Juan Carlos saiu de Espanha em 2020. O antigo monarca abdicou do trono há pouco mais de 11 anos e, desde que abandonou os holofotes da realeza espanhola, o seu nome tem caído no esquecimento. O “rei emérito”, para além de ter perdido contacto com o povo que governou durante cerca de quatro décadas, também se afastou da mulher, do filho e dos netos. As revelações surgem no seu livro “Reconciliación”, que será publicado este mês em França, e no final do ano em Espanha.
O seu objetivo era ter o livro nas prateleiras mais cedo, revela ao Le Figaro. Contudo, explica que o seu filho, o atual monarca Filipe VI, tinha “medo do seu lado sem filtros” e, por isso, convenceu-o a adiar a publicação. O adiamento de um ano foi também justificado para não coincidir com o quinquagésimo aniversário da morte de Francisco Franco, no dia 20 de novembro. É por este motivo que o livro será publicado primeiro em território francês e não espanhol.
O contacto entre pai e filho não é frequente. Há já mais de cinco anos que Juan Carlos saiu de Madrid para uma pequena ilha nos Emirados Árabes Unidos. Ainda assim, mantém que se mudou para este local recôndito a mais de meia hora de distância de Abu Dhabi para “ajudar o filho”. “Procurei um lugar onde os jornalistas do meu país não me conseguissem encontrar facilmente”, admite aos jornalistas franceses que se deslocaram até Nurai para ouvir as declarações do antigo rei em primeira mão. “Da última vez que um jornalista espanhol veio até cá, as autoridades locais meteram-no na prisão! Eu tive de intervir para o tirar de lá”, conta Juan Carlos.
Admite, assim, que este livro reabrirá as portas para os episódios controversos que dominaram o seu reinado durante o século XX. Tendo sido nomeado pelo antigo ditador, confessa que algumas das histórias que ficam agora registadas eternamente podem suscitar críticas vindo dos leitores antimonárquicos. Para Juan Carlos, esta relação representa o princípio pelo qual tentou reger a coroa espanhola. “Tens de falar e ouvir com aqueles que discordem de ti”, relembra aquilo que lhe terá dito o pai, o homem inicialmente apontado por Franco para o suceder.
Juan Carlos recorda a relação “quase filial” com Francisco Franco, entrando minuciosamente em detalhe sobre a transição do regime autoritário franquista para a monarquia. A sua intenção era afastar este novo regime recuperado para longe da onde ditatorial que governou o país durante décadas. “Tinha uma bússola, mas não tinha um plano”, refere. Para o “rei emérito”, o principal era manter o diálogo com todos no espetro político. “O meu caráter permite-me ver as pessoas de um ponto de vista humano, não apenas político. Para o meu país, foi útil ser sempre um canal de comunicação e intercâmbio”, continua Juan Carlos, relatando que esta sua costela diplomática era elogiada por outros líderes mundiais. “Fidel Castro costumava dizer à imprensa espanhola: Vocês têm o melhor rei do mundo!”, descreve o ex-monarca.
Neste sentido, Juan Carlos conta também o primeiro contacto que teve com Santiago Carrillo, o secretário-geral do Partido Comunista Espanhol, que foi exilado durante o regime de Franco. “Conheci Ceausescu durante as comemorações do 2500.º aniversário da fundação do Império Persa, em 1971. Tivemos uma conversa que durou quase três horas, porque eu queria compreender o que se passava do outro lado do Muro [de Berlim]. Confidenciou-me que Carrillo estava a passar as férias de verão na Roménia. Lembrei-me desse pormenor e pensei que Ceausescu poderia ajudar-me a transmitir uma mensagem ao líder comunista”, revela.
Assim, estabelecida a ponte através do então ditador romeno, conseguiu passar a mensagem ao líder da oposição comunista espanhola. “Não provoque uma guerra civil após a morte de Franco, dê-me tempo para legalizar o partido”, relata Juan Carlos, dizendo que a resposta de Carrillo foi positiva. O partido acabou por ser legalizado pouco tempo depois da morte do ditador espanhol e, aí, o secretário-geral comunista elogiou os esforços do monarca: “O senhor enganou-nos a todos: para fingir-se de burro durante tantos anos, é preciso ser muito inteligente!”. Na obra, Juan Carlos admite que visitou a viúva de Santiago Carrillo em 2012, no ano em este que morreu.
Para além de descrições de diálogos amigáveis e improváveis, o antecessor de Filipe VI também conta em detalhe os momentos que levaram à “traição” de um dos seus amigos mais próximos, o General Armada. “Não foi só um golpe de Estado, foram três. O golpe de [Antonio] Tejero, o de Armada e o dos políticos próximos de Franco. Alfonso Almada esteve ao meu lado durante 17 anos. Eu amava-o muito, e ele traiu-me. Conseguiu convencer os generais que estava a falar por mim”, relata.
Juan Carlos também contou sobre a sua má relação com o antigo Presidente francês Valéry Giscard d’Estaing (VGE), referindo a época em que o terrorismo reinava o País Basco, que “desestabilizava a sociedade espanhola”. VGE “não ajudou muito” com a situação do outro lado dos Pirenéus, admite o ex-monarca, mencionando que os terroristas bascos se refugiaram em solo francês. “Era muito arrogante”, descreve. “[VGE] viu quadros do meu avô e do meu tio, a usar o Velocino de Ouro, a mais alta condecoração de Espanha. Ele disse-me: Eu tenho o direito de o ter, sou um descendente do Louis XV. No fim, não ficou com ele. Preferi dar, muitos anos mais tarde, a Nicolas Sarkozy, como agradecimento pela sua ajuda decisiva na luta contra os terroristas do ETA”.
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