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A política de "A Diplomata": quanto mais temporadas (e mais Keri Russell), melhor

A protagonista ideal. O equilíbrio perfeito entre o drama e o thriller. E aparato técnico cada vez mais apurado. Susana Verde faz a anatomia de uma série sem erros em três temporadas.

Susana Verde
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Pediram a minha opinião sobre A Diplomata, a série de Debora Cahn (West Wing, Homeland), cuja terceira temporada saiu recentemente e trepou pelo top da Netflix acima. Já tinha ouvido falar, tinha lido uma coisa ou outra, mas no meio desta crise de abundância de séries foi ficando na prateleira de “um dia destes…”. Pois que o dia chegou. Melhor, o fim de semana chegou e nas últimas 72 horas limpei os 20 episódios das três temporadas.

Estarão a pensar “que mulher, que exemplo, que resiliência, nem todos os heróis usam capas…” Não vou aceitar esses louros, porque a verdade é que adorei cada minuto desta maratona. Não deixou lesões ou mazelas. Talvez só uma confirmação: o mundo está mesmo todo quinado e nós, formiguinhas num carreiro, precisamos de fazer qualquer coisa para ir no sentido contrário. “Ah, mas isto não é documentário, é ficção.” Pois está bem, meus meninos, mas qualquer semelhança com o panorama geopolítico que está pintado, não é pura coincidência. É um grafitti dos tempos.

Katherine Wyler (Keri Russell, a “Felicity” que eu via na adolescência  e que mais recentemente brilhou em The Americans) é uma especialista em política externa, casada com o ex-embaixador Hal Wyler (Rufus Sewell, uma cara conhecida, mas sem grande reconhecimento, que aqui está imperial). Hal está na lista negra do POTUS William Rayburn (Michael McKean, o incrível Chuck de Better Call Saul) por ter chamado criminoso de guerra a um secretário de estado, em particular, e por usar métodos pouco ortodoxos, no geral.

[o trailer da terceira temporada de “A Diplomata”:]

https://www.youtube.com/watch?v=l6UX4V71jzc

Kate está a preparar-se para ser embaixadora no Afeganistão e pela primeira vez não ser a “plus one” de Hal, quando lhe mudam os planos e é convidada, sem grande margem para recusas, para assumir a embaixada em Londres. Kate não fica satisfeita pela troca. Acredite-se ou não, preferia Cabul a Londres, porque o seu trabalho faria mais diferença num país em escombros do que num cargo mais performático, dada a longa aliança com os Estados Unidos. Na verdade, este cargo é um psicotécnico para aferir se Kate tem o que é preciso para ser Vice-Presidente dos EUA, uma vez que a atual está prestes a levar um pé na bunda, graças a um alegado esquema de corrupção em que o marido está envolvido, esquema esse que está prestes a ser tornado público.

Mas A Diplomata não é só sobre jogos de poder, intrigas palacianas, o poder das “perceções” e a manipulação de que todos sem exceção, independentemente de mais ideologicamente canhotos ou destros, somos vítimas. Um das mais-valias desta história é mostrar que os peões deste tabuleiro são mais que um cargo ou um nome num qualquer organograma. As personagens estão carregadinhas de camadas e resultar claro que as questões individuais têm impacto nas decisões tomadas por quem está em lugares de poder. Vai-se a ver e os atores políticos, os líderes mundiais ou aqueles que estão a tentar sê-lo custe o que custar, também são pessoas. E é muito por isso que estou um tanto ou quanto obcecada por esta diplomata, que dá título à série.

Quanto ao casal protagonista, assistimos de camarote a um zigue-zague constante entre “só tenho olhos para ti” e “não te posso nem ver”, como só uma boa e velha relação tóxica consegue proporcionar. Há momentos de cumplicidade enternecedora que precedem manifestações de uma desconfiança absoluta.

De maneiras que as próximas linhas serão o meu tempo de antena. A minha declaração de intenção é clara, vejam este thriller político. E as minhas promessas eleitorais são: baixar os spoilers aos mínimos possíveis e subir as vossas expectativas upa-upa, lá para cima.

Temporada 1: isto já estava difícil quando alguém carregou no botão

A história começa com um tiro no porta aviões. Bem, na verdade, não foi um tiro, foi uma explosão, mas eu jogava à batalha naval com o meu pai e veio-me a nostalgia. É sabido que o porta-aviões é britânico, mas quem é que estava sentado na cadeira giratória com o gato ao colo e carregou no botão vermelho, que causou a morte 40 militares britânicos? É este o enigma da primeira temporada. Ainda não tinha aquecido a cadeira de embaixadora e Katherine já tinha este menino nas mãos.

Outro menino que Kate tem nas mãos e que lhe suga muita energia é, não um filho, mas Hal Wyler. Ao longo de 10 anos de casamento, Kate trabalhou, em segundo plano, para o crescimento da carreira diplomática do marido. Resta saber como é que ele lida com a troca de papéis. Spoiler alert: lida mal. Hal sofre claramente de main character syndrome e não consegue estar sossegado. Conter as suas iniciativas, com melhores ou piores intenções, é trabalho diplomático de monta. E a coisa já não estava famosa de origem, porque o casal estava prestes a divorciar-se quando o cargo caiu no colo de Kate.

Voltando ao porta-aviões, que será muito o cerne da missão diplomática da embaixadora, Kate passa a temporada a tentar conter o ímpeto bélico do primeiro-ministro britânico Nicol Trowbridge (um impecável Rory Kinnear, curiosamente, também primeiro-ministro no inesquecível episódio inaugural de Black Mirror, aquele do dilema do porco) e a tentar conter o seu olhar guloso em direção ao Secretário dos Negócios Estrangeiros Austin Dennison (David Gyasi). E eu não sou ninguém para a julgar por isso, que os fatos assentam-lhe que é uma perfeição.

Ao longo dos episódios, o suposto vilão vai mudando de nacionalidade: a autoria do ataque começa por ser apontada aos malandros do Irão, depois vai-se a ver e foram os suspeitos do costume, os russos, e eis senão quando se percebe que passar muito tempo a fazer de polícia do mundo, deixa a casa um tanto ou quanto à mercê dos que já lá estavam. A primeira temporada acaba como começa, com uma explosão que tinha por objetivo silenciar um insider que se ia chibar, mas de caminho apanhou funcionários da equipa de Kate e o próprio do marido. A contagem e a identificação de mortos e feridos fica para a próxima temporada. Olha a minha sorte, que vou já saltar para o próximo episódio.

Temporada 2: “Só tenho olhos para ti”, “não te posso nem ver” e “afinal, quem é o inimigo?”

Durante a primeira temporada, Kate foi-se adequando, por vezes a muito custo, aos protocolos, fretes e salamaleques da função, tudo muito à base do show off, o que foi valendo uns quantos desentendimentos com o número 2 da embaixada, um bem intencionado Stuart Heyford (Ato Essandoh). Stuart tem também uma missão secreta relacionada com a chefe, adjudicada por Billie Appiah (Nana Mensah), o braço direito do presidente americana. Billie encarregou Stuart de avaliar se Kate tem arcaboiço para ser vice-presidente e, eventualmente, moldá-la para o efeito.

Outro facto curioso, e que Kate também não sabe, é que Stuart também não obedece ao ditado “trabalho é trabalho. Conhaque é conhaque” e tem uma relação não assumida com a responsável da CIA em terras de Sua Majestade Eidra Park (Ali Ahn), relação que eventualmente não resiste aos cruzamentos, nós e sobreposições entre a vida pessoal e profissional dos dois. Quanto ao casal protagonista, assistimos de camarote a um zigue-zague constante entre “só tenho olhos para ti” e “não te posso nem ver”, como só uma boa e velha relação tóxica consegue proporcionar. Há momentos de cumplicidade enternecedora que precedem manifestações de uma desconfiança absoluta.

Ver as três temporadas de enfiada não deixa lesões ou mazelas. Talvez só uma confirmação: o mundo está mesmo todo quinado e nós, formiguinhas num carreiro, precisamos de fazer qualquer coisa para ir no sentido contrário. “Ah, mas isto não é documentário, é ficção.” Pois está bem, meus meninos, mas qualquer semelhança com o panorama geopolítico que está pintado, não é pura coincidência.

Tudo isto resulta numa co-dependência emocional e estrutural entre os dois, que é magistralmente interpretada por Keri Russell e Rufus Sewell. Depois da pergunta “quem é que atirou ao porta-aviões?”, nesta segunda temporada a questão é “quem é que quis calar quem ia denunciar quem atirou ao porta-aviões?”. Kate continua a apagar fogos diplomáticos ateados pelo primeiro-ministro britânico que só quer um inimigo comum para garantir o poder, muito influenciado por uma ministra sombra (estão a ver o género? diz-vos alguma coisa?), a deputada conservadora Margaret Roylin (Celia Imrie do Exótico Hotel Marigold, entre tantas outras coisas).

No final da temporada, Kate está cada vez mais inclinada a aceitar o eventual convite para vice-Presidente e a detentora atual do cargo, Grace Penn, entra em cena, uma arrebatadora Allison Janney (a secretária de imprensa de West Wing). Kate vai de cheerleader a hater de Grace em menos de nada, por motivos que não vou adiantar, e a dança de poder entre estas duas mulheres é uma coisa linda de se ver.

Temporada 3: não há mulheres assim (e homens também não)

E agora, sim. Chegamos ao presente. O Hal volta a fazer das deles e mata o Presidente dos Estados Unidos da América. Quer dizer, não mata mesmo, mesmo. Mas dá-lhe uma novidade acerca do envolvimento da sua VP no incidente do porta-aviões que o deixa num estado de nervos tal que lhe dá uma coisinha má e fica-se a meio da videochamada. Contas feitas, Grace Penn, que estava quase a imprimir currículos para ir para fila do desemprego, vira a Presidente da porra toda. Ele há coisas, não é?

O que é que sucede? Como diz Kate, “agora, temos uma presidente cheia de falhas e só nós sabemos as falhas dela”. E informação é poder. A velha máxima do “keep your friends close and your enemies closer” é central nesta série, mas em particular nesta temporada. Grace sabe que não pode confiar nem em Kate, nem em Hal, por isso arranja uma maneira exemplar de os manter por perto, onde os possa controlar. Já Kate sabe que ela não merece a presidência, mas que com as atuais ameaças à democracia, ela é o chamado “melhor que nada”.

Neste universo de personagens d’A Diplomata, este é recorrentemente o mecanismo para lidar com as instituições que representam. Eidra diz a determinada altura sobre a CIA: “Se pudesse perseguir terroristas e traficantes com uma organização que não tem um legado de 80 anos de racismo e violação dos direitos humanos, perseguiria”. Kate constata “Não foi um erro, foi política. É o que vocês fazem.” A primeira dama inglesa, Lydia Trowbridge (Pandora Colin) afirma: “Fazemos cedências. Nuns dias aceitamos bem, noutros, bebemos gin.” Dava um excelente epitáfio para muito boa gente em cargos de poder. Basta mudar para a bebida da preferência.

Esta é a fase da história com mais volte-faces e todos funcionam que é um mimo. À terceira temporada, a narrativa não está esgotada ou repetitiva, a realização está cada vez melhor, a escrita é de alto-lá-e-pára-o-baile e a banda sonora é supimpa. Mas não é à toa que o título é A Diplomata. Katherine Wyler é um sonho de personagem. Ao longo da História, na grande maioria das histórias, as mulheres ou são damas de ferro competentes ou são histéricas emocionadas. Já em narrativas mais recentes, e por vezes em jeito de reparação histórica bem intencionada, há várias protagonistas perfeitas: competentes, mas não obcecadas; apaixonadas, mas com inteligência emocional; com valores, mas com empatia pelo erro. Ora, não há mulheres assim. Como também não homens assim. Quer dizer, se calhar, há. Eu, assim de repente, não me lembro de ninguém. E é isso que eu gosto da Kate.

Combate um meio patriarcal, mas usa o flirt quando necessário, para conseguir o que quer de um homem cheio de poder, mas carregadinho de inseguranças. Luta por um mundo livre, mas não se consegue livrar de uma relação que é uma prisão. Ou não quer. Não tem nada de perfeito e por isso é uma personagem perfeitamente construída.

Ela é, claramente, alguém com espírito de serviço, mas não é por isso que não tem ambição. E apesar da bússola moral, também mete os pés de vez em quando. E apesar de um forte sentido de justiça, às vezes é bastante injusta. Resolve conflitos intercontinentais sem pestanejar, mas fica uma pita corada na presença da mulher do tipo que queria esgatanhar, apesar de ser casada. Sabe que vive num necessário mercado de favores e que, para salvar inocentes, vai ter que absolver uns quanto culpados. Passa-se da cabeça, parte para a violência com o marido e bebe de mais para esquecer. É desastrada e está sempre meio despenteada (senti-me duplamente representada) e anda sempre com a mala a tiracolo, porque precisa das mãos livres para meter na massa.

Combate um meio patriarcal, mas usa o flirt quando necessário, para conseguir o que quer de um homem cheio de poder, mas carregadinho de inseguranças. Luta por um mundo livre, mas não se consegue livrar de uma relação que é uma prisão. Ou não quer. Não tem nada de perfeito e por isso é uma personagem perfeitamente construída. Espero ansiosamente que seja reconduzida pela Netflix a uma próxima temporada, senhora embaixadora.