A série Yes Minister foi transmitida pela BBC entre 1980 e 1984 e é também na década de 80 que chega a Portugal. Se hoje a revisitarmos, percebemos como envelheceu bem, como é actual. Um dos episódios é sobre a intenção de a União Europeia proibir que se chamem “salsichas” a certas salsichas britânicas porque não têm carne suficiente. Deveria passar a designar-se “tubo emulsionado de vísceras gordurosas”. O que leva à revolta do ministro, por considerar que tal constitui um ataque à identidade nacional.
Há dias voltámos ao tema das salsichas porque o Parlamento Europeu aprovou uma norma que proíbe que se chamem salsichas ou hambúrguer a produtos de origem vegetal. Vale a pena ler o Paulo Ferreira sobre esta magna questão decidida no Parlamento Europeu com 355 votos a favor e 275 a votarem contra ou a absterem-se. A proposta tem agora de seguir os procedimentos habituais, nomeadamente tem de ser negociada entre o Parlamento, a Comissão Europeia e o Conselho.
Esta não se pode considerar uma iniciativa inédita. A União Europeia tem já um regulamento de 2013 em que estabelece que só se pode usar a palavra “Leite” para um produto de “secreção mamária normal”. E designações como “manteiga, iogurte, queijo, natas” só podem ser usadas para produtos que derivem do leite animal. Pelas regras aí consagradas podemos ver, com paciência, os detalhes em que se entra. Como consequência, mesmo considerando que os consumidores saberão que não se está propriamente a falar de leite, temos de falar de “bebida de soja” ou “bebida de amêndoa”. Existe até uma decisão do Tribunal de Justiça Europeu de 2017 em que se valida essa interpretação contra uma empresa que usava a designação de leite de soja.
Mas existem outros exemplos. Como a proibição recente – entrou em vigor dia 1 de Setembro – do uso de óxido de trimetilbenzoil difenilfosfina (TPO) em vernizes, um produto que acelera a secagem das unhas de gel por ser considerada cancerígena. Há ainda regulamentações que visam a aromaterapia e as velas perfumadas, regras para utensílios de cozinha, regras para rotulagem e composição de sabonetes e perfumes artesanais ou para sumos e néctares. Enfim, é um sem fim de regras. As estimativas que existem dizem-nos que a União Europeia produz entre dois a três mil actos jurídicos por ano.
E durante esta semana fomos controntados com a mudança da hora, outro tema que também ele é gerido pela União Europeia, como se de uma macro-questão se tratasse. O certo é que vai ser preciso propor ao nível europeu para se acabar com uma prática que devia caber aos poderes nacionais decidir e que faz mal à saúde, especialmente o horário de Verão.
Mais recentemente a Comissão Europeia quer também meter-se a resolver o problema da habitação, teoricamente simplificando regras que ela própria criou e, claro, atirando dinheiro para o problema. A simplificação das regras só pode ser recebida com aplausos, embora se receie quanto àquilo que Bruxelas entende por simplificar.
No caso português a questão assume proporções ainda mais graves porque em boa parte dos casos a transposição, nomeadamente das diretivas, pouco ou nada explora a margem de manobra que é dada aos países para adaptarem as regras à sua realidade.
Quando olhamos para esta proliferação de regras sobre tudo e nada temos razões para nos perguntarmos por onde anda o princípio da subsidiariedade, que consagra que as decisões devem ser tomadas pelo nível de Governo mais próximo dos cidadãos, deixando para o patamar superior matérias em que manifestamente se ganha com isso. A Comissão Europeia e o Parlamento Europeu andam cada vez mais esquecidos desse princípio, entretendo-se em micro-gestão legislativa, com a agravante de andarem a tratar os cidadãos europeus como mentecaptos ou a tentar infantilizá-los.
Além de tudo isto, está já identificado que um dos problemas da falta de competitividade da economia europeia radica neste excesso de regulamentação. Esta legislação sobre detalhes significa custos para as empresas. Ainda que as mais pequenas e inovadoras acabem por ser as que mais sofrem, o impacto sobre os custos das maiores empresas também não se pode menorizar. O resultado de custos mais altos são preços mais elevados. E se gastamos recursos a tratar das regras europeias há também menos dinheiro para melhorar salários ou investir. O relatório Draghi devia ser leitura obrigatória para eurodeputados, comissários e funcionários europeus.
Lamentavelmente, desde a caricatura das salsichas britânicas que não podiam chamar-se salsichas, a situação só piorou. Até porque, comparativamente com os anos 80, a máquina europeia tem hoje muito mais funcionários e políticos que têm de mostrar trabalho. E não se está a ver como é que o próprio sistema gera uma solução dentro dele para se auto-corrigir, uma vez que não tem qualquer incentivo para isso. O relatório Draghi mereceu muitos elogios e aplausos para ser imediatamente esquecido na prática diária. Num quadro destes só podemos esperar o pior. Bruxelas nunca vai aprender.