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(A) :: "Isto é um homicídio, puro e duro." Como o tráfico de droga que ensombra o rio Guadiana matou o cabo Manata e Silva, que "vivia para a GNR"

"Isto é um homicídio, puro e duro." Como o tráfico de droga que ensombra o rio Guadiana matou o cabo Manata e Silva, que "vivia para a GNR"

Lancha rápida investiu contra embarcação da GNR e matou cabo de 50 anos. Duas pessoas foram inquiridas pela PJ sob suspeita de homicídio qualificado e tentado.

Leonor Riso
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Tomás Silva
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Subir de barco o rio Guadiana, entre Vila Real de Santo António e Alcoutim, demora cerca de 20 minutos. E quando às 23h15 desta segunda-feira, 27, o sistema de vigilância alertou a GNR sobre uma possível lancha rápida a circular no rio que separa Espanha e Portugal, quatro militares do subdestacamento de Vila Real de Santo António responderam. Um deles era o cabo Pedro Manata e Silva, de 50 anos.

Colocado em Portimão desde 2009, o cabo Manata e Silva estava em Vila Real de Santo António para reforçar temporariamente a equipa: dois elementos estavam de férias e um terceiro estava de folga. Com o cabo, mais três militares dirigiram-se a Alcoutim, a bordo do semi rígido Palma, para investigar uma possível atividade de narcotráfico.

Guadiana acima, e apoiados por colegas da Guardia Civil espanhola que seguiam noutro barco mesmo atrás, os portugueses procuraram os suspeitos, sem sucesso. Quando já desciam o rio, foram abalroados pela lancha rápida. A força da colisão matou o cabo Manata e Silva e deixou os colegas, incluindo o que seguia ao seu lado e que já tinha passado por uma situação semelhante, feridos. O militar que conduzia o semi rígido da GNR partiu os óculos e o capacete que levava, e ficou com um rasgão por cima do sobrolho. Encaminhados para o hospital de Faro durante a madrugada, os três militares receberam alta médica horas mais tarde.

O barco da GNR foi rebocado pela Guardia Civil e o barco dos alegados narcotraficantes foi encontrado na margem portuguesa, no lugar de Laranjeiras, a arder. Já na tarde desta terça-feira, dois homens foram identificados pela GNR e entregues à Polícia Judiciária (PJ), a quem cabe agora a investigação por homicídio qualificado e homicídio na forma tentada. Os dois suspeitos são espanhóis e têm antecedentes criminais, confirma a PJ.

https://observador.pt/2025/10/28/um-militar-da-gnr-morreu-e-tres-ficaram-feridos-em-colisao-com-lancha-usada-por-suspeitos-de-trafico-de-droga-no-rio-guadiana/

Pedro Manata e Silva, um apaixonado por motas que “vivia para a Guarda”

Luís Mattos, cabo da GNR e piloto de embarcações, estava de folga esta segunda-feira quando um colega lhe telefonou perto da meia-noite a perguntar se estava tudo bem. Quando soube o que tinha acontecido aos camaradas, Luís arrancou para Alcoutim. “Já não é a primeira vez que acontece”, lamenta o também dirigente da APG/GNR. “Há oito anos, mais coisa menos coisa, os ferimentos dos GNR também foram muito graves” — e um colega que perdeu grande parte da visão de um olho nessa colisão também seguia a bordo do Palma na noite de segunda-feira.

Ao longo da viagem, Luís Mattos tentou falar com os colegas atingidos. “Estavam apáticos. Não diziam coisa com coisa”, conta ao Observador. Tiveram que ser sedados depois de ter assistido à morte do cabo Manata e Silva.

Na GNR desde 1998, o cabo de 50 anos era natural de Ermesinde mas há muito que a sua vida estava no Algarve. Trabalhava desde 2009 em Portimão, vivia em Lagos e deixa mulher e dois filhos, de 15 e 19 anos.

“Fomos dirigentes juntos na APG/GNR, colegas de trabalho, fizemos muitos quilómetros juntos, muita viagem juntos. Muitas viagens de moto juntos ao norte de Portugal e a Espanha, porque éramos ambos… somos ambos apaixonados por motos”, recorda Luís Mattos, que conhecia Pedro Manata e Silva há mais de 20 anos. “O Manata era um apaixonado pelo que fazia. Não precisava da Guarda para viver, podia reformar-se e dedicar-se ao negócio da família [na área das análises clínicas], mas não, vivia para a Guarda.”

Quando esta terça-feira à tarde se encontrou com o Observador, Luís Mattos, de 47 anos e na GNR há 25, ainda não tinha dormido por causa da colisão: esteve a ajudar os colegas no cais de Alcoutim até pelo menos às cinco da manhã. “Esta era a minha equipa”, frisa. “São bons camaradas, trabalhamos juntos há cerca de 20 anos. O Manata e Silva estava lá a fazer um reforço.”

Na zona do Guadiana, os alertas de embarcações de alta velocidade são frequentes. “Às vezes, encontram-se as lanchas, outras vezes não. Umas vezes ganhamos nós, outras vezes ganham eles. Temos alguns meios de visão noturna, parcos, lanternas também, algumas do serviço, outras nossas. Eu, por exemplo, se tenho um capacete, fui eu que o comprei.” Por isso, pede mais meios técnicos, mais segurança, e mais meios humanos. E tem uma certeza: “Isto é um assassinato, isto é um homicídio, puro e duro.”

Cinco toneladas de droga e até 50 nós de velocidade: lanchas rápidas são usadas há décadas por narcotraficantes

De Laranjeiras, onde foi encontrada a lancha rápida ardida, a Alcoutim, onde se deu a colisão, espraia-se o rio Guadiana, onde esta terça-feira acorreram mergulhadores e lanchas da GNR para auxiliar na investigação ao caso, bem como um helicóptero da Guardia Civil espanhola e equipas cinotécnicas e militares a cavalo. Também a Polícia Marítima e a Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil empenharam operacionais.

Antes da tempestade, o rio parece calmo, o que o torna apetecível para narcotraficantes. “Estamos a falar de um rio que é navegável durante muitos quilómetros. Temos recolhido informações e tem havido casos em que as lanchas rápidas sobem o rio Guadiana para fazerem a descarga da droga numa das margens. Normalmente, é mais para a margem espanhola”, conta Artur Vaz, diretor da Unidade Nacional de Combate ao Tráfico de Estupefacientes da Polícia Judiciária, ao Observador.

Também o rio Guadalquivir, navegável até Sevilha, é usado pelos narcotraficantes nas suas lanchas rápidas, “com grande potência e difíceis de apanhar”, detalha. Não é uma tendência nova: estas embarcações, a que os norte-americanos chamam “go-fast” (vai rápido, em tradução livre) têm sido usadas ao longo de “décadas” no tráfico de droga. À Península Ibérica, chegaram nos anos 90, com “uma utilização mais persistente no tráfico de haxixe de Marrocos essencialmente para Espanha, e nos últimos anos temos visto uma tendência de as lanchas irem ao Atlântico recolher cocaína” de embarcações-mãe, repara Artur Vaz. As lanchas rápidas conseguem transportar até cinco toneladas de droga, superar os 50 nós de velocidade (na ordem dos 100 km/h), e têm motores de grande potência.

O Observador sabe que na zona do Guadiana, estão identificadas as rotas de tráfico de cocaína que vem da América do Sul, e de haxixe do Norte de África, e que são comuns os alertas noturnos de embarcações rápidas. Quando isso acontece, os militares recebem uma ordem de saída para tentar a interceção, muitas vezes para apoiar a Guardia Civil. No caso de Alcoutim, os alegados narcotraficantes investiram contra as autoridades.

“O que eles normalmente fazem é fugir”, aponta Artur Vaz, mas “tem havido situações que ultrapassam isso e tem havido embates propositados”. Também acontece em Espanha, com a intenção de deixar as embarcações das autoridades inoperacionais, de forma a que os narcotraficantes escapem ilesos. Num caso relativamente recente, em fevereiro do ano passado, um embate entre uma lancha de traficantes e uma embarcação da Guardia Civil matou dois elementos desta força espanhola — o episódio, a 50 quilómetros de Cádiz, ficou conhecido como a “tragédia de Barbate” e voltou a ser recordada depois dos incidentes desta segunda-feira em Alcoutim.

Marcelo aprovou diploma contra lanchas rápidas após morte de militar

É numa tenda junto ao cais de Alcoutim que, quase de noite, se juntam as diferentes equipas envolvidas nas operações no Guadiana para o ponto de situação diário. Cerca das 19h20, junto a viaturas dos bombeiros de Portimão, Lagos, e Vila Real de Santo António e Castro Marim, são tomadas as decisões, bem perto da Igreja Matriz de São Salvador de Alcoutim. Na outra margem, espanhola, avista-se Sanlúcar de Guadiana.

Também esta noite, os dois suspeitos retidos pela GNR quando seguiam rumo a Espanha, num carro onde foram encontradas avultadas quantias monetárias, serão inquiridos pela Polícia Judiciária. Em causa, estão os crimes de homicídio qualificado e homicídio na forma tentada.

https://observador.pt/2025/10/28/lanchas-rapidas-presidente-da-republica-promulga-diploma-que-preve-penas-de-prisao-ate-quatro-anos/

Horas depois da morte do cabo Pedro Manata e Silva, Marcelo Rebelo de Sousa promulgou um diploma aprovado pelo Parlamento que prevê uma moldura penal de um a quatro anos de prisão para “quem transportar, importar ou exportar” lanchas rápidas ou nelas “entrar ou sair do território nacional” sem ter tido a autorização da Autoridade Tributária e Aduaneira, entre outras sanções.

Mas há quem defende que as mudanças não podem ficar por aqui. “É necessário equipar cada vez mais as forças de segurança”, insiste César Nogueira, da APG/GNR. Para Artur Vaz, da PJ, o combate passa pela “persistência” e articulação entre autoridades nacionais e internacionais. E Portugal tem meios suficientes? “Os meios nunca são os ideais, seja para que atividade for, mas são os meios de que dispomos. O ideal era termos uma embarcação de vigilância em cada praia, em cada rua, em cada canto, mas sabemos que isso não é possível.”

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