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(A) :: Aliciava jovens guineenses a estudar em Portugal e abandonava-os no aeroporto. Foi acusado de auxílio à imigração ilegal

Aliciava jovens guineenses a estudar em Portugal e abandonava-os no aeroporto. Foi acusado de auxílio à imigração ilegal

Presidente de associação sediada no Porto recebia milhares de euros para conseguir vistos e falseava documentos. MP acusou-o de mais de 30 crimes.

Leonor Riso
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Quando chegou ao aeroporto de Lisboa vinda da Guiné-Bissau, Elisabete (nome fictício) sonhava estudar numa escola em Portugal graças a uma bolsa de uma associação sediada no Porto que lhe garantia alojamento e alimentação. Sem posses económicas, ela e a família conseguiram no entanto pagar os 1,5 milhões de francos CFA (cerca de €2.280) da candidatura.

Elisabete tinha o visto especial para estudante que lhe permitira entrar em Portugal e, com ela, em 2019, chegaram outros jovens crentes de “que iriam ter uma oportunidade única de concluírem os seus estudos num país da Europa, que lhes possibilitaria um futuro profissional mais atrativo e profícuo”, mas todos, relata o Ministério Público, acabaram enganados por A. C. B., presidente da associação.

Em vez de ir para a escola, Elisabete foi para a casa de A. C. B.. Aí, sem um quarto a que pudesse chamar seu, morou durante o resto do ano por não ter dinheiro suficiente para pagar uma renda. Em 2020, foi para uma escola diversa daquela a que se tinha candidatado. Ainda ficou alojada nas instalações mas em março, devido à pandemia e ao encerramento da escola, teve que ir embora. Elisabete nunca recebeu uma bolsa de estudo nem teve alojamento como lhe tinha sido indicado e como a ela, A. C. B. faltou às promessas a mais 27 jovens guineenses.

O arguido sabia sempre quando os estudantes chegavam ao território nacional e disponibilizava-se para os ir buscar ao aeroporto, mas nem sempre comparecia, deixando os jovens sozinhos e aos seus próprios cuidados
Acusação do Ministério Público

Em julho, o Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) do Porto acusou A. C. B. de um crime de associação de auxílio à imigração ilegal; 28 crimes de auxílio à imigração ilegal, um crime de burla qualificada e um crime de falsificação de documentos, por factos ocorridos entre 2014 e 2023. A sua associação também foi acusada dos mesmos crimes. Os lesados nunca mais voltaram a ver o dinheiro que pagaram.

Estudantes eram deixados sozinhos no aeroporto

O arguido A. C. B. foi buscar Elisabete ao aeroporto, mas o mesmo não aconteceu com outros lesados, como Paula (nome fictício). “Quando chegou ao aeroporto, o arguido não estava à sua espera, nem nenhum elemento da Associação arguida, pelo que suportou a sua estadia em Portugal com os seus próprios recursos financeiros”, lê-se na acusação a que o Observador teve acesso. “O arguido sabia sempre quando os estudantes chegavam ao território nacional e disponibilizava-se para os ir buscar ao aeroporto, mas nem sempre comparecia, deixando os jovens sozinhos e aos seus próprios cuidados.”

Ao ver-se sozinha, Paula contactou o instituto politécnico onde esperava estudar e foi-lhe comunicado que “não lhe tinha sido atribuída nenhuma bolsa de estudo e que não estava matriculada para frequentar qualquer curso naquela instituição de ensino”. Só nove meses depois é que a guineense recebeu notícias de quem tudo lhe prometera em troca do pagamento da candidatura feito meses antes, “pedindo-lhe desculpa por não ter efetuado a matrícula e pedindo-lhe que não se deslocasse ao SEF”.

Sem inscrição na escola, Paula não frequentou o curso, não tinha alojamento nem nunca recebeu qualquer bolsa. A família teve que suportar os gastos em Portugal. Mas como operava esta associação dedicada a trazer jovens guineenses para Portugal, deixando-os abandonados à própria sorte? Segundo a acusação do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) do Porto, A. C. B., de 48 anos, era o cérebro do esquema.

Naturalizado português desde 2008, decidiu criar uma associação sob o mote do “estudo, consulta, cooperação e promoção do desenvolvimento económico, social, cultural e turístico da Guiné-Bissau”. A organização surgiu em 2015, um ano depois de, indica a acusação, A.C.B. ter decidido “obter para si beneficio económico, favorecendo e/ou facilitando a entrada e permanência de cidadãos de nacionalidade guineense em território nacional, de forma ilegal, a troco de compensações monetárias”.

Para isso, aproveitou-se de jovens guineenses que queriam prosseguir a sua formação académica em Portugal, elaborando um “esquema que permitisse a entrada no país desses jovens, através da concessão de visto para prossecução dos estudos, mesmo que para tal não estivessem reunidos os requisitos, obtendo para si beneficio económico a que sabia não ter direito”. Prometia-lhes a matrícula numa escola, alojamento e alimentação a troco de uma taxa de candidatura à bolsa de estudos da sua associação, que chegou a ter protocolos com cinco escolas portuguesas onde se dizia representante do governo da Guiné-Bissau, cujo Ministério da Função Pública e Reforma Administrativa também foi contactado por A. C. B. e até recrutou os primeiros candidatos à bolsa.

Arguido acusado de ter fabricado documentos reclamou à Provedoria e ao MNE

Ao arguido, era “indiferente” que os alunos “efetivamente estivessem inscritos ou frequentassem as escolas ou ainda as condições em que eles permaneceriam em território nacional”. Para conseguir-lhes os vistos, A. C. B. emitia documentos falsos, como declarações de inscrição dos estudantes em escolas profissionais e institutos politécnicos. Propunha aos pais tornar-se tutor dos jovens para agilizar todo o processo e a sua era dada como morada de residência de todos eles — apesar de indicar às autoridades que estes ou eram acolhidos por uma família, ou tinham alojamento assegurado pelas instituições de ensino.

Quando não tinha os documentos necessários ou o que neles vinha indicado não permitia o acesso ao visto especial para estudantes, A. C. B. “fabricava-os”: criou atestados de residência, certidões de matrícula e de equivalências académicas, certificados de habilitações e de frequência escolar, bem como declarações de vagas em escolas portuguesas. Tudo para conseguir que os jovens entrassem em território nacional.

O arguido decidiu implementar um esquema que permitisse a entrada no país desses jovens, através da concessão de visto para prossecução dos estudos, mesmo que para tal não estivessem reunidos os requisitos, obtendo para si beneficio económico a que sabia não ter direito
Acusação do Ministério Público

Chegados, A. C. B. fazia matrículas escolares e inscrevia-os na Autoridade Tributária, e organizava agendamentos no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Em 2016, A. C. B. entregou 84 pedidos de visto e, perante a aprovação de apenas 42, reclamou para a Provedoria de Justiça e o Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Nas buscas que se seguiram à abertura da investigação, foram encontradas na residência do arguido provas, desde carimbos de certificação que gravavam “Cartório Nacional de Bissau” em vez do correto “Cartório Notarial de Bissau” e um carimbo com “Portugal” cujo “P” era minúsculo, a certificados de frequência escolar com erros ortográficos como “dizanove” ou “Minsistério”.

“Atuação do arguido deixou os ofendidos numa situação económica difícil”

O cerco em torno de A. C. B. apertou-se entre 2022 e 2023, quando os mesmos governantes e cidadãos guineenses a quem anunciara a bolsa de estudo da associação o começaram a questionar, “por telefone e correio eletrónico, sobre processos de cidadãos guineenses relativos à ‘bolsa de Estudo’ que estavam em curso, designadamente solicitando-lhe explicações e pedindo-lhe ou enviando-lhe documentos ou a devolução do dinheiro que este havia recebido dos cidadãos”, lê-se na acusação.

Apesar de residir em Portugal, sustenta o Ministério Público, o arguido acompanhava os esforços dos seus colaboradores em angariar estudantes na Guiné-Bissau — onde, em 2017, criara uma delegação da sua associação sem que os membros dos órgãos sociais soubessem, tendo concentrado os poderes do conselho executivo em si mesmo. Até fez uma campanha publicitária no país, anunciando direito a alojamento, alimentação e subsídio monetário a estudantes entre os 15 e os 36 anos.

O dinheiro dos candidatos era entregue ao arguido ou aos seus colaboradores, tendo sido encontrados milhares de euros em duas contas bancárias e em três serviços de transferência internacional de dinheiro. Ao todo, A. C. B. conseguiu angariar €100.573,28 com o seu esquema. Segundo a acusação, “agiu, em todas as descritas circunstâncias, na prossecução de um plano que delineou e executou — facilitar a entrada e permanência, de forma ilegal, de cidadãos nacionais da República da Guiné Bissau em território nacional — com o propósito concretizado de obter para si beneficio económico que sabia não ter direito”. Além disso, “ao constituir a Associação arguida, o arguido fê-lo com o propósito concretizado de, através dela, facilitar a entrada e permanência de forma ilegal de cidadãos nacionais da República da Guiné Bissau em território nacional, sabendo que estes não reuniam os legais requisitos para o efeito”, sendo que a organização “nunca desenvolveu qualquer atividade contemplada nos seus estatutos, funcionando de forma irregular, sem financiamento”.

“A actuação do arguido deixou os ofendidos numa situação económica difícil porquanto não tinham meio de se sustentar no país quando vieram para Portugal, ficando em casa de familiares de outros cidadãos guineenses e sem meios para se sustentarem, ficando dependentes da ajuda de terceiros e em difícil situação económica e pessoal”, conclui o MP.

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