O ano de 2025 assinala os 50 anos do memorável livro Libertação Animal, de Peter Singer. Mas serão 50 anos de libertação animal ou 50 anos do humano a tentar desesperadamente manter a venda nos olhos? Esta questão reforça a necessidade de revisitarmos a obra, que se tornou a luz orientadora de um movimento baseado na ideia de que os animais não humanos devem ser tratados como seres merecedores de consideração e não como objetos à nossa mercê. Singer alertou-nos para práticas que nem imaginávamos e iluminou-nos para uma realidade que estava a ser ignorada: a da indústria animal.
Para perceber melhor a revolução que o autor inspirou, é importante entender alguns conceitos centrais do seu pensamento. Singer, filósofo utilitarista e professor em Princeton, defende que, no cálculo moral de uma ação, devemos ter em conta também os interesses dos animais não humanos, pois, como seres sencientes, sentem dor, prazer e outras preferências como estar perto da sua família ou ter liberdade. Sabemos que eles são sencientes e têm preferências porque vemos neles as mesmas reações que vemos em nós quando somos privados delas: gritam quando sentem dor, aumentam os níveis de stress quando são desprovidos de liberdade e apresentam variações em frequência cardíaca e pressão arterial, entre outros sinais.
Para Singer, igual quantidade de dor deve ter igual peso moral, independentemente da espécie. Isso não significa que dar um estalo a uma criança ou a um cavalo seja equivalente: a criança, por ter a pele mais sensível, sentiria mais dor; já para o cavalo sentir o mesmo nível de dor, seria necessário um golpe muito mais forte ou com um objeto mais duro. Para o autor, se não tivermos em igual consideração quantidades equivalentes de dor em seres de espécies diferentes, estamos a cair no especismo: discriminar um ser apenas por pertencer a uma espécie diferente.
Na prática, Singer apela a algo fácil de atingir. Ele defende que devemos dar valor suficiente aos interesses dos animais para que, em situações em que o seu sofrimento seja drasticamente superior ao benefício humano, essa prática seja abandonada. Além disso, Singer apela para o fim do sofrimento animal que não aparenta ter qualquer propósito.
Meio século depois, a realidade que Singer denunciou continua a existir, e em muitos casos numa escala ainda maior, já que a produção animal tem vindo a aumentar, apesar dos avanços políticos, sobretudo na Europa. Embora a obra tenha dado início a uma transformação social significativa, é inegável que uma parte da humanidade insiste em manter os olhos fechados ao que já sabe. Não acredito que essa resistência venha de uma escolha consciente para causar o maior sofrimento possível a outros seres sencientes, mas antes da facilidade em ignorar essa realidade, por causa da falta de transparência na indústria animal e da vontade natural em refugiar-se no conforto da tradição.
Ainda assim, muitos não fecharam os olhos e deixaram que a obra plantasse a semente para a transformação social que se seguiu. Apesar de o tema não se ter tornado “mainstream” de um momento para o outro, ganhou visibilidade e força graças ao trabalho contínuo de manifestações, à adoção e divulgação da dieta vegana por celebridades como Natalie Portman, Lewis Hamilton, Chris Smalling e Billie Eilish, entre outros (esta última chegou até a implementar, durante o seu tour em 2025 na O2 Arena, em Londres, uma política de oferecer apenas comida vegana ao seu público).
Também contribuíram para este crescimento o aumento do debate sobre o tema nas redes sociais, destacando-se figuras como Ed Winters, autor de This Is Vegan Propaganda (And Other Lies the Meat Industry Tells You) e How to Argue With a Meat Eater (And Win Every Time), e, por último, a crescente disponibilidade de conteúdos cinematográficos e documentais que expõem a realidade da indústria animal, como é o caso do filme Earthlings, que ajudou a dar a conhecer o tema a um maior número de pessoas.
No entanto, o crescimento do movimento não foi visto de forma positiva pela maioria da população. A sua rutura com a tradição e o conforto tornou-o um tema bastante divisivo ao ponto de se chegar a criar um preconceito contra as pessoas que seguem a dieta e a divulgam para o resto do mundo, como é provado por três estudos feitos por Cara C. Maclnnis e Gordon Hodson, nos quais testaram de forma empírica se existe algum preconceito contra veganos e vegetarianos. Concluíram que este grupo é mais malvisto do que outros grupos, sendo apenas os adictos a drogas alvo de maior discriminação – até em círculos académicos.
A tendência é ainda mais forte em grupos e ideologias de direita, o que, aos meus olhos, reflete o valor que dão à tradição, apesar de reconhecerem o sofrimento animal. Os autores disseram que, ao contrário de outras formas de discriminação, como o racismo ou o sexismo, a negatividade para com os veganos não é considerada um problema na sociedade – pelo contrário, é socialmente aceite.
Como conclusão, sugerem que esta discriminação existe devido à “forte ameaça simbólica que o movimento representa ao desafiar o status quo principalmente no ocidente, sendo que as normas culturais prevalentes favorecem uma dieta em que se consome carne”. Por outras palavras, o simples ato de dizer “não” à carne ultrapassa a esfera da alimentação e torna-se uma chamada de atenção para as tradições que a sociedade insiste em proteger. Uma chamada de atenção para a qual o Ocidente continua pouco recetivo.