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"Burn Burn Burn": os livros queimam, mas neste palco ninguém os quer ver a arder

A partir de “Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury, a companhia Os Possessos apresenta na Culturgest, em Lisboa, um espetáculo sobre o apagamento da História e a aniquilação do pensamento crítico.

Ricardo Ramos Gonçalves
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Em 1957, Lawrence Ferlinghetti foi chamado à barra do tribunal para um julgamento que opôs o Estado americano ao mítico poeta e editor da City Lights. Em causa estava a publicação de Uivo, o poema longo de Allen Ginsberg acusado de obscenidade. A tentativa frustrada de impor limites à liberdade artística e de expressão, restringindo a circulação do livro, bem como a sua leitura, tornar-se-ia num momento para sempre evocado. Ao longo da história do livro (ou, melhor dizendo, da partilha do conhecimento), foram muitos os episódios em que se procurou limitar o acesso à leitura, chegando mesmo à destruição e queima de livros. Mas foi também em muitos desses momentos que se gerou o efeito contrário: não só se procurou proteger as obras dessa perseguição, como em diversos casos a repressão e censura serviu de mote para que fossem ainda mais lidas e partilhadas. É este o ponto de partida de Burn Burn Burn, a peça escrita a quatro mãos por Catarina Rôlo Salgueiro e Isabel Costa, da companhia Os Possessos, que sobe agora ao palco da Culturgest, em Lisboa, de 30 de outubro a 1 de novembro.

Logo no começo, as duas criadoras enumeram exemplos desta caça aos livros. Numa cabine de som, como se se tratasse do momento de gravação do episódio de um podcast, somos elucidados sobre uma história milenar e trágica. Do incêndio da Biblioteca de Alexandria até à retirada e censura de livros nos Estados Unidos da América da atualidade, recorda-se igualmente a queima de livros na Alemanha nazi, no período da Inquisição Espanhola ou no regime de Pinochet no Chile. O mesmo exemplo, mas em forma romanesca, surge em Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. Publicada em 1953, esta história de ficção científica retrata uma sociedade ditatorial na qual os livros são proibidos e os bombeiros se dedicam a queimá-los. Mas voltaremos a esta história e às suas personagens.

Em plano paralelo, mas convergente, reúne-se em círculo um grupo de estranhos numa biblioteca pública. É mais uma sessão de um clube de leitura onde se lê, justamente, passagens de Fahrenheit 451. “Um livro é uma arma carregada na casa ao lado. Queima-se. Tira-se a bala. Abre-se uma brecha no espírito do homem”, escuta-se por entre as leituras. Mais de setenta anos passados sobre a publicação do livro, a discussão ainda persiste. O que se pode ou não escrever? Quem decide o que se pode ou não publicar? É justo publicar o livro de um autor que esteve do lado errado da história? Como separar o autor da obra?

As questões são colocadas em palco, mas também nos instigam como espectadores. A história está, afinal de contas, repleta de exemplos que continuamos a debater na atualidade: devemos ler o Mein Kampf, de Hitler? Publicar Céline, Ezra Pound ou Knut Hamsun, conhecidos pelo seu posicionamento antissemita e pró-fascista? Noutro exemplo importante abordado na peça, recorda-se o julgamento de Charles Baudelaire, em 1857, acusado e condenado por indecência e ofensa à moral pública e religiosa, pela publicação de As Flores do Mal. O debate é complexo e interminável.

No romance de Bradbury o livre-arbítrio e os gostos pessoais são formas de dissidência. Os rebeldes memorizam obras-primas para as preservarem e passarem esse conhecimento às novas gerações. Dedicam dias a memorizar Faulkner e Whitman como gesto de resistência perante um lugar hedonista, dominado pela tecnologia anti-intelectual, onde não há opiniões diversas. Não sendo uma adaptação da história que se narra no livro, Burn Burn Burn inspira-se no enredo e os membros deste clube de leitura tornam-se nos protagonistas de Bradbury. Guy Montag, o bombeiro protagonista, entra em cena, tal como Clarisse McClellan, a jovem sonhadora que salva livros da sua destruição, ou Capitão Beatty, chefe dos bombeiros que tenta educar todos à sua volta sobre a importância da tarefa que todos os dias levam a cabo.

Mas mais do que uma adaptação fiel das ideias de Bradbury, o espectáculo fala-nos sobre o apagamento da História e da aniquilação do pensamento crítico. Reflete sobre as manobras de distração dos extremismos para embrutecer e polarizar a sociedade, num piscar de olho ao que, infortunadamente, vemos ainda hoje suceder no contexto político e social contemporâneo. A literatura, recordando Georges Bataille, é também esse lugar onde o “mal” se revela – não o mal moral, mas o mal como transgressão e liberdade. Tal como Bataille defendia, escrever é enfrentar o interdito e olhar de frente a escuridão humana. Por oposição censurar é, por isso, uma tentativa de suprimir essa confrontação.

Isabel Costa explica que a ideia do espetáculo nasceu “do desconforto sentido em 2025”, numa sociedade cada vez mais “polarizada e onde existe uma dificuldade crescente em conversar no trabalho, mas também entre amigos e familiares”. “Estas discussões cada vez mais acesas e a dificuldade de diálogo foram o ponto de partida. A ideia de inflamação e a forma como passa das decisões políticas para dentro das nossas casas e das nossas vidas”, explica.

Perante uma sociedade inflamada que nos rodeia, Burn Burn Burn surge então como espelho e joga com muitas das questões mencionadas, colocando-nos – intérpretes e espetadores – numa situação limite. “As pessoas não vão estar sempre de acordo e isso faz parte do viver em sociedade, mas levando a ficção até ao limite propomo-nos a ver o que poderia acontecer. Será que era melhor e que conseguimos viver mais pacificamente se não tivermos opiniões distintas e não as discutirmos? É isto que o espetáculo se propõe a pensar”, sublinha Catarina. Através, claro está, do humor e da sátira, as discussões agitam as chamas que se vão criando entre o elenco composto por Beatriz Brás, João Pedro Mamede, João Pedro Vaz, Leonardo Garibaldi, Leonor Buescu e Tomás Alves.

“Mesmo hoje há livros a serem censurados, palavras a serem retiradas, e há muita coisa a ser posta em causa e filtrada de forma a ‘proteger’ as pessoas, como se a pluralidade de opiniões e interesses fosse uma ameaça”, sintetiza Catarina Rôlo Salgueiro. No meio de toda esta reflexão escuta-se Ring of Fire, de Johnny Cash, e voltamos a pensar no livro como arma que, por mais que tentem destruir como objeto físico, “não nos tornará cegos”, como dizem as palavras de Salman Rushdie.

“Mesmo em relação a certas questões, a verdade é que também ficamos na dúvida ou posicionamo-nos de forma diferente. Às vezes, o que faz falta são ferramentas para as pessoas poderem dialogar. Porque estamos a ficar cada vez menos ligados à literatura, e isso tira-nos a capacidade de discutir de forma saudável”, completa Catarina. Perante um cenário repleto de livros – uma metade queimada, a outra por queimar –, trata-se de uma alegoria sobre o perigo de voltarmos a um tempo marcado por um certo obscurantismo.

Estamos, afinal, no mesmo mundo que há menos de 500 anos via nascer o Index Librorum Prohibitorum, lista de publicações consideradas heréticas, anticlericais ou lascivas e proibidas pela Igreja Católica, mas também naquele em que grupos de monges copistas, membros da resistência ou meros funcionários de bibliotecas salvaram livros (e obras de arte) nos mais diversos contextos de conflito, desde a Segunda Guerra Mundial à Guerra dos Balcãs, na década de 1990.

“Durante os ensaios, falámos muito da ideia de músculo como algo que não é só físico. Temos de viver numa sociedade musculada para discordar, para que as pessoas não entendam as suas opiniões como leis. Também é uma questão de sobrevivência da nossa convivência em comum. É uma questão lógica e política”, sustenta igualmente Isabel Costa. Chegados a este momento, dizem as encenadoras, Burn Burn Burn é, no entanto, um espetáculo esperançoso, acreditam – agarrando novamente o tom deixado por Bradbury – mesmo no tempo contraditório e opaco em que vivemos.

Continuar a ler, a adquirir livros e permitir que os autores se possam expressar livremente nas suas páginas “é essencial”, ouvimos. Como se costuma dizer (numa imagem frequentemente atribuída a Faulkner), a literatura tem o efeito de um fósforo aceso no meio da noite: ilumina pouco, mas revela a vastidão da escuridão em redor. No caso de Burn Burn Burn, e escutando uma das suas personagens, basta-nos “ver uma faísca na escuridão”.