O processo foi duro, confuso, prolongado até ao limite e marcado por alterações e negociações constantes. No final, o resultado foi uma lei da nacionalidade que corresponde quase inteiramente aos desejos do PSD, com cedências pontuais (e uma mais substantiva) ao Chega e outras ao PS. A versão final acabou aprovada por uma ampla maioria à direita — quase 70% dos deputados — que, para Luís Montenegro, provou que o Governo está a trabalhar para “unir” o país; e permitiu ao Chega reclamar uma “grande vitória”, mesmo que o PSD admita uma cedência final tímida para assegurar o voto favorável do partido de André Ventura.
O ponto principal em que a lei muda, e em que os principais partidos chegaram a aproximar-se — até o PS, apesar de ter acabado por votar contra a versão final do diploma — é o tempo de residência legal exigido aos requerentes da nacionalidade portuguesa. Até agora, o prazo era de cinco anos; passa a ser de sete, para cidadãos vindos da CPLP ou da UE (este último aspeto era defendido pelo PS e por múltiplos constitucionalistas), ou para dez, nos restantes casos. O PS alertou, no entanto, que cidadãos de países mais próximos ou com uma comunidade mais significativa em Portugal podem ver-se prejudicados — leia-se Reino Unido e Ucrânia, que não fazem parte da UE — mas foi sendo criticado pelo PSD por querer ir abrindo exceções em vários pontos da lei.
Dentro das exigências colocadas a quem quer tornar-se português está também a prova de que conhece “suficientemente” a língua, a cultura, a História e os símbolos nacionais, como poderão ser o hino ou a bandeira; para a esquerda, são conceitos demasiado indeterminados, sobretudo o da cultura portuguesa, mas a direita está de acordo em exigir estes conhecimentos, numa regulamentação que será feita de forma mais específica, posteriormente, pelo Governo.
Outra das exigências colocadas resultou na cedência a uma das linhas vermelhas identificadas pelo Chega, e provavelmente a mais significativa delas: o PSD aceitou que quem quiser português tenha de provar que no momento em que faz esse pedido tem “meios de subsistência”, ou seja, que não depende de subsídios ou apoios sociais para se sustentar. Foi uma cedência negociada numa das últimas madrugadas de conversações e que ajudou a assegurar o apoio do Chega a esta revisão.
No artigo 6º, que define as condições para se obter a nacionalidade portuguesa, cabe também a exigência de que se conheça “suficientemente” os direitos e deveres fundamentais “inerentes à nacionalidade portuguesa e a organização política do Estado português”; uma adesão “solene” aos princípios fundamentais do Estado de Direito Democrático; e que não se tenha sido condenado a uma pena de prisão igual ou superior a dois anos, por crime punível segundo a lei portuguesa. Além disso, o requerente não pode constituir perigo ou ameaça para a segurança ou defesa nacional.
Outro aspeto em que vingou a versão dos partidos da direita foi a forma como será concedida a nacionalidade a crianças nascidas em Portugal e que sejam filhos de estrangeiros: se atualmente bastava que, na altura do nascimento, um dos pais vivesse em Portugal há um ano (o PS propunha agora dois), passará a ser preciso que resida no país há pelo menos cinco anos e de forma legal; e a criança deve frequentar o ensino obrigatório caso tenha idade para isso. Além disso, ponderando “o superior interesse da criança”, o Governo pode conceder a nacionalidade “aos menores acolhidos em instituição pública, cooperativa, social ou privada com acordo de cooperação com o Estado, na sequência de medida de promoção e proteção definitiva”.
Outra possibilidade para se obter a nacionalidade portuguesa abre-se para indivíduos que sejam descendentes em 3º grau na linha reta (ou seja, bisnetos) de portugueses originários e que vivam em Portugal, de forma legal, há pelo menos cinco anos.
Quanto à oposição que se pode fazer à obtenção de nacionalidade por um indivíduo, PSD, Chega e IL conseguiram aprovar que isto se pode argumentar provando “a inexistência de laços de efetiva ligação à comunidade nacional” ou a “a demonstração de comportamentos que, de forma concludente e ostensiva, rejeitem a adesão à comunidade nacional, suas instituições representativas e símbolos nacionais” — uma norma que mereceu o protesto do PS, tendo o deputado Pedro Delgado Alves chegado a ironizar com o exemplo da interpretação que os Anjos fizeram do hino nacional, e que poderia “valer processos” judiciais (presumivelmente, se se considerasse que foi uma ofensa ao hino).
No artigo 12-B chega outro dos pontos mais discutidos desta lei, e o último ponto em que o Chega conseguiu reclamar vitória, ainda que o PSD a desvalorize. Os sociais democratas mantiveram até ao fim a norma que prevê que a nacionalidade tida durante dez anos é consolidada, ou seja, a partir daí não se pode retirar, “ainda que o ato que esteve na origem da sua atribuição ou aquisição seja passível de declaração administrativa ou judicial de nulidade”. Mas o Chega quis, e conseguiu, incluir uma alínea que prevê que estejam “excetuados” os casos em que a nacionalidade foi obtida de forma “manifestamente fraudulenta” — uma fórmula que, argumenta-se no PSD, terá pouca aplicação real, uma vez que os casos de fraude já são considerados automaticamente nulos e não chegam a produzir efeitos.
O que não ficou incluído, apesar da insistência do PS, foi nenhum tipo de regime transitório — ou seja, a partir do momento em que a lei entrar em vigor o que vale são as novas regras. Os socialistas queriam, tendo em conta as “expectativas” criadas junto das pessoas que já vivem em Portugal e estão perto de cumprir os requisitos atuais, que existisse um período — inicialmente durante todo o próximo ano, depois só até março — em que ainda pudessem fazer um pedido de nacionalidade. Sem sucesso.
Com esta lei, acabam também regimes de exceção como o que estava aberto, em jeito de reparação histórica, aos descendentes dos judeus sefarditas expulsos de Portugal no século XV. O PS queria manter benesses para este grupo — incluindo-o, como os cidadãos da CPLP e os da UE, no grupo que tem de residir sete anos, e não dez, em Portugal para pedir a nacionalidade — mas o PSD acusou o partido de querer continuar a abrir exceções, argumentando que a reparação já foi cumprida e que o regime tinha de ser finito.
Sendo certo o chumbo da proposta do Chega para que, sendo cometidos certos crimes por portugueses naturalizados, a nacionalidade fosse automaticamente retirada, o PSD conseguiu fazer aprovar a sua própria versão — a perda da nacionalidade não é automática e tem de ser decidida por um juiz –, com uma nuance: a proposta foi separado do resto da lei e incluída numa alteração ao Código Penal, uma vez que no PSD se acredita que a norma pode suscitar problemas no Tribunal Constitucional e que é preferível não contaminar o resto da lei com essas dúvidas.
Apesar de ter assegurado repetidamente que esta seria uma linha vermelha “incontornável”, o Chega acabou mesmo por ceder e votar a favor da versão do PSD; já o PS só alinharia se a perda de nacionalidade ficasse prevista apenas para casos de crimes de terrorismo ou contra o Estado. Na versão que ficou, ficam incluídos os crimes de quatro anos de pena de prisão efetiva (uma cedência do PSD, que começou por propor cinco anos), contra a vida, contra a integridade física, contra a liberdade pessoal, contra a liberdade e autodeterminação sexual, contra a vida em sociedade, por associação criminosa, contra o Estado, de auxílio à imigração ilegal, infrações e atividades terroristas, crimes de tráfico de armas e de tráfico de estupefacientes.
“Portugal fica mais Portugal”, celebrou Governo. Esquerda criticou “enxovalhamento” da lei
Durante a discussão final no Parlamento, esta terça-feira, o ministro António Leitão Amaro considerou que com esta lei “Portugal fica mais Portugal” e que se toma assim uma atitude “perante a maior transformação demográfica de que há memória”, corrigindo os “facilitismos” dos últimos anos. Por isso, agradeceu à direita por ajudar “construtivamente a aprovar a lei” — e ao PS só pela “parte” do processo em que se envolveu, acusando o partido de ter uma “fixação em preservar o antigo regime”.
“Não nos fechamos como país, nem nos radicalizamos. Com esta lei continuamos uma comunidade aberta, mas com exigência. Esta não é uma lei de exclusão dos outros, é uma lei de exigência com o que é preciso para ser um de nós”, argumentou. No PSD, o principal negociador da lei na especialidade, António Rodrigues, destacou que “o país mudou” e que foi preciso responder a essa mudança — e também acusou o PS de não querer aceitá-la e de querer inserir “uma exceção em cada discussão”. O que ficou construído nesta legislação basilar, rematou, é firme e sólido, de pedra e não de “zinco ou amianto”.
Pelo Chega, Cristina Rodrigues declarou que este foi “um grande dia para os portugueses que têm sangue português nas veias”, admitindo que esta foi a “lei possível” e acusando a esquerda de ter reduzido a nacionalidade a “um papel”. A IL quis destacar o quase-consenso a que se chegou nos prazos de residência exigidos, embora notando as suas reservas sobre a “discriminação” que se faz em função da origem dos requerentes e dos problemas constitucionais que isto pode acarretar. E o CDS mostrou-se satisfeito por a nacionalidade portuguesa deixar de ser “fácil” de obter.
Pelo PS, José Luís Carneiro frisou que o partido teria estado disponível para “ampliar alguns casos e reforçar vínculos à cidadania do país”. “Mas em momento algum estaríamos disponíveis para permitir que falhas do Estado se pudessem abater sob direitos fundamentais”, frisou — o PS acreditava que a lei deveria assegurar que o tempo de residência contava por inteiro e não apenas a partir do momento em que o Estado atribui a autorização, uma vez que pode haver atrasos de anos nesse processo, mas o PSD recusou legislar a partir da assunção de que o Estado vai falhar.
Mais à esquerda, Paulo Muacho, do Livre, notou que não houve “vergonha de criar uma lei que vendia a nacionalidade por 500 mil euros”, em referência aos vistos Gold; Paula Santos, do PCP, considerou que a direita “maltratou” com este processo “conturbado” a lei e acabou por piorá-la; o PAN criticou um processo “tudo menos digno” e que responde a uma “onda populista”; e o Bloco de Esquerda acusou o PSD e o Chega de “enxovalharem” uma das leis mais importantes do país por uma questão de disputa de votos.
[Chegou o histórico debate entre Soares e Freitas. E o socialista já conseguiu o voto dos comunistas sem “olhar para o retrato” dele. A “Eleição Mais Louca de Sempre” é o novo Podcast Plus do Observador sobre as Presidenciais de 1986. Uma série narrada pelo ator Gonçalo Waddington, com banda sonora original de Samuel Úria. Pode ouvir aqui, no Observador, e também na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube Music. E pode ouvir o primeiro episódio aqui, o segundo aqui, o terceiro aqui e o quarto aqui]