Antiga gestora de conta de Carlos Santos Silva no departamento de Private Banking do BES, Ana Vaz passou esta terça-feira pelo julgamento do processo Operação Marquês, no qual legitimou a tese do Ministério Público (MP) sobre a disponibilização de valores pelo empresário na esfera José Sócrates. Com efeito, a testemunha revelou no seu depoimento que foi através de uma pesquisa no Google que descobriu que o empresário amigo do então primeiro-ministro estava a ordenar transferências para a mãe de José Sócrates com vista à compra de uma casa — no edifício Heron Castilho, em Lisboa.
E ainda confirmou que os levantamentos de 10 mil euros em dinheiro vivo, “de uma forma muito recorrente, como se fosse uma vez por semana”, levaram-na a questionar Carlos Santos Silva ao abrigo da lei de branqueamento de capitais. “Deu uma resposta vaga de que eram para despesas”, explicou Ana Vaz. O que fez a bancária a agir e a denunciar a situação ao departamento de compliance do BES.
Pedro Delille, advogado de José Sócrates, exerceu o contraditório e interrogou Ana Vaz com alguma agressividade. Perante a censura da juíza Susana Seca, Delille ameaçou abandonar o julgamento. “Se fizer alguma vez mais, garanto que saio daqui sem substabelecimento. Está a impedir o meu exercício de patrocínio. Não é possível fazer-se este julgamento assim. É a primeira vez que me acontece isto num julgamento. Não há uma vez que não tenha um preconceito e um partido já tomado quanto àquilo que eu pergunto e quanto à defesa de José Sócrates”, disse em direção à juíza presidente do coletivo.
A compra de um apartamento à mãe e de um monte à ex-mulher de Sócrates
Ana Vaz revelou no seu depoimento que foi através de uma pesquisa no Google que descobriu que o empresário amigo do então primeiro-ministro estava a ordenar transferências para a mãe de José Sócrates com vista à compra de uma casa. E que tal imóvel eram uma de duas frações no edifício Heron Castilho, em Lisboa, que pertencia a Maria Adelaide Ferreira — que irá depor no julgamento da Operação Marquês na próxima 5.ª feira.
“Houve uma altura em que recebi umas ordens de transferência da ordem das centenas de milhares de euros que tinha um descritivo/justificativo muito extenso. Achei estranho”, disse, em alusão a ordens de transferência de 200 mil euros. “Não conhecia o nome, meti no Google e vi que era o nome da mãe de José Sócrates e aí eu fui participar [ao departamento de compliance do BES]. Não me recordo de ele me ter avisado previamente. (…) Sei que na altura achei estranho uma justificação tão grande… A justificação é que era um sinal da compra e venda de imóvel. Houve mais transferências, pelo menos duas”.
“Quando há certos movimentos para os quais não consigo ter uma explicação simples e transparente, faz-nos estar mais alerta. Temos deveres de diligência e de tentar perceber o cliente [no âmbito da lei do branqueamento de capitais], se o que faz está de acordo com os movimentos da conta”, enfatizou ainda a testemunha no seu depoimento, que ocorreu durante a parte da tarde da 30.ª sessão do julgamento.
Mais: foi pelo mesmo método que Ana Vaz percebeu que Carlos Santos Silva se prestou a garantir o financiamento para a compra de um monte alentejano para Sofia Fava (igualmente arguida no julgamento), percebendo que se tratava da ex-mulher do antigo governante. Estava em causa um financiamento na ordem dos 850 mil euros, no qual o empresário até fez uma autorização de débito na sua conta caso existissem falhas nos pagamentos.
“Carlos Santos Silva disse-me numa reunião que tinha uma pessoa muito amiga que estava muito ligada a esse monte no Alentejo e que o queria comprar, mas que não tinha posses. E ele disse que iria garantir esse financiamento. Essa operação foi feito num balcão do banco”, referiu. O procurador Rómulo Mateus indagou se se tratava de Monte das Margaridas, com a testemunha a confirmar: “Ele usou como penhor financeiro um depósito a prazo. Era por Sofia Fava. O nome não me dizia nada, mas mais uma vez fui ao Google e soube que tinha sido casada com o eng. Sócrates”.
Os “levantamentos frequentes de 10 mil euros” em numerário de Carlos Santos Silva
Ana Vaz esclareceu também ter memória de que o empresário lhe ligou “várias vezes para saber se o assunto estava a ser tratado”, enquanto os seus colegas do balcão do BES na Praça de Londres (em Lisboa) também lhe transmitiram que Sofia Fava não ia ao balcão assinar documentos que eram necessários para o empréstimo.
Num tom pausado e com algum detalhe a muitas das perguntas da sua inquirição, Ana Vaz explicou como algumas destas operações surgiram sem aviso prévio de Carlos Santos Silva e causaram espanto face à sua atividade anterior. Uma dessas situações passou pelos levantamentos frequentes de 10 mil euros [em numerário], que levou a então gestora de conta a questionar o empresário e a alertar o departamento de compliance do BES, face ao desconforto manifestado pelo seu assistente João Fanico — que também prestou hoje depoimento em tribunal — por estar a levantar cheques ao balcão em nome do cliente.
“Verifiquei a partir de determinada altura que havia levantamentos na ordem dos 10 mil euros de uma forma muito recorrente, como se fosse uma vez por semana, e eu falei com Carlos Santos Silva para perceber o que justificaria esses levantamentos”, frisou. Enquadrando essa situação entre 2013 e 2014 e destacando a pouca clareza dos esclarecimentos, Ana Vaz explicou a resposta do amigo de José Sócrates: “Deu uma resposta vaga de que eram para despesas”.
Na tese de acusação, esses levantamentos regulares de Carlos Santos Silva visavam fazer chegar envelopes em dinheiro vivo a José Sócrates.
Advogado de Sócrates ameaçou (novamente) abandonar sessão perante censura de juíza
Na sequência da inquirição do MP e dos esclarecimentos pedidos pela juíza presidente Susana Seca, foi a vez de a defesa de José Sócrates começar a colocar questões a Ana Vaz. O advogado Pedro Delille começou por pedir que fossem dados os nomes da diretora de compliance do BES na altura a quem a testemunha tinha reportado as situações em torno de Carlos Santos Silva, bem como os colegas do balcão do banco na Praça de Londres que tinham intervindo no financiamento a Sofia Fava.
O tom do mandatário do ex-primeiro-ministro era já de alguma agressividade e foi com uma intervenção da presidente do coletivo que acabou por escalar a tensão na sala de audiência. “Assim não tenho condições para exercer a defesa. Estou com a instância, não tenho de passar por si”, atirou Pedro Delille para a juíza, vincando, face ao reparo de Susana Seca, que não estava “a perturbar a testemunha”.
E prosseguiu, exaltado, com uma ameaça: “Se fizer alguma vez mais, garanto que saio daqui sem substabelecimento. Está a impedir o meu exercício de patrocínio. Não é possível fazer-se este julgamento assim. É a primeira vez que me acontece isto num julgamento. Não há uma vez que não tenha um preconceito e um partido já tomado quanto àquilo que eu pergunto e quanto à defesa de José Sócrates. Não prescindo da testemunha, voltará depois, talvez daqui a cinco anos”.
Recorde-se que Pedro Delille já tinha feito ameaças semelhantes noutra sessão do julgamento mas nunca abandonou a sessão.
Com efeito, já de manhã tinha ocorrido um primeiro aviso similar de Pedro Delille à presidente do coletivo, então quando se iniciava a inquirição a Domingos Farinho, advogado e professor de Direito, mais conhecido por ser o alegado escritor-fantasma do livro de José Sócrates.
Quando o procurador Rómulo Mateus começava por pedir a essa testemunha para explicar como tinham sido as primeiras conversas com o ex-primeiro-ministro sobre a colaboração para o livro, Delille cortou a palavra para argumentar que esses factos eram exclusivamente dos autos do processo secundário da Operação Marquês, em que são visados apenas Sócrates e Santos Silva, e que tal matéria não podia ser ali abordada.
Enquanto fazia essa observação, Susana Seca virou-se para o lado para comentar algo com uma das colegas do coletivo, o que deixou o mandatário de Sócrates irritado: “A senhora já nem olha, eu vou-me embora… Por isso é que eu disse no início que isto devia ser televisionado“.
Blogger nega ter sido pago para elogiar e ajudar Sócrates
Apesar de ter arquivado as suspeitas de branqueamento de capitais contra António Costa Peixoto, tendo extraído uma certidão para investigação de um crime de falsificação de documento, o Ministério Público (MP) descreve o conhecido blogger do “Câmara Corporativa” na acusação da Operação Marquês como um colaborador de José Sócrates. Essa colaboração assentaria a partir de 2012 na publicação de textos no blogue “Câmara Corporativa”, sob o pseudónimo Miguel Abrantes, a elogiar Sócrates mas também a atacar impiedosamente jornalistas e adversários do ex-primeiro-ministro, mas também no apoio à revisão do livro lançado pelo ex-primeiro-ministro em outubro de 2013 e ao espaço de comentário que o antigo governante tinha na RTP1. Para tal, seria pago através de um contrato supostamente fictício com a sociedade RMF Consulting, do arguido Rui Mão de Ferro, antigo diretor financeiro de empresas de Carlos Santos Silva.
Ouvido como testemunha na sessão desta terça-feira do julgamento da Operação Marquês, António Costa Peixoto, também conhecido como o blogger favorito de José Sócrates, refutou a tese do MP e garantiu que prestou mesmo serviços na área de “verificação internacional de atividades” e de aspetos “fiscais” para a atividade empresarial de Carlos Santos Silva.
Na 30.ª sessão do julgamento do processo Operação Marquês, no Juízo Central Criminal de Lisboa, a testemunha — já reformada há mais de uma década após trabalhar na Câmara Municipal de Oeiras — desvalorizou as provas e ligações elencadas pelo MP entre a sua atividade e José Sócrates.
Um dos exemplos de desvalorização foram os emails enviados a José Sócrates por causa do programa de comentário, com dados das “audiências” e de “links” ou tópicos. “ A partir de certa altura comecei a ter mais à vontade e quando via alguma coisa que me chamava a atenção era capaz de lhe mandar. Eram coisas de pouco mais de uma linha”, afirmou, sublinhando que o ex-primeiro-ministro nem sempre se mostrava interessado. O tema gerou ainda um diálogo curioso entre testemunha, procurador e a juíza Susana Seca.
Procurador Rómulo Mateus (RM) – “Deu algum apoio? Colaborou ou ajudou a preparar o programa?”
António Costa Peixoto (ACP) – “Colaborar, não colaborei.”
Juíza Susana Seca (SS) – “Enviou mapas de audiências?”
ACP – “Sim, isso sim.”
SS – “Mas isso é colaborar…”
ACP – “Isso já era depois da festa acabada…”
SS – “Mas a festa continuava…”
Questionado pelo procurador Rómulo Mateus sobre o tempo que durou essa “assessoria de informação”, o economista reformado e antigo blogger do Câmara Corporativa — onde assinava com o nome Miguel Abrantes — criticou a descrição feita pelo MP. “Parece-me um exagero essa classificação de assessoria de informação. Eu mandava notas, como deveriam mandar mais 50 pessoas… Era um tópico, um link”, vincou.
Já sobre indicações que José Sócrates lhe teria dado por telefone acerca de publicações a fazer no referido blogue, António Costa Peixoto declarou terem existido duas situações, mas que nada fez em ambos os casos. “Uma era sobre ele não ter terminado o curso e queria que eu fizesse a defesa dele no blogue. Ligou-me às duas e três da manhã e eu já estava a dormir. Não fiz. A outra era por causa de uma coisa que tinha saído nos jornais… Disse-me ‘faça uma coisa já a desmentir isso tudo’. E eu achei que não devia fazer. Ficou enervado com coisas que tinham dito sobre ele”, explicou.
Quanto à revisão do livro, a testemunha explicou que leu cinco rascunhos — que lhe foram entregues por João Perna, o então motorista do ex-governante e igualmente arguido — e que não quis dinheiro por esse serviço. “Era uma área que me interessava e já tinha feito isso [revisões] para amigos. Mostrei-me disponível. Nunca falámos de dinheiro, exceto no fim — quando ele terminou a revisão do trabalho —, em que me disse pelo telefone que tinha de me pagar pelo trabalho e eu disse-lhe que não queria dinheiro“, notou.
[Chegou o histórico debate entre Soares e Freitas. E o socialista já conseguiu o voto dos comunistas sem “olhar para o retrato” dele. A “Eleição Mais Louca de Sempre” é o novo Podcast Plus do Observador sobre as Presidenciais de 1986. Uma série narrada pelo ator Gonçalo Waddington, com banda sonora original de Samuel Úria. Pode ouvir aqui, no Observador, e também na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube Music. E pode ouvir o primeiro episódio aqui, o segundo aqui, o terceiro aqui e o quarto aqui]
A defesa do contrato de prestação de serviços com a RMF Consulting
Segundo o acórdão da pronúncia da Relação de Lisboa, de janeiro de 2024, “a colaboração prestada por António Costa Peixoto, ao arguido José Sócrates, teve como contrapartida o pagamento do montante global de 79.502,50” euros entre 2012 e 2014. Os valores, à razão de 3.500 euros mensais brutos, foram pagos pela sociedade RMF Consulting, com o MP a defender que Carlos Santos Silva tinha pedido a Rui Mão de Ferro para celebrar esses contratos de prestação de serviços.
O primeiro contrato foi em nome do filho — António Mega Peixoto, que também vai testemunhar esta terça-feira —, e o segundo já em nome próprio, com António Costa Peixoto a alegar que a utilização do nome do filho era por este estar doente e sem trabalho, o mesmo motivo que o levou, segundo o seu depoimento, a dada altura a contactar José Sócrates para arranjar “uma cunha” para o filho.
Porém, António Costa Peixoto reiterou que prestou mesmo serviços na área empresarial e fiscal para a atividade de Carlos Santos Silva. “Fiz alguns trabalhos de consultoria e estudos sobre questões da área fiscal e de dupla tributação”, disse.
Assegurou ainda que enviou esses relatórios “escritos” por correio para Carlos Santos Silva, apesar de o procurador Rómulo Mateus ter lembrado que as buscas feitas no âmbito do processo não encontraram qualquer indício de trabalho efetuado sobre esta matéria. “Não sei, eu enviei-os. Estava sempre disponível para fazer os trabalhos”, reiterou.
Nesse sentido, o magistrado do MP insistiu com a testemunha para confirmar se o dinheiro que lhe foi pago teve efetivamente a ver com a colaboração com José Sócrates no blogue, no espaço de comentário e na revisão do livro “A Confiança no Mundo — Sobre a Tortura em Democracia” ou se teve, afinal, a ver com a atividade contratualizada com a RMF Consulting. António Costa Peixoto não hesitou: “Não teve nada a ver com o blogue. O blogue já existia há muitos anos e continuou a existir depois. Não havia nenhuma relação dos blogues com o dinheiro. (…) Teve a ver com os contratos com a RMF e nada a ver com isso”.
Segredo de advogado volta a travar inquirições
Para esta terça-feira estavam também agendadas as inquirições das testemunhas Domingos Farinho e Jane Kirkby, ambos advogados (e casados um com o outro). Contudo, as suas declarações seriam suspensas pelo tribunal devido à questão do segredo profissional de advogado, uma circunstância que já anteriormente obrigou à suspensão das declarações do arguido Gonçalo Trindade Ferreira.
Domingos Farinho até começou por explicar na sua identificação perante o tribunal como veio a conhecer José Sócrates, ao ser convidado em 2005 por Filipe Batista — atual advogado de Sofia Fava no julgamento e ex-secretário de Estado adjunto de Sócrates — para ser membro do seu gabinete, onde se manteria até 2008. Depois, só voltaria a contactar mais a sério a partir de 2012 com o ex-primeiro-ministro, a propósito da tese enquanto Sócrates estudava em Paris e que viria a traduzir-se depois no livro A Confiança no Mundo — Sobre a Tortura em Democracia.
“Acertámos termos em janeiro e aí tive contacto com ele. Encontrei-me duas ou traz vezes pessoalmente em 2013 e falámos com regularidade até setembro ou outubro. Depois, só voltámos a falar em março de 2014. Não falo com ele há cerca de 10 anos”, declarou. “Tem alguma coisa contra ele?”, questionou a juíza, como habitualmente faz com todas as testemunhas, com Domingos Farinho a responder com outra questão: “Mas eticamente?” Susana Seca esclareceu que a pergunta tinha sido feita numa lógica de antagonismo pessoal, ao que a testemunha rejeitou.
Estava aberto o caminho para a inquirição do MP, que, conforme mencionado anteriormente, foi travada por Pedro Delille, não só por considerar que a matéria não era objeto deste processo, mas também porque o contrato assinado por Farinho com a empresa RMF – Consulting (empresa de Rui Mão de Ferro, igualmente arguido e sócio de Carlos Santos Silva) assentava na prestação de serviços jurídicos que estariam cobertos pelo segredo profissional.
Por esse contrato, Domingos Farinho terá recebido durante 8 meses cerca de 4 mil euros mensais, quando estava em regime de exclusividade com a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. O professor de Direito viria a ser alvo de uma certidão extraída da Operação Marquês e acusado de burla, abuso de poder e falsificação de documentos, mas acabou por não ir a julgamento, face ao pagamento de cerca de 10 mil euros à Faculdade de Direito de Lisboa para a suspensão provisória do processo.
A juíza acabou por indeferir o requerimento para a suspensão de declarações, ao entender que a matéria daquele contrato — que o MP considera ser fictício por ter sido para remunerar pelo apoio prestado a Sócrates — fazia parte do processo, mas deu abertura a Domingos Farinho para se escusar a depor sem que esclarecesse primeiro junto da Ordem de Advogados se estaria autorizado a falar.
A testemunha acatou a sugestão e escusou-se a depor, com o procedimento a repetir-se pouco depois com a sua mulher, Jane Kirkby. A também advogada terá recebido mais 60 mil euros da RMF – Consulting entre novembro de 2013 e outubro de 2014, com o MP a defender que este montante terá servido igualmente para remunerar Farinho pela alegada escrita do livro de Sócrates.
(Notícia atualizada às 23h17)