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Viver com lúpus. Não estou inválida para sentir, pensar ou contribuir

Fui diagnosticada com lúpus aos 30 anos. Tinha sonhos, objetivos e uma carreira pela frente. Viver com uma doença autoimune é viver num corpo que se volta contra si próprio, todos os dias.

Mónica Rebelo
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Tenho esta doença há vinte anos, acompanhada por outras patologias associadas, incluindo dor crónica Doenças e sintomas por vezes invisíveis, mas que se fazem sentir. Muito. Acompanham-me todos os dias e obrigam-me a reajustar constantemente aquilo que consigo ou não fazer. Mas há uma coisa que nunca me tiraram: a vontade de continuar a ser útil. De trabalhar, contribuir, fazer parte.

Fiquei reformada por invalidez aos 35. Não por ter pedido. Não por ter deixado de ter capacidades. Mas porque, aos olhos do sistema, deixei de encaixar, deixei de ter “valor”. E dessa forma, vi-me forçada a parar. Parar o ritmo, os projetos pessoais, uma vida profissional que, apesar dos obstáculos, fazia questão de manter.

Na altura do diagnóstico, estava empregada e fui transparente com a minha entidade patronal. Falei abertamente da doença e da necessidade de, pontualmente, faltar ao trabalho para consultas. A resposta inicial foi tranquilizadora: “Quando estiver pior, trabalha menos e compensa nos dias em que estiver melhor.” Acreditei. Continuei com esforço e dedicação, mesmo quando me sentia mais doente. Tudo mudou quando precisei de baixa prolongada. Estava quase a ficar efetiva, mas não renovaram o contrato. A razão simples e cruel: “As empresas não querem pessoas doentes.”

Não sou ingénua. Compreendo que seja difícil para uma empresa lidar com alguém que precisa de se ausentar, que vive com limitações físicas, que não tem sempre a mesma energia. Mas é precisamente por isso que precisamos de políticas públicas que apoiem as empresas e as pessoas. Ferramentas reais que permitam conciliar produtividade com inclusão. Porque o problema não está na doença, está na falta de soluções.

Foi um momento devastador. Empurrada para uma reforma a meio da minha terceira década, quando estaria a crescer profissionalmente, a consolidar a carreira, a viver em plenitude. Em vez disso, fiquei isolada a lutar diariamente contra a doença, contra a dor constante e contra a sensação de estar a ser posta de parte e esquecida por um sistema que devia existir para me proteger. Para além da dor física e da incerteza da doença, senti também o peso do estigma, do preconceito e da exclusão. Percebi que não basta querer trabalhar. Não basta ser competente. Não basta ter vontade. Quando se vive com doença crónica, há barreiras invisíveis que nos impedem de continuar a ser parte ativa.

A reforma antecipada pode ser, para alguns, uma “saída”. Para mim, foi um murro no estômago. Não só pelo impacto emocional de me afastar do mundo do trabalho, mas também pelo impacto financeiro. E não é só a pessoa que perde. O Estado também. Reformar precocemente pessoas em idade ativa é assumir um custo fixo e perder um contribuinte. É um desperdício, humano e económico. Não seria mais benéfico adaptar os modelos laborais para a integração de quem pode trabalhar, ainda que de forma diferente?

Mas a minha história não acaba aqui. Não aceitei o silêncio nem a invisibilidade. Recusei-me a ser apenas um número nas estatísticas da Segurança Social. Foi com um sentimento de impotência, mas muita vontade de mudar as coisas, que me tornei voluntária na Associação de Doentes com Lúpus e depois a representá-la na plataforma SIP PT – Societal Impact of Pain Portugal. Desta forma, posso contribuir para a sociedade e a comunidade da qual faço parte. Não me enchem os bolsos. Preenchem, talvez, parte do vazio deixado pela carreira imaginada. Preenchem-me por poder participar, interagir, sentir-me válida!

A SIP-PT trabalha precisamente para aquilo que defendo: dar visibilidade à dor e alcançar melhores políticas de saúde. Os seus objetivos centram-se na consciencialização sobre a dor crónica e a realidade dos cidadãos que com ela vivem, estimulando o diálogo entre doentes, profissionais de saúde e decisores políticos. A plataforma acredita que é possível transformar o impacto da dor na sociedade através de uma abordagem mais humana, participativa e baseada em evidência. É um trabalho de cidadania e empatia, do qual me orgulho de fazer parte, pois acredito que só com voz ativa conseguimos trazer estas questões para o debate público.

Viver com dor crónica não é apenas aguentar fisicamente. É aguentar a invisibilidade, o julgamento, o afastamento. Muitos acham que exageramos, que devíamos “ser mais fortes”, que devíamos “superar”. Mas como se supera uma dor que nunca passa? Como se supera uma condição crónica que não escolhemos e que brinca connosco às escondidas?

O problema não é a doença. O problema é sermos tratados como se isso nos anulasse.

Este testemunho não é apenas meu. É o espelho de muitos que vivem com dor, com diagnósticos complexos, com vidas partidas ao meio — mas que querem fazer parte do todo. Mesmo com dor, continuamos aqui. A pensar, a sentir, a sonhar e a lutar por um lugar digno nesta sociedade.

Mónica Rebelo é voluntária na Associação de Doentes com Lúpus. Membro do Comité Executivo da SIP-PT – Societal Impact Of Pain Portugal, é uma das cronistas convidadas da secção Dor, dedicada exclusivamente a temas relacionados com a dor, respetivo acompanhamento clínico e impacto na sociedade.