A experiência recente dever-nos-ia fazer ter alguma cautela quando se trata de passar certidões de óbito a partidos políticos. Ainda em 2022, na ressaca da maioria absoluta de António Costa, alguns dos mais influentes pensadores da direita, insuspeitos de nutrir qualquer antipatia pelo PSD, apostavam que o partido caminhava impotentemente para a irrelevância e que ao PS estava reservado o direito de ser o alfa e ómega do regime. Hoje é ver Luís Montenegro a levitar sobre os escombros dos socialistas e o PS deitado num divã, sem saber o que quer ser e a celebrar vitórias morais.
Objetivamente, Montenegro conseguiu um feito: superar as reservas políticas que existiam sobre ele, reconectar-se com o eleitorado, vencer eleições e preservar o poder. A avaliação da estratégia que seguiu e os meios que utilizou fica para outras núpcias. Mas, factualmente, Luís Montenegro salvou o PSD. E a menos que algo de muito extraordinário venha a acontecer, arrisca-se a garantir a permanência do partido no Governo por muitos e largos anos.
Vem isto a propósito do Bloco de Esquerda e da saída pela porta pequena de Mariana Mortágua. Nem os próprios bloquistas discordarão da ideia de que o partido está hoje em vias de extinção. Há quem entenda — como Daniel Oliveira — que já não há forma de o evitar, que o partido está para lá de recuperável e que deve caminhar para uma diluição numa grande frente de esquerda. E é preciso dizê-lo: recuperar um partido como PSD ou PS é uma coisa; salvar um partido como o Bloco — sem estruturas locais e sem massa crítica — é outra coisa bem mais exigente.
Mas é de admitir, com naturalidade, que os dirigentes e militantes do Bloco não queiram ou não estejam preparados para dar esse passo. Pelo que sobra a alternativa: trabalhar para evitar essa extinção. Acontece que, olhando aos sinais acumulados ao longo dos últimos anos, parece sobrar em soberba moral aquilo que falta em bom senso e ligação à realidade — ainda há meia dúzia de dias a mesma Mariana Mortágua que se demitiu por ter falhado os objetivos dizia que a sua estratégia estava certíssima. Virada a página, importa, antes de tudo, fazer o diagnóstico correto: o partido caiu para a quasi-irrelevância porquê?
Mariana Mortágua e outros no Bloco de Esquerda desenvolveram uma tese principal: o partido caiu porque o país e o mundo viraram à direita. É verdade que viraram, mas, no mesmíssimo período de tempo, o partido siamês, o Livre, cresceu e cresceu propulsionado pela queda Bloco. Logo, essa tese parte de uma falsa premissa.
Há um outro argumento complementar: o partido caiu porque Mariana Mortágua foi vítima de uma campanha negativa por ser mulher e lésbica. Não sendo de menosprezar essa componente, importa recordar que o melhor resultado da história do partido foi conseguido por Catarina Martins, pelo que a hostilidade com que foi tratada Mariana Mortágua (por razões que nem sequer deveriam ter lugar num debate democrático saudável) não justifica tudo. Os eleitores que deram mais de 500 mil votos a Martins não viraram todos machistas e homofóbicos empedernidos em menos de seis anos.
Por fim, um último grande argumento, mais antigo: o Bloco perdeu força por se ter aliado ao PS na ‘geringonça’. Existem, todavia, dois problemas com esta conclusão. O primeiro, já visto acima, é que o Livre cresceu vendendo precisamente a ideia de que quer ser um parceiro do PS num eventual governo de esquerda. Nesta questão, Rui Tavares nunca se deu a estados de alma de qualquer espécie e os eleitores têm valorizado essa coerência.
O segundo problema é que os dois maiores tombos da história do partido aconteceram quando o Bloco se excluiu da solução ou do combate — com Francisco Louçã e a reunião com a troika, em 2011; e com Martins e o chumbo do Orçamento, em 2022. Em contrapartida, o Bloco teve o seu maior resultado (2015) quando Catarina Martins definiu três condições muito claras para suportar um governo socialista, score basicamente igualado em 2019, depois de quatro anos de ‘geringonça’.
Isto parece indiciar que os eleitores do Bloco percebem (ou percebiam) quando é que o partido é uma influência útil e positiva para a construção de uma alternativa à esquerda e quando não é. O que aconteceu nos últimos anos é que os atuais protagonistas do partido esqueceram essa lição e começaram a falar quase exclusivamente sobre temas que, em vez de alargarem, diminuíram a base eleitoral do partido. Esqueceram-se que uma fatia generosa daqueles 500 mil eleitores esperaria que as prioridades fossem outras. Gritar ‘prende que é fascista’ ou “Free Palestine” não chega.
Portanto, se o Bloco de Esquerda quiser continuar a existir deve mudar de protagonistas e começar a procurar falar para o país que existe e não para o país que julga existir. Deveria, aliás, repensar a candidatura presidencial de Catarina Martins, uma figura que está em perda eleitoral há três eleições consecutivas. Porque o caminho é estreito, mas não necessariamente impossível. Agora, se quiserem continuar a fazer o que fizeram até aqui, é bem provável que os eleitores lhes façam o favor e os deixem a falar sozinhos. Lá ficarão, profundamente convictos de que têm razão — o povo é que não os compreende.