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Portugall in

Ao fim de tantos séculos, continuamos a achar que os cabos são protegidos por seres míticos. Em quinhentos, guardado pelo Adamastor; agora, vigiado por uma equipa de manutenção especializada.

José Diogo Quintela
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Na semana passada, foi editado o álbum Astérix na Lusitânia. Depois das suas aventuras entre vários povos, há anos que esperava o dia em que os portugueses estrelassem nas aventuras do diminuto gaulês. Quando era miúdo, foi nos livros do Astérix que descobri os diferentes estereótipos dos povos. Aprendi que os corsos não esquecem uma ofensa à honra da família, que os belgas gostam de comer e beber bem, os ingleses são educados, os vikings são corajosos e os alemães são rígidos. Assim que peguei no livro, folheei-o com impaciência infantil, ansioso para perceber qual dos nossos traços peculiares tinha sido destacado na caricatura. E foi com grande desilusão que constatei que os autores se enganaram redondamente no retrato que fazem de nós. Sim, estão lá o fado, a saudade, o bacalhau. Mas falta aquela que é, comprovadamente, a qualidade que melhor nos define: o vício do jogo.

Fala-se muito dos chineses, que adoram apostas, mas não há dúvida nenhuma que os portugueses arriscam as maiores paradas. Um chinês que queira apostar, dirige-se a um casino. Já um português, basta estar a respirar em território nacional. Quem não acredita só precisa de ler o Relatório Preliminar do acidente do Elevador da Glória e confirmar que, se Macau é uma cidade cheia de casinos, Portugal é um casino cheio de cidades. Isto não é bem um país, é uma partida de Poker. Do Minho ao Algarve, devia estar revestido a feltro verde. A chatice é que, ao contrário do que acontece nos casinos verdadeiros, em Portugal não há a hipótese de os jogadores solicitarem para serem barrados à porta. A partir do momento em que estamos no país, já estamos a jogar.

Segundo a análise do Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários, o cabo que rebentou não era o cabo apropriado para um elevador daquele tipo. A Carris, quando substituiu o cabo do Elevador de Santa Justa, mandou vir um cabo igual para o Elevador da Glória, apesar de serem máquinas completamente diferentes. Logo na sua instalação, percebeu-se que o cabo não era adequado, até porque cedeu 4,5m na primeira utilização. Ao verificar-se isso, em vez de trocarem pelo cabo apropriado, cortaram o excedente. É natural: a história de Portugal, principalmente nas Descobertas, está cheia de episódios em que dobramos cabos. Aliás, um dos momentos ilustres da nossa história foi a dobragem do cabo das Tormentas, que passou a ser da Boa Esperança. Este momento, dos mais caricatos, é parecido: em vez do mesmo cabo tratado por dois nomes diferentes, temos dois cabos diferentes tratados como se fossem o mesmo. Ao fim de tantos séculos, continuamos a achar que os cabos são protegidos por seres míticos. Em quinhentos, guardado pelo Adamastor; agora, vigiado por uma equipa de manutenção especializada.

Não consigo criticar o desleixo. Eu também sou assim quando monto móveis do IKEA. Se a prateleira não está a encaixar como as instruções indicam, não tenho pachorra para desmontar e retroceder até ao passo onde me enganei. Pego num martelo e enfio a prateleira à bruta, se for preciso com cola e pregos extra. O relatório refere ainda detalhes como o freio manual nunca ter sido testado anteriormente ou o processo de formação dos técnicos de manutenção ser assente em “passagem de conhecimento prático em ambiente de trabalho (on-the-job training), sem recurso a acções de formação teórica ou cursos técnicos específicos  nos vários equipamentos intervencionados”. O típico desenrascanço. É giro sermos assim, desde que tenhamos a noção que “desenrascar” é muito parecido com “desencarcerar”.

O acidente não foi uma surpresa. Surpresa foi não ter acontecido antes, e várias vezes. Se a manutenção dos equipamentos na Carris – uma empresa que transporta milhares de passageiros todos os dias, na capital –  é feita desta forma, imagino como será feita a de outras infraestruturas por Portugal fora. Se calhar, está na altura de deixar de dizer manutenção e passar a dizer pedotenção, porque é uma actividade feita com os pés.

Claro que nem todo o tipo de fiscalização funciona mal no nosso país: de certeza que os gelados que o vendedor ambulantes oferece no fim da Calçada da Glória tem a ASAE em cima. Não queremos que os turistas que vêm aos trambolhões lá de cima possam comer um sorvete de framboesa que não cumpre as várias normas europeias que regulam as condições de conservação em frio.

Agora percebo melhor as filas intermináveis nas chegadas do Aeroporto de Lisboa. Além de todas as informações que os técnicos de estrangeiros e fronteiras têm de recolher sobre os visitantes, ainda gastam tempo a dar-lhes as fichas para apostar e a despedirem-se com um rien ne vas plus. Se o Governo está com dificuldade em recrutar para a AIMA, pode passar a contratar croupiers.

Como resolvemos esta questão? Podemos impôr algum tipo de restrições, como fazemos com a raspadinha e outros jogos. Limitar a publicidade, por exemplo. O problema é que, se fizermos isso, temos de fechar o Turismo de Portugal.