Confiança não faltava a Luís Montenegro quando tomou a palavra, pelas 15h00 desta segunda-feira, para falar aos deputados sobre o seu segundo Orçamento do Estado. Era fácil perceber porquê: vindo do embalo das eleições autárquicas, que o Governo e o PSD sentem que consolidaram a sua posição e a sua legitimidade junto do eleitorado, Montenegro sabia que — com a abstenção prometida pelo PS — o documento estaria aprovado à partida. Nas últimas eleições, chegou a até a declarar que os portugueses “mostraram que estão alinhados com os objetivos do país”. Assim, sem pressão, atirou-se a um balanço positivo sobre a sua governação e ainda arriscou uma provocação: cada vez mais ouve a voz “firme e repetida dos portugueses” — nomeadamente, supõe-se, nas urnas — e esta pede que “deixem o Governo trabalhar”.
Por isso, Montenegro quis falar à oposição para dar, por um lado, uma garantia — quem deixar passar o Orçamento do Estado não fica “corresponsável pela governação”. Ou seja: não é anulado enquanto oposição. Mas ao mesmo tempo deixa também um aviso: fica, isso sim, responsável pela “estabilidade” política do país, sendo indesejável que se crie qualquer “drama artificial” à volta deste Orçamento. A “única alternativa” que contribui para a estabilidade — chegou mesmo a declarar, aumentando o tom de pressão — será aprovar este documento.
Para isso contribuía um fator: como disse, este Orçamento inaugura uma nova “doutrina orçamental”, deixando de fora as medidas, propostas e “tudo e mais um par de botas” que não tem a ver com política orçamental, e que no passado fazia do OE o alfa e o ómega da negociação anual no Parlamento.
Desta vez, as normas-extra, que durante a geringonça, por exemplo, tanto serviram para fazer acordos que segurassem ou deitassem abaixo o Governo, ficam de fora. Mesmo que do discurso de Montenegro não tenha ficado de fora nenhuma área governativa, tivesse ou não a ver com Orçamento — incluindo a garantia de que os imigrantes ilegais terão de “regressar ao país de origem”, de forma a dar gás à bandeira da imigração, que disse querer fechar a nível de políticas públicas ao garantir que esse retorno é feito com instrumentos mais rápidos.
Montenegro falou, assim, fazendo um balanço muito positivo sobre o novo Orçamento, destacando os impostos a baixar (num total de 3,4 mil milhões de euros), a dívida a baixar (para valores abaixo de 2009), as medidas para a Habitação e a continuação de isenções e benefícios para jovens nessa área — mas confessando a sua “humildade” ao falar da situação e o Orçamento do SNS, criticada pelos partidos da esquerda à direita e classificada como uma “loucura” e uma borla aos privados (tendo em conta o aumento de 40% nas verbas dedicadas às parcerias público-privadas).
Ainda assim, ouvindo as críticas da oposição, Montenegro não resistiu a atribuí-las ao “sentimento partidário” de quem “não consegue despir a camisola”. E a margem orçamental, fez questão de avisar, será “mesmo muito curta“, sem dar espaço a grandes negociações, e destacando o clima de “incerteza internacional” para justificar essa inflexibilidade.
Isso não significou, claro, que a oposição o poupasse ou que deixasse “o Luís trabalhar” sem mais: o Chega insistiu repetidamente na crítica ao fim do desconto no ISP e no aumento da receita prevista com o imposto sobre os combustíveis, o PS reivindicou um aumento permanente e não extraordinário das pensões e acabou por ser com André Ventura que um bate-boca sobre Salazar e a ditadura valeu a Montenegro um aplauso de pé do PSD (e sentado de deputados do Livre e do PS), no momento de maior consenso (improvável) entre bancadas.

Entre Salazares e manuais fiscais, as diferentes visões do ISP
“Eram precisos três Salazares para pôr Portugal na ordem.” A frase tem quatro dias, mas continuou viva no debate do Orçamento do Estado. André Ventura não gostou do que ouviu da boca do primeiro-ministro e pintou um país bem diferente daquele que Luís Montenegro falou na intervenção inicial. Resumiu-o da seguinte forma: “Portugal é uma referência no mundo inteiro? Só se for de bandalheira e desleixo.”
O foco do líder do Chega até esteve no ISP (Imposto sobre os Produtos Petrolíferos e Energéticos) — lembrando que Espanha bateu o pé a Bruxelas — mas a descrição do país foi suficiente para que o primeiro-ministro não perdesse a oportunidade: não só anda na rua como não tem “saudade” do país de há mais de 51 anos. E ainda acrescentou que Pedro Sánchez não é o seu referencial de política pública. “Se quer acrescentar a três Salazares, três Pedro Sánchez é uma opção sua, mas não é minha”, sublinhou o primeiro-ministro.
André Ventura sentiu-se desrespeitado e pediu a defesa da honra para esclarecer que não tem “saudades nenhumas” dos tempos em que nem sequer era nascido, mas reiterou a mesma ideia, ao referir que “se tivéssemos um, dois ou três Salazares havia menos corrupção”. Foi a deixa certa para Luís Montenegro dar uma lição a Ventura, jurando que não o faria: “A corrupção combate-se democraticamente, no estrito respeito pelos direitos e liberdades. A ditadura, ela própria, é corruptiva da liberdade e não combate a corrupção. A ditadura é ela própria a corrupção.”

Quanto aos combustíveis em si — que Ventura disse que serão um “elemento decisivo” para sentido de voto do Chega — o líder do partido considerou que “o Governo prevê arrecadar mais 187 milhões de euros com o ISP”, concluindo que “ou vai haver um aumento brutal de consumo de gasóleo e gasolina ou vão sacar dinheiro aos portugueses”. Para Ventura, “não vale a pena baixar o IRC [quereria referir-se ao IRS] se vai ao longo do ano sacar mais com impostos nos combustíveis” e apontou ainda que é previsível que os portugueses paguem mais 500 milhões de euros nestes impostos em 2026.
Luís Montenegro assegurou que “não vai haver mais impostos”, ainda que tenha assumido que pode ser necessário “eliminar o desconto” que Portugal tem atualmente no ISP. Porém, garantiu que o que está no OE é a “aplicação do aumento do consumo” dos combustíveis. Quis acabar com o “equívoco” — até por crer que esta é a única “tábua de salvação dos que tentam encontrar qualquer coisa na política fiscal do Governo para ser uma crítica” — explicando que se prevê um aumento do consumo de 4,6% e que é esse valor que permite o aumento da receita previsto.
Mais do que isso, o primeiro-ministro explicou que Portugal já foi “instado muitas vezes” pela Comissão Europeia para acabar com o desconto no ISP que começou em 2022, quando o custo dos combustíveis era “muito maior”, e lembrou que o país “tem resistido a cumprir”. Contudo, assumiu ter “noção de que não [se pode] adiar eternamente uma solução”. Até lá, o Governo pretende que não seja “repercutido” no valor pago pelo consumidor, tentando aproveitar uma fase em que a descida dos combustíveis seja suficiente para compensar.
O caso ainda serviu para um bate-boca em que Hugo Soares foi protagonista. Agradeceu que André Ventura já não seja técnico da Autoridade Tributária porque “confunde” o aumento da receita e com aumento do imposto e, depois de o líder do Chega pedir que fossem distribuídas notícias que davam conta do tal aumento do ISP, o líder parlamentar do PSD voltou à carga para pedir que a mesa partilhasse com os restantes deputados o manual de Política Fiscal do primeiro ano — provocando, mais uma vez, Ventura.
[Chegou o histórico debate entre Soares e Freitas. E o socialista já conseguiu o voto dos comunistas sem “olhar para o retrato” dele. A “Eleição Mais Louca de Sempre” é o novo Podcast Plus do Observador sobre as Presidenciais de 1986. Uma série narrada pelo ator Gonçalo Waddington, com banda sonora original de Samuel Úria. Pode ouvir aqui, no Observador, e também na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube Music. E pode ouvir o primeiro episódio aqui, o segundo aqui, o terceiro aqui e o quarto aqui]
PS aponta “pecado original” do Orçamento e recebe nega de Montenegro sobre as pensões
Há pouco mais de duas semanas, o PS anunciava que tinha aprovado uma “abstenção exigente”. No debate, José Luís Carneiro reforçou que “vai honrar a palavra que deu aos portugueses e ao Governo, contribuindo para a estabilidade do país”. Mas não sem deixar um aviso claro ao Governo: a partir de agora “não tem desculpas para não cumprir os compromissos que tem com todos os portugueses”.
O “combate político” fica para futuro, depois da viabilização orçamental, mas Carneiro garante que “em sede oportuna” será encabeçado pelo PS, com o objetivo de alterar as leis laborais e da área da Saúde.
Regressando ao presente e à discussão orçamental, o secretário-geral do PS apontou o “pecado original” deste Orçamento. “Não tem credibilidade e confirma-o o Conselho das Finanças Públicas”, acusou o socialista, referindo que o documento orçamental “não tem ambição para o país e não responde às necessidades na Saúde, Habitação, dos mais jovens e qualificados”. “Não é o Orçamento do PS”, concretizou.

O líder do PS apresentou então as três principais propostas do partido para alterar o orçamento, mantendo sempre o “esforço” para acreditar nas contas feitas pelo Governo. Começou por contestar a afirmação da ministra do Trabalho que, na sexta-feira, indicou que as pensões mais baixas vão ter recuperação de poder de compra. “Contrariamente ao que afirmou a ministra, eu quero dizer-lhe que as pensões mais baixas terão perda de rendimentos”, apontou Carneiro.
Recordando que o saldo da Segurança Social aumentou mil milhões acima das previsões do Governo no ano passado e atendendo que o saldo pode aumentar de novo este ano, questionou se o Governo está disposto, desde que “sem pôr em causa as contas públicas e a sustentabilidade do fundo da Segurança Social”, a “aumentar a despesa líquida estrutural, até ao limite dos 400 milhões” e se está “disponível para fazer esse aumento extraordinários nas pensões mais baixas em 2026”.
Luís Montenegro não deu azo a grandes dúvidas, assegurando de imediato que “o Governo não está disponível para assumir o aumento permanente das pensões” o que pode “prejudicar todo o sistema de pensões”. Mais do que isso, recordou que no ano passado “o PS decidiu fazer um acordo político com o Chega” e deixou esperanças para que “não o faça nesta ocasião e possa estar ao lado do Governo”. Montenegro assumiu que o Governo pretende, sim, “voltar a pagar um novo suplemento extraordinário” caso haja verba para isso.
A segunda proposta do PS, colocada em jeito de desafio ao Governo, é a de colocar o aumento superior a 4,6% do ISP “a contribuir para diminuir o IVA dos bens alimentares essenciais”. Carneiro pediu ainda que o Governo garanta uma “maior eficiência” no combate às dívidas, que aumentaram mais 900 milhões e são hoje de oito mil milhões. O socialista quis saber se o Governo está disponível para, com o dinheiro recuperado, “procurar promover maior justiça na distribuição de recursos”.
Na resposta ao socialista, Luís Montenegro recusou a “corresponsabilização do PS com a governação do país”. “A circunstância de viabilizar nada tem que ver com as decisões de política pública”, defendeu o primeiro-ministro, frisando que “é um sinal de respeito” pelo compromisso assumido pelos eleitores para a “estabilidade”. “Este Orçamento do Estado não é do PS, não é mesmo”, garantiu, provocando ao dizer que “não aumenta impostos”.
Velhos amigos, novos inimigos: a lição de Montenegro à IL
Há cinco meses, Aliança Democrática e IL faziam juras de amor para um futuro que nunca chegou. Agora, depois da nega dos liberais no Orçamento do Estado, Luís Montenegro não esteve com meias-palavras e não poupou a nova líder da IL. O partido anunciou que vai votar contra o Orçamento do Estado e, no debate, Mariana Leitão não poupou o Governo: assegurou que o Estado “arrecada mais” com este orçamento, que “chamar a isto alívio fiscal é enganar o país”, que “não há estratégia reconhecimento do mérito e continua a haver despesismo”. Em resumo, a líder liberal questionou: “Até quando é que vamos adiar Portugal? Já chega de tática mediática.”
A fórmula da IL não agradou ao primeiro-ministro, que assumiu até “dificuldade em responder” à líder liberal, por considerar que trouxe à discussão questões com uma “marca difícil de respeitar”. Daí para a frente, foi um ataque cerrado a Mariana Leitão. Sugeriu que a liberal só conseguiria fazer melhor com uma “varinha mágica” capaz de levar a cabo construções em “24 ou 48 horas” e enalteceu até que o Governo colocou propostas da IL nas suas medidas.
“Não reconhecer isso e ter este discurso mais próprio de lados mais extremos não fica bem à IL, está a radicalizar a IL”, alertou o chefe de Governo. Perante os ataques, Mariana Leitão atirou, de microfone fechado, que Montenegro deveria preocupar-se com o PSD e Montenegro não se ficou: “A IL está a alinhar com a perspetiva mais radical na sua intervenção política, é radical no discurso, na ação e na decisão do Orçamento do Estado”, prometendo ficar a aguardar a “apreciação” dos portugueses.
Ainda se colocou no lugar de um eleitor liberal, sugerindo que estaria desiludido com o “discurso político absolutamente irrealista” do partido. Num golpe final para com o partido que, em tempos, foi visto como um parceiro perfeito para conseguir uma maioria na Assembleia da República — que nunca chegou porque a IL só conseguiu mais um deputado —, Luís Montenegro atirou: “Se fosse o BE ou PCP ainda compreendia porque têm visão mais radicalizada, mas a senhora deputada vir com este discurso…”
Mário Amorim Lopes ficou responsável por recuperar o tema para defender a postura do partido e para garantir que “a IL é e será radical na defesa da ambição que temos” — “Para fazer mais do mesmo já temos PS e PSD.” Miguel Rangel ainda recordou que a diferença está na “ambição”. Montenegro voltaria a dizer que a IL “não consegue reconhecer o que é factual”. Ficou clara a tensão. No voto, a IL não volta atrás; no radicalismo parece dispensar os avisos de Montenegro.




O Parlamento “esvaziado”, a procura do “milagre” do IRC e as inconstitucionalidades cruzadas
Uma nova “doutrina orçamental” que esvazia o papel do Parlamento em relação ao orçamento. Foi assim que Rui Tavares classificou a tendência minimalista assumida pelo Governo na apresentação do Orçamento do Estado para 2026. “Esvaziar o orçamento na especialidade é fazer aquilo que é o maior ataque da autonomia do Parlamento”, acusou o porta-voz e deputado do Livre.
É também por isso que o “Livre não se abstém”, afirmou Tavares, a garantir que o partido “não se demitirá de ajudar as pessoas, para que estas possam ter casa, para que haja uma economia que funcione e para que haja uma saúde que cuide”.
Montenegro correu em defesa da nova doutrina orçamental, assegurando que o “OE não deve ser o repositório de tudo e um par de botas ou ”uma confusão de políticas públicas”, nem sequer da política fiscal, notando que há outras formas de fazer iniciativas políticas fora do âmbito do Orçamento do Estado.
“O Livre tem todos os instrumentos para apresentar durante o ano as iniciativas que entender, não tem de estar sempre à espera do Orçamento”, realçou o chefe do Governo.
Paulo Raimundo quis ainda classificar este como um “orçamento às ordens de Bruxelas” e questionou o primeiro-ministro em relação aos prometidos efeitos da descida do IRC. “Como é que justifica que com um IRC sempre a descer ainda não tenha acontecido o tal milagre que sempre foi falado. O IRC está em 19% e tudo isto teima em não acontecer”, acusou o deputado comunista.
“O OE é mau por aquilo que contém e porque é instrumento de um política desastrosa”, considerou ainda o comunista. E deixou o aviso para as restantes bancadas: “Quem permite que este OE vá em frente pode encontrar todas as justificações, mas não se livra de ser cúmplice da política que está em curso.”
Já Mariana Mortágua aproveitou para cruzar inconstitucionalidades. “A taxa sobre a banca é inconstitucional o montante e tem que ser devolvido, mas a lei da nacionalidade também é inconstitucional”, notou. “Se dizem que não podem aumentar estruturalmente as pensões então não baixem estruturalmente os impostos sobre os lucros das grandes empresas”, apontou ainda a deputada do Bloco de Esquerda.
Virando-se para a habitação, Mortágua considerou ainda um choque que o Governo considere que uma renda moderada são 2.300 euros. “Onde há mais construção é onde os preços sobem mais”, afirmou ainda, referindo-se às zonas de empreendimentos de luxo. E foi direta a lançar a questão a Montenegro: “Está contente com o que fez?”
Após um compasso de espera para uma troca de impressões com Miranda Sarmento e Leitão Amaro, Luís Montenegro respondeu a Mariana Mortágua: “Não recebemos lições de ninguém.” Recuperando o tema do aumento do Complemento Social para Idosos, o primeiro-ministro ripostou: “Temos de ouvir daqueles que estiveram oito anos no Governo que não temos sensibilidade social.”
Enumerou depois as decisões tomadas pelo Governo para aumentar pensões e complementos através de “centenas de milhões de euros todos os anos”. “Estamos aqui para subir as pensões mais baixas, assim que tivermos o país a crescer economicamente. Não estamos aqui para estragar o caminho a meio”, alertou ainda.
Inês Sousa Real apresentou como medida de minimização do fim dos descontos do ISP a aposta nos “passes sociais gratuitos para garantir a justiça fiscal” e mencionou ainda um corte de 480 milhões de euros neste orçamento na Habitação. Como é habitual, apelou à descida do IVA da alimentação animal e cuidados veterinários. A porta-voz do PAN propôs ainda complementos dirigidos aos profissionais de saúde, incluindo o “alargamento da creche feliz para um programa noturno”, dando resposta a estes e a outros profissionais. Em relação à área ambiental, notou também o “corte de 9 milhões no ICNF” e questionou o Governo sobre o que pode fazer neste âmbito.
A representar a região autónoma da Madeira, o deputado do JPP, Filipe Sousa, questionou o Governo sobre como é que este “prevê assegurar que todas as regiões do país tenham igualdade de acesso aos recursos no investimento público”, incluindo as regiões autónomas.
O deputado único quis ainda saber se o Governo, que tem um grupo de trabalho para a sustentabilidade do futuro da Segurança Social, “está em condições de garantir que a reestruturação não passa por privatizar a Segurança Social”.
Montenegro respondeu com clareza: “Não temos nenhuma intenção, que fique claro, de privatizar a segurança social. Isso é uma conversa repetida, mas que é apenas retórica política. Não é mais do que isso”.