Luís Montenegro chegou confiante ao debate do Orçamento do Estado para 2026 ou não tivesse a aprovação garantida pela abstenção do PS. Os socialistas, por sua vez, surgiram contorcidos, entre a tal abstenção que permite a José Luís Carneiro aparecer como fiel guardião das contas públicas e a contestação por todos os lados. Já André Ventura, sem qualquer responsabilidade aos ombros, guardou a decisão final praticamente até ao fim e acabou por votar contra — tendo feito do imposto sobre os combustíveis o grande cavalo de batalha e o irritante para o Governo.
O resultado
O resultado era conhecido à partida: com um PS a tentar recompor-se das últimas eleições legislativas, e com a memória traumática do último processo orçamental – em que o PS de Pedro Nuno Santos se enredou em negociações com o PSD durante semanas a fio, acabando por abster-se – ainda viva, os socialistas preferiram arrumar o assunto rapidamente e sem dramas. Exigiram que temas extra-orçamento como leis laborais ficassem fora do documento, o PSD concordou, e a abstenção “exigente” do PS ficou prometida. Assim, e apesar das promessas de voto contra dos restantes partidos, o PSD pôde chegar ao debate solto e sem a pressão de temer que o documento acabasse chumbado.
A duração
Não é novidade para ninguém que o debate de discussão do Orçamento do Estado é longo, para não dizer longuíssimo. Arrancou na segunda-feira, às 15h00, e durou praticamente cinco horas, com o primeiro-ministro enquanto protagonista a responder às perguntas dos partidos praticamente até à hora de jantar. No segundo dia, o debate começou de manhã, ainda com tempo recuperado do dia anterior e durou até pouco depois das 17h00, com hora de almoço pelo meio. Foram quatro os ministros escolhidos para responder aos deputados durante as quatro horas e meia. A sessão de encerramento, com mais um ministro, terminou perto das 19h00. No total foram mais de 12 horas de debate.
O aplauso improvável
Os “três Salazares” entraram no debate orçamental por provocação de Luís Montenegro, que quis deixar bem claro que não tem “saudade” do país de há mais de 51 anos, logo depois de o líder do Chega ter concluído que o país apenas é uma referência em “bandalheira e desleixo”. André Ventura não deixou o espaço vazio e reiterou a frase que o vem a perseguir desde que a proferiu numa entrevista: “Se tivéssemos um, dois ou três Salazares havia menos corrupção.” A frase que se seguiu de Luís Montenegro gerou o aplauso mais improvável do debate. “A corrupção combate-se democraticamente, no estrito respeito pelos direitos e liberdades. A ditadura, ela própria, é corruptiva da liberdade e não combate a corrupção. A ditadura é ela própria a corrupção.” PSD, PS e Livre aplaudiram convictamente. Os sociais-democratas acabaram levantados, mas não passou despercebido o entendimento de socialistas e do Livre no que toca às palavras do primeiro-ministro.




O confiante
O resultado do PSD nas autárquicas, somado à certeza de que o Orçamento do Estado seria aprovado sem espinhas, levou Montenegro a aparecer claramente confiante no debate. Tão confiante que declarou desde logo que os portugueses estão “alinhados com os objetivos do país” e que até têm pedido, numa voz “firme e repetida”, que se deixe “o Governo trabalhar”. Convicto de que a marca da AD está a ganhar espaço e raízes no eleitorado, Montenegro falou à oposição pedindo que “dispa a camisola”, deu lições de estratégia política aos liberais (ver abaixo) e até ao PCP disse desconfiar de que alguns comunistas votariam neste OE de bom grado. A confiança de Montenegro parece estar no auge, num momento em que parece claro que as últimas legislativas e as últimas autárquicas validaram esse sentimento.
O humilde
A “humildade” só chegou, como o próprio Montenegro assumiu, no tópico da Saúde – disse o primeiro-ministro que vê com humildade o progresso feito nesta área e no SNS, ainda que frisando números como o aumento de consultas e de cirurgias, incluindo oncológicas, e a diminuição do tempo de espera nas urgências. Mas este foi um daqueles pontos em que o Governo acabou por ser criticado por todos os lados, da direita à esquerda, fosse pelos casos de mulheres que dão à luz fora dos hospitais, pelas dúvidas sobre quem substituirá os médicos tarefeiros ou pelas verbas dedicadas às parcerias público-privadas (num aumento de 40%). A Saúde continua a ser um calcanhar de aquiles e um dos principais motivos de crítica ao Governo, que se foi justificando com a herança que recebeu do PS nesta área. E a ministra da Saúde entrou muda e saiu calada.
O contorcionista
Viabilizar o Orçamento do Estado, sem acreditar nele. O PS tentou aparecer neste debate como o fiel guardião das contas públicas, a defesa possível para um partido que já se comprometeu com a viabilização da proposta do Governo AD para a generalidade e para a votação final global. Surgiu, assim, a jurar que só se abstém pela “estabilidade” política, porque, de resto, tudo o faz desconfiar, a começar pelas contas apresentadas pelo ministro das Finanças.
Neste ponto, os socialistas foram apoiados em pareceres da UTAO e do Conselho de Finanças Públicas dos quais Eurico Brilhante Dias destaca avisos sobre a “suborçamentação da despesa, receitas extraordinárias de difícil concretização e um quadro que nos expõe ao primeiro solavanco externo”. Os socialistas chamaram-lhe “contas inconsistentes” e um “verdadeiro Orçamento de fim de festa eleitoralista de Luís Montenegro nas duas últimas legislativas”. Atiraram aos “projetos que se atrasam no PRR”, aos alunos sem professores em que “não acertam” e a um ministro que “não acerta no saldo da Segurança Social”. A contestar por todos os lados, mas sozinho (ao lado da deputada única do PAN e do deputado único do JPP) na viabilização de tal proposta pela abstenção.
No final, restou-lhe agarrar-se à alteração que se segue, à legislação laboral, como uma tábua de salvação da honra da oposição que jura querer ser. Vai opor-se, ao contrário dos “neoliberais e da extrema direita do nacional corporativismo”. O consolo possível para dois dias de justificação pouco convicta da abstenção – que o líder parlamentar sublinhou, mesmo no fim, serve para “este Orçamento”. O próximo se verá.
O indisponível
O Governo manteve-se irredutível e Luís Montenegro foi claro logo no primeiro dia de discussão do orçamento na generalidade. “O Governo não está disponível para assumir o aumento permanente das pensões”, afirmou, referindo que a medida poderia “prejudicar todo o sistema”. Recordou o “acordo político” entre PS e Chega, no ano passado, e deixou apelos aos socialistas para que não o repitam e estejam, desta vez, ao lado do Governo.
Do outro lado da barricada esteve o PS, a acenar com o “aumento de mil milhões no saldo da Segurança Social”, valor acima das previsões do Governo no ano passado e que, defendem os socialistas, pode aumentar de novo em 2026. O partido perguntou ao Governo se estaria “disponível para fazer esse aumento extraordinários nas pensões mais baixas em 2026”, mas o não continuou a ser não no segundo dia de discussão do orçamento na generalidade.
Foi então a vez de Joaquim Miranda Sarmento defender que não há condições para mais do que o aumento correspondente à atualização regular das pensões. O ministro do Estado e das Finanças deitou também por terra o argumento socialista em relação aos tais mil milhões de saldo e afirmou que o secretário-geral do PS está “equivocado” em relação ao saldo da Segurança Social. Avisou que o socialista não teve em conta que este saldo de mil milhões de euros remonta a agosto e por isso se destinaram ao pagamento do bónus aos pensionistas e ao reforço da despesa do CSI e garantiu que o saldo é, por isso, de 400 milhões, sendo que com ele — que serve para garantir a sustentabilidade da Segurança Social — não há margem para mais do que aquilo que está inscrito na proposta de orçamento para 2026.
À terceira foi de vez e a ministra do Trabalho e da Segurança Social deu o segundo “não”, garantindo que o Governo não tem condições para aumentar de forma permanente as pensões, voltando a acusar o PS de fazer contas sobre o saldo da segurança social “a partir de um saldo que não existia”. E repetiu o que já afirmara: as pensões serão aumentadas segundo o cálculo previsto na lei. Ainda assim o Governo não deixa de acenar com novo suplemento (que é dado de forma extraordinária e sem contar para o apuramento das reformas futuras) se as contas ao longo de 2026 o permitirem.
O irritante imposto
Dentro e fora do hemiciclo, André Ventura foi repetindo que a questão dos combustíveis era “decisiva” para o sentido de voto do Chega num Orçamento do Estado que já estava viabilizado através do PS. E não largou o tema desde o arranque do debate. Disse que “o Governo prevê arrecadar mais 187 milhões de euros” com este imposto, sugeriu que “ou vai haver um aumento brutal de consumo de gasóleo e gasolina ou vão sacar dinheiro aos portugueses” e concluiu que os portugueses vão pagar mais 500 milhões de euros em 2026. Luís Montenegro foi tentando, de todas as forças, assegurar que “não vai haver mais impostos” e que o que está em causa é a “eliminação do desconto” que Portugal aplicou em 2022, depois de diversos avisos da Comissão Europeia. Consciente de que não é possível adiar “eternamente” o fim do desconto, o Governo pretende que não seja, para já, “repercutido” no valor pago pelo consumidor, tentando aproveitar uma fase em que a descida dos combustíveis seja suficiente para compensar.
Ficou para o deputado Alexandre Poço, no segundo dia de debate, mais uma ronda sobre o tema, argumentando que o ISP é o “alfa e o ómega” do Chega, acusando o partido de se “agarrar” ao tema “como quem se agarra ao último bidão de gasolina num deserto de ideias”. “O Chega, tirando o ISP, não tem nada a apontar ao Orçamento”, atirou, em resposta a Pedro Pinto, que acusou Miranda Sarmento de “não baixar os impostos aos portugueses” e realçou que os combustíveis em Portugal “estão muito acima da média europeia”. Poço salvaguardou que o Chega só “juntou mentira à mentira” e prometeu que o fim do desconto será feito com “prudência”. Seja como for, o ISP acabou por ser o grande irritante deste Orçamento, pelo menos aos olhos do PSD, já que Ventura fez os possíveis e impossíveis para passar a ideia de que é um aumento — e logo num tema que afeta diretamente o bolso das pessoas.


A carta fora do baralho
Não fazia parte das propostas orçamentais e não foi discutida em plenário, mas esteve sempre a rondar estes dois dias de discussão orçamental: a novela da lei da nacionalidade levou a declarações e negociações à margem do debate e culminou, finalmente, num acordo entre PSD e Chega. Na reta final, e fazendo uma última noitada antes da votação final – que aconteceu ao mesmo tempo que a votação do OE –, o Chega aceitou abdicar da sua proposta para perda automática da nacionalidade para cidadãos naturalizados que cometam alguns crimes, e conseguiu que o PSD aceitasse retirar a nacionalidade a quem a obtiver por meios “fraudulentos”, independentemente do tempo que já passou como português. Com estas duas cedências consolidou-se a revisão da lei, embora os partidos antecipem potenciais problemas junto do Tribunal Constitucional. Montenegro ainda incluiu o tema da imigração no debate orçamental, declarando que os ilegais terão de “regressar ao país de origem” e que trabalhará para que esses “retornos” sejam mais rápidos – afinal, apesar de o Governo querer um OE enxuto e focado só em normas puramente orçamentais, o primeiro-ministro conseguiu aproveitar incluir bandeiras suas na discussão.
A doutrina nova sem cavaleiros orçamentais
O Governo fez o rebranding do Orçamento do Estado para 2026 e apresentou um documento minimalista expurgado das medidas de políticas públicas que podiam inquinar as negociações num Parlamento tripartido. Retirou-lhe os chamados “cavaleiros orçamentais”, mas o Livre opôs-se a esta fórmula e à nova doutrina. “Recusamos que digam que é uma discussão à porta fechada em que apenas três partidos podem participar, e mesmo assim de mãos atadas”, afirmou no segundo dia de discussão do orçamento o deputado Jorge Pinto.
No primeiro dia de debate já Rui Tavares tinha classificado esta como uma nova “doutrina orçamental” que coloca em causa o papel do Parlamento. “Esvaziar o orçamento na especialidade é fazer aquilo que é o maior ataque da autonomia do Parlamento”, acusou o porta-voz do Livre. No primeiro dia de debate, Montenegro correu em defesa da nova doutrina orçamental, assegurando que o “OE não deve ser o repositório de tudo e um par de botas ou ”uma confusão de políticas públicas”, nem sequer da política fiscal, notando que há outras formas de fazer iniciativas políticas fora do âmbito do Orçamento do Estado.
O Livre não recua e aproveitou o discurso de encerramento do debate do orçamento na generalidade para garantir que não vai largar os cavaleiros orçamentais “do bem”, referindo aqueles que valeram a implementação das suas medidas — do projeto piloto da semana de quatro dias ao passe ferroviário nacional — mas também os que estão por vir.
A aula
Mariana Leitão preparou-se para uma oposição cerrada ao Orçamento do Estado. Já havia anunciado o sentido de voto negativo e culpou Luís Montenegro de estar a “enganar o país” quando fala em alívio fiscal, de não ter uma “estratégia de reconhecimento do mérito” e de não contrariar o “despesismo”. A fórmula de repreensão não agradou ao primeiro-ministro, que não foi de meias-palavras na devolução: sugeriu que a líder liberal levou para a discussão uma “marca difícil de respeitar”, que só podia ter uma “varinha mágica” para resolver o problema da habitação e afirmou que “o discurso mais próprio de lados mais extremos não fica bem à IL”. Compreenderia que o discurso de Mariana Leitão viesse do Bloco e PCP porque têm “visão mais radicalizada” e mostrou-se desiludido, colocando-se até no lugar de um eleitor liberal a olhar para o “discurso político absolutamente irrealista” do partido. A aula de Montenegro terminou com um olhar para o futuro: vai aguardar a “apreciação” dos portugueses sobre o comportamento da IL.
No side car: legislação laboral
Ao segundo dia de debate, a ministra do Trabalho sobe ao púlpito e na oposição sobem os tiros à reforma laboral que está na forja. A reforma que o Governo aceitou deixar para lá do Orçamento, depois do PS ter colocado essa como uma das condições para viabilizar a proposta, é arremesso evidente quando a oradora é Maria do Rosário Palma Ramalho. Sobretudo da parte do PS, que rapidamente introduziu no debate o tema do horário de amamentação, com Elza Pais a apontar um “Orçamento vazio de políticas humanistas”. Mas não foi o único a tocar nas questões que foram deixadas para a reforma laboral, com o Livre e o PAN a aproveitarem também a presença da ministra no púlpito do plenário para pedirem o alargamento da licença parental.
A dada altura, a ministra até atirou ao PS por ter feito “finca pé” para tirar matérias laborais do OE: “Mas afinal estamos aqui a discuti-las”. Aproveitou o momento para limpar a imagem de uma reforma contra as famílias (sobretudo na amamentação e valorizando a licença parental alargada), ao mesmo tempo que avisava a oposição que “dialogará com humildade” mas que “tudo fará para alcançar as reformas de que o país precisa”, com a laboral à cabeça.
O aniversariante
“Não vou ser duro porque faz anos”, prometeu José Barreira Soares, deputado do Chega. Antes dele já vários parlamentares tinham referido o desconto a dar ao ministro da Economia e Coesão. Afinal de contas, o segundo e último dia de debate do orçamento no Parlamento coincidiu com o aniversário do governante. A efeméride foi notada, mas Filipe Melo, do Chega, disse que mesmo a fazer anos o ministro “não está de parabéns”.
O aniversariante tentou provar o contrário, a usar o chapéu de festa do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), mas ficou pela promessa do investimento da “totalidade das subvenções do PRR”, sem, no entanto, fazer qualquer menção à componente de empréstimos (que este mesmo ministro já admitiu não pedir na totalidade e que são as que pesam no saldo orçamental de 2026). Destacou a “reprogramação do PRR” e a criação do Instrumento Financeiro para a Inovação e a Competitividade “para onde estão a ser transferidas dotações do PRR que não possam ser executadas dentro dos prazos previstos”, corrigindo assim aquele que considera ser o “pecado original do PRR” — o de atribuir menos dotação às empresas do que aos serviços públicos. E assim deixou a alfinetada ao PS que foi o partido que, no Governo, concebeu o PRR original.
Castro Almeida celebrou ainda a receção, na totalidade, do sétimo pedido de pagamento a Portugal e o pedido, que será feito este ano, “dentro do prazo fixado”, do oitavo pagamento. “Quem vai antes da hora não está atrasado”, respondeu ainda à oposição, referindo que Portugal foi o segundo país a receber o sétimo pagamento.
A medição de resmas
Entre os discursos finais dos partidos, ainda houve tempo para medir as resmas de papel do Chega e PS. Após a intervenção de André Ventura, acusando o PS de nacional corrupção, Eurico Brilhante Dias defendeu a honra e começou a elencar os vários crimes pelos quais dirigentes do Chega estão acusados ou a ser investigados, desde “roubos de gasolina em ambulâncias” a “prostituição de menores”, em resposta aos ataques de Ventura ao PS. Seguiu-se um exercício de paciência, liderado por José Pedro Aguiar-Branco, a pedir que o tempo fosse parado sempre que os deputados do Chega travavam a intervenção do líder parlamentar do PS.


Alguns minutos depois, bem mais do que os dois que o socialista devia ter falado, Ventura respondeu, para afirmar que Brilhante Dias “usou uma folha para escrever defesa da honra, mas que para defender a honra do PS eram precisas resmas de papel”. Enquanto falava atirava folhas para o ar. Apanhou-as pouco depois, perante a chamada de atenção de Aguiar-Branco em relação ao momento cénico. Brilhante Dias utilizou depois o gancho do papel e pediu que fossem distribuídas ao Parlamento as resmas de papel com “mais de cem mentiras certificadas” de André Ventura. Passaram-se mais de 15 neste bate boca. O Orçamento ficou à margem. O barulho não.
[Chegou o histórico debate entre Soares e Freitas. E o socialista já conseguiu o voto dos comunistas sem “olhar para o retrato” dele. A “Eleição Mais Louca de Sempre” é o novo Podcast Plus do Observador sobre as Presidenciais de 1986. Uma série narrada pelo ator Gonçalo Waddington, com banda sonora original de Samuel Úria. Pode ouvir aqui, no Observador, e também na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube Music. E pode ouvir o primeiro episódio aqui, o segundo aqui, o terceiro aqui e o quarto aqui]