos. Uma delas é perigosíssima: os anestesistas continuam a ser encarados como peças de mobiliário do bloco operatório. Pelas exigências cirúrgicas e pelas listas de espera, os hospitais querem os anestesistas sempre fechados nas salas de operações para, como se diz às vezes, “pôr os doentes a dormir” — para sermos os “adormecedores”.

É óbvio que são precisos anestesistas nos blocos operatórios, mas há uma multiplicidade de funções fora do contexto cirúrgico que também são necessárias. No entanto, as listas de espera cirúrgicas têm condicionado imenso essa abertura. Os profissionais são muitas vezes travados quando querem trabalhar ou desenvolver competências fora da “jurisdição” do bloco operatório. É isso que impede — ou dificulta — a criação de unidades de dor. É verdade que se “partiu muita pedra” nas últimas décadas, mas os corredores continuam a ser estreitos.

“A medicina só chama ‘crónicas’ às doenças que não cura”

Eu não faço consultas de dez minutos. A primeira consulta dura 45 minutos e, em alguns casos, não é suficiente. Na semana passada, por exemplo, recebi uma doente que trazia um processo tão grande que precisei de duas horas para o esmiuçar. As consultas seguintes, geralmente, duram meia hora. É preciso esta disponibilidade, seja para avaliar as questões clínicas, seja para conversar com o doente e estabelecer uma relação.

A empatia que tento criar com o doente é “interesseira”. Interesseira no sentido em que me faz falta que o doente goste de mim, confie em mim e se sinta convencido pelas minhas palavras. Sobretudo para que tome os medicamentos exatamente como lhe prescrevo. O incumprimento da medicação por parte dos doentes é um dos maiores problemas em dor crónica.

A medicina só chama “crónicas” às doenças que não cura. Portanto, estamos a lidar com algo que tratamos, mas não curamos. É isso que custa mais ao doente perceber — e essa incompreensão também tem impacto na toma da medicação.

Não se cura uma diabetes. Nem uma hipertensão. Se o doente deixa de tomar o medicamento porque a tensão arterial está bem, o que acontece? Ela volta a subir. É igual na dor crónica: se tenho um doente equilibrado com a medicação e ele decide parar — muitas vezes porque alguém lhe diz: “Está melhor da dor? Então pare de tomar essas porcarias” — o equilíbrio desaparece e a dor volta. É isso que os doentes precisam de entender: se a doença é crónica, a terapêutica também tem de ser. Mas ainda há muito medo e muitos mitos em relação aos medicamentos para tratar a dor, nomeadamente os opioides, que são medicamentos geralmente muito seguros.

Por isso, além da avaliação clínica e da relação empática, é importante gastar tempo a explicar ao doente porque é que ele tem de fazer a medicação. Posso precisar de dez ou quinze minutos para isso, mas não é tempo perdido, é tempo ganho. Por outro lado, não se faz medicina da dor a dizer no fim da primeira consulta: “Venha cá se precisar” ou “Olhe, agora marque consulta para daqui a seis meses”. Seis meses? E se o meu raciocínio estiver errado? Eu não posso iniciar uma terapêutica e deixar o doente entregue a ele próprio durante seis meses. O doente sai sempre com a próxima consulta marcada por mim, muitas vezes para o mês seguinte.

Da mesma forma, temos um telemóvel da unidade. Se o doente tiver dúvidas ou efeitos secundários, tem sempre para onde ligar. Muitas vezes são questões que a equipa de enfermagem, que atende as chamadas e é competentíssima, resolve, caso contrário falam comigo e eu devolvo a chamada para orientar.

Em dor crónica o caminho é difícil e nós temos de estar presentes para ajudar o doente a ultrapassar as dificuldades. Tem de haver um modelo assistencial contínuo. É assim que se trata a dor — é por isso que o compromisso tem de ser a tempo inteiro e a responsabilidade tem de ser máxima. E tenho muita dificuldade em falar sobre mim, mas creio que uma das minhas características mais marcantes é ser extremamente responsável.

“O que desmorona emocionalmente o doente não é a intensidade da dor, é a persistência”

A dor mais desafiante é a neuropática, porque é uma dor da transmissão nervosa. Uma boa forma de a explicar é a seguinte: as estradas servem para ligar as povoações. E se os bombeiros forem chamados a uma povoação para apagar um incêndio, enfiam-se na autoestrada e chegam lá num instante. Mas e quando é a própria autoestrada que está a arder? Eles não conseguem passar. Ora, na dor neuropática é isso mesmo que acontece: é a autoestrada que está a arder.

Por isso, quando damos medicamentos, o objetivo não é só que cheguem a um local, mas que atuem no trajeto até lá. Para isso, usamos truques: medicamentos que não são verdadeiramente analgésicos, mas têm essa capacidade, têm evidência clínica de ação analgésica, por exemplo, os anticonvulsivantes — medicamentos geralmente usados para a epilepsia.

Nas últimas décadas, não houve uma grande revolução nas armas terapêuticas contra a dor crónica, como aconteceu noutras áreas – na oncologia, por exemplo. Ainda assim, houve avanços relevantes: não tanto pela descoberta de novos medicamentos, mas por termos aprendido a usar melhor os que já existiam — como os anticonvulsivantes, os antidepressivos, os opioides e, mais recentemente, os canabinoides, como o canabidiol (CBD) e o tetrahidrocanabinol (THC).

"Algumas dificuldades que existem hoje são as mesmas de há quarenta anos. Uma delas é perigosíssima: os anestesistas continuam a ser encarados como peças de mobiliário do bloco operatório. Os hospitais querem os anestesistas sempre fechados nas salas de operações para, como se diz às vezes, sermos os 'adormecedores' de doentes. (...) Em dor crónica o caminho é difícil e nós temos de estar presentes para ajudar o doente a ultrapassar as dificuldades. Continuamente. É assim que se trata a dor — é por isso que o compromisso tem de ser a tempo inteiro e a responsabilidade tem de ser máxima."

Uma das coisas que se tornou clara para mim, ao longo destas décadas, é que, muitas vezes, o que desmorona emocionalmente o doente não é a intensidade da dor, é a persistência. O problema não é doer muito, é doer sempre. A pessoa deita-se e a dor está lá, acorda e ela mantém-se, mexe-se e sente-a, fica parada e ela não desaparece. Este é, para mim, o maior desafio que a dor crónica nos coloca: conseguir interferir nessa dinâmica, de maneira a oferecer ao doente períodos de sossego, momentos em que se abstraia. É uma alegria imensa quando percebemos que estamos a ajudá-los.

Combato ferozmente — e não aceito — que se diga a alguém: “Isso é da sua cabeça”. Há pessoas que aparecem aqui a chorar, contando que houve profissionais de saúde que lhes disseram isso. É mentira. Há dores de cabeça, não há dores da cabeça. Uma coisa é reconhecer que há mecanismos psicológicos e emocionais que podem agravar o problema — sem dúvida que há. Por isso é que temos uma equipa multidisciplinar que inclui psicólogos. Outra coisa é dizer ou sugerir que o doente está a inventar uma dor que não existe. Isso é falso. Há uma frase que gosto muito, que define a dor assim: “Dor é sempre que o doente diz que dói.” É exatamente isso.

Uma das coisas que mais arrasa os doentes é perceberem que não acreditam neles. As pessoas sentem-se muito afetadas pela desconfiança dos outros, seja o cônjuge, um colega de trabalho ou o médico.

“Temos de ser humildes a tratar a dor”

Os meus doentes têm-me ensinado muitas coisas. A que eu acho mais notável é a resiliência. É uma característica que devemos ter na vida — para tudo — mas é muito claro o quando é necessária quando lidamos com  dor crónica. Confesso que, às vezes, pergunto a mim próprio: “Como é que esta pessoa me atura há tantos anos, tendo sempre dor?”

Claro que a dor não é igual, mas o doente nunca deixa de ter dor e isso pode ser muito desmoralizante. Quando alguns doentes que já trato há muito tempo aparecem a dizer: “Eu agora não estou tão bem” ou “Agora ando com mais dor”, eu proponho-lhes um exercício. Pergunto: “Mas lembra-se de como estava quando veio cá pela primeira vez?” Geralmente eles respondem: “Nem se compara. Tenho dor, mas estou muito melhor.” Fico satisfeito. Reconheço que tenho de fazer novas tentativas de melhorar, mas percebo, também que, apesar de tudo, há um ganho que o próprio doente reconhece.

Apesar disso, temos de ser muito humildes ao tratar a dor. Ter noção dos nossos limites. Eu costumo dizer que não temos muitos motivos para nos gabarmos, porque ficamos sempre aquém do que queríamos. E, nos casos em que o sucesso é tremendo, é legítima a nossa alegria interna, mas é ilegítimo que nos vangloriemos disso.

Tirando um caso. Uma vez.

Há muitos anos, na Unidade de Dor do IPO, acompanhei uma senhora que teria uns 70 anos, com uma doença oncológica grave. O marido, que era ex-administrador hospitalar, vinha sempre com ela à consulta. Não foi um caso de sucesso do ponto de vista do tratamento oncológico, porque ela acabou por morrer com a doença, mas foi um sucesso do ponto de vista do controlo da dor. Acompanhei-a até ao fim e conseguimos sempre dar-lhe uma boa qualidade de vida.

Quando a senhora morreu, o marido escreveu-me uma carta. É uma carta curta, muito sóbria. Agradece-me e diz que a experiência o deixou com um remorso. Partilha que, muitos anos antes, quando era administrador hospitalar, tinha contrariado o aparecimento de uma unidade de dor no hospital onde trabalhava, porque achava que não fazia falta nenhuma. E queria que eu soubesse que estava muito arrependido, agora que tinha compreendido a importância que essa intervenção tinha.

Aquilo, para mim, foi uma medalha, confesso. Mas conto-o também por outra razão: porque mostra que as pessoas — mesmo com muitas responsabilidades — podem tomar decisões erradas de boa-fé, apenas porque estão mal informadas. É por isso que temos de combater a desinformação.