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A bola é redonda, e a nossa emergência pré-hospitalar também

O modelo português de emergência: é coerente, é eficaz e, sobretudo, é o certo para o país.

Sónia Sousa
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Ao longo da história da saúde em Portugal, não é comum vermos a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Enfermeiros a partilhar, de forma tão clara, uma posição conjunta. Por isso, o recente entendimento público entre ambas sobre o futuro do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) merece ser destacado, valorizado e, acima de tudo, ouvido.

Num país em que o debate em torno da saúde tende a fragmentar-se, esta convergência representa um momento de lucidez institucional e de compromisso com o interesse comum.

A convergência de perspetivas entre as duas Ordens é, por si só, um facto notável. São instituições com percursos e visões distintas, que nem sempre caminharam lado a lado. Mas há momentos em que a evidência se impõe e a realidade fala mais alto. Quando o assunto é tão claro, tão inequívoco, não há espaço para divergências. O modelo português de emergência pré-hospitalar é um desses casos: está assente em bases sólidas, científicas e comprovadamente eficazes. Mudar o rumo seria como decidir jogar futebol com uma bola de rugby, mas por mais lobbies que existam, ninguém pode negar que a bola deve ser redonda.

O INEM é, desde há décadas, uma das estruturas mais sólidas e eficazes do sistema de saúde português. Assente em três níveis de resposta (Suporte Básico, Imediato e Avançado de Vida), constitui uma rede integrada, regulada e tecnicamente qualificada, capaz de garantir cuidados de emergência com rigor e segurança clínica. A regulação médica assegurada pelos Centros de Orientação de Doentes Urgentes (CODU), a formação exigente e a articulação entre médicos, enfermeiros e técnicos têm permitido ao país manter um modelo coeso, reconhecido internacionalmente pela sua eficiência e qualidade.

É certo que o sistema enfrenta constrangimentos (estruturais, humanos e organizativos) que exigem reformas e investimento, nomeadamente o Instituto passar a Autoridade e o atual INEM passar a ANEM. Mas é precisamente neste contexto que o consenso entre as Ordens ganha um significado ainda maior. Quando quem representa os profissionais de saúde que diariamente intervêm no terreno converge num diagnóstico e num caminho, isso deve merecer atenção e respeito. O que está em causa não é apenas uma visão técnica, mas a defesa de princípios de segurança, qualidade e sustentabilidade para o futuro do socorro em Portugal.

Ambas as Ordens sublinham a necessidade de reforçar o modelo existente, e não de o substituir. O foco deve estar em qualificar e modernizar a rede de emergência, investir em formação acreditada e contínua, reforçar os meios humanos e tecnológicos dos CODU e garantir que as equipas no terreno continuam a ser formadas e supervisionadas de acordo com padrões científicos, éticos e deontológicos elevados.

É um caminho exigente, mas também o único capaz de assegurar que a resposta em emergência médica continue a ser célere, eficaz e segura: valores que os cidadãos já reconhecem e confiam.

Portugal tem nesta área uma história de sucesso. O nosso modelo de emergência pré-hospitalar foi construído com base na integração entre medicina e enfermagem, numa lógica de cooperação e de aprendizagem contínua entre pares. Essa combinação de competências é o que garante a qualidade dos cuidados e o que faz da futura Autoridade Nacional de Emergência Médica um sistema verdadeiramente humano, como um organismo vivo, que se aperfeiçoa todos os dias pela prática partilhada, raciocínio clínico e pelo conhecimento acumulado.

Há países que seguiram outros caminhos. Cada realidade tem a sua história e as suas necessidades. Mas Portugal acertou no modelo que criou, e deve orgulhar-se disso. É esse o sentido mais profundo da posição conjunta agora divulgada: reconhecer o que funciona, capacitar o que pode ser melhorado, e resistir à tentação de soluções simplistas ou modismos importados.
O verdadeiro progresso não está em terminar com o que resulta, mas sim em aperfeiçoá-lo com base na evidência, na ciência e na experiência de quem conhece o terreno.

Num tempo em que o ruído muitas vezes se sobrepõe à razão, esta convergência entre médicos e enfermeiros é uma excelente notícia. Representa maturidade institucional, sentido de missão e uma visão partilhada sobre o essencial: que a nossa emergência pré-hospitalar deve continuar a ser um sistema verdadeiramente diferenciado, centrado na qualidade, na segurança, deontologia e no serviço ao cidadão.

Tal como no desporto, há verdades simples que não se contestam. A bola é redonda e é assim que o jogo faz sentido. O mesmo se aplica ao modelo português de emergência: é coerente, é eficaz e, sobretudo, é o certo para o país.
Quando as duas Ordens profissionais que dele fazem parte o afirmam em uníssono, resta-nos escutar, valorizar e seguir, com confiança e compromisso.