Penso que não cegámos, penso que estamos cegos. Cegos que veem, cegos que, vendo, não veem. (Ensaio sobre a cegueira – José Saramago)
As organizações portuguesas de trabalho, e porventura as públicas de uma forma mais atentatória em função das suas obrigações, são muitas vezes, devido às más práticas e má gestão, máquinas de produção de ressentimento. E, por isso, é natural que, de quando em vez, alguém diga (entre outras pragas piores): “Quem dera que um dia isto dê para o torto ou que estoire mesmo que é para se ver!”. Podemos neste tipo de frases dar importância à violência desejada ou antes ao forte desejo de visibilidade geral de algo que é tão óbvio mas apenas para alguns. Que é para se ver! – como quem diz para que finalmente a sociedade e quem de direito possa ver o que se passa. Mas há que perguntarmo-nos caso a coisa estoirasse, será que se veria tudo o que havia para ver? O caso do Elevador da Glória é uma espécie do que se chama em ciência ‘experiência ex post facto’. Não podendo na área das ciências sociais aplicadas (por exemplo Gestão ou Administração Pública) fazer um cocktail de más práticas e má gestão a ver o que acontece…por vezes isso dá-se na realidade como foi o caso. Ora devemos aproveitar tais situações, como experiências ex post facto, para realmente ver.
Mas ainda assim, é necessário querer ver! Propositadamente, quase todos querem conter as suas análises aos ‘cabos substitutos’ como elemento expiatório por excelência. Esta é uma forma demasiado portuguesa de esconder o lixo debaixo do tapete, que evidencia o respeitinho pelo poder e um pudor quase religioso em dizer mal de quem manda. No máximo fomos aos actos mecânicos, às falhas na manutenção. E tal é tão verdade que foi logo interpretado pela Administração da Empresa, demitindo o Director de Manutenção. Pois se era isso que muitos jornalistas e comentadores convidados (que se assumiram como técnicos) estavam a dar a ver! O pudor em ler o relatório como uma evidência clara (que é) de continuas más práticas e má gestão foi escandaloso. O facto do Conselho de Administração não ter sido demitido em função do relatório é consequência e cumplicidade desse clima cultural de paz podre muito português. Mas, para além disso, que deveria ser óbvio e não foi, ver o que se passou com a gestão da Carris com clareza significa ver além da Carris.
O caso do elevador da Glória é, claramente, uma história moral. Quero dizer com isso que ela não só não é um acaso como é a evidência, a vários níveis, do que está a correr mal no país, nas suas instituições e, particularmente, na Administração que incumbe ao Estado ou suas derivações, enquanto agentes principais do poder público. Pouco foi dito a esse nível. O nível de abstracção máximo que conseguimos, na maior parte dos casos quer como comentadores, jornalistas ou especialistas, é que outros elevadores poderão ter os mesmos problemas. Mesmo a referência a todos os demais elétricos que circulam não estarem sujeitos a qualquer supervisão independente foi muito pouco divulgada. Não há como proteger o público mantendo-nos a todos na ignorância!
Em abono da verdade, li um texto referindo que este caso cria uma percepção de insegurança em relação à gestão pública e ao Estado em geral. Quer dizer, se uma empresa pública funciona com tão más práticas e tão má gestão, porque que pensar que tal é um caso único? Mas essa linha de análise foi escassa. No entanto, o Relatório Preliminar logo no seu preâmbulo refere a importância de informar o público. Ora, seguindo esta linha e considerando que muitas instituições públicas podem sofrer de problemas similares à Carris, a ‘governança pública’ implicaria que todos tivéssemos acesso a relatórios feitos por entidades independentes em relação a todos os serviços públicos (de transporte, administração, educação, saúde, justiça, etc.) pois trata-se da gestão de bens/serviços comuns. A pergunta a fazer-se é quantas tragédias estão a ocorrer no momento em todas as instituições, das quais a informação nos é sonegada, ainda que muita gente no interior das mesmas saiba o que se passa. Fico, para dar um exemplo óbvio, sempre alarmado com a positividade das notícias sobre o nascimento de crianças em ambulâncias ou mesmo na rua!
Para muitos dos que viram as notícias, só uma coisa parece certa na tragédia da nossa Glória: os cabos eram cabos substitutos. E, portanto, discutiu-se tecnicamente que tipos de cabos substitutos eram… Se, tivéssemos um pouco mais de abstracção e nos tivéssemos centrado na substituição enquanto acção e, porventura, enquanto padrão talvez víssemos mais e mais longe. A substituição (pelos vistos no início do século XX) de um sistema mecânico hidráulico e de cremalheira por um sistema elétrico e de cabos sem ter em conta o funcionamento (ou não) de sistemas complementares/redundantes (os freios das carruagens) e, portanto, sem ter feito os devidos testes; os técnicos internos substituídos por consultores/técnicos externos; um (potencial) gabinete de I&D de engenheiros mecânicos (existentes) substituído por uma manutenção de meros ‘cabos às ordens’ que executa simplesmente; o registo no papel da manutenção como substituto da mesma e sem supervisão e não seguindo padrões, tendo validações dispares; o eventual escrutínio técnico (IMT) substituído por um não escrutínio, a competência substituída por gestores de nomeação política… Não parece que há demasiadas substituições? Não parece que o problema não é dos cabos que foram substituídos e do seu material em concreto, mas antes da substituição em si como padrão organizacional e mesmo social?
E o problema de tudo isto é que, como se vão dando pequenos milagres todos os dias (cujas razões não podem deixar de ser analisadas pois…’não há milagres’), quando a tragédia se dá a responsabilidade e a culpa de facto tem várias camadas: é difusa portanto, o que dá mesmo jeito. De facto, há que ter em conta todos os muitos momentos em que houve substituições sem que se acautelasse devidamente o básico do básico: a eficácia e eficiência dos sistemas, sejam eles mecânicos, orgânicos ou o que sejam. As substituições no caso de Elevador da Glória são apenas um espelho de um problema maior e reduzi-lo a si mesmo é, tão só, seguir um discurso que utiliza alguns factos para impedir de ver a narrativa.
De facto, as várias substituições, para além dos cabos, e que o Relatório da GPIAAF refere claramente, devem ser destacadas pois elas são redundantes noutras instituições: talento e competências relegadas e substituídas (neste caso concreto da engenharia) pelo mero gerencialismo; governança pública (execução reflexiva dos funcionários) substituída por mero protocolo de execução; memória institucional ausente e substituída por mera prática repetida; cultura justa inexistente substituída por reportes ocasionais quando afectavam o serviço; plano de gestão de segurança ausente e substituído por uma prática de meros ajustes; sistema de escrutínio (IMT) substituído por uma mera ausência; uma certificação ISO 9001 que não se percebe como vigora… . Tudo isto revela que foi o próprio interesse público a ser efectivamente substituído. Ou seja, neste caso os passageiros, noutros os estudantes, os doentes, os utilizadores, etc não têm qualquer valor num quadro de gerencialismo. É isso que acontece quando as pessoas, as competências, o valor do trabalho é substituído pelo mero gerencialismo. E a pergunta fulcral é quanto gerencialismo existe nas empresas públicas e na administração indirecta e mesmo directa do Estado? A esta luz de substituições, a narrativa dos cabos substitutos é apenas um resultado óbvio de todas as demais. Não é ele a verdadeira causa do acidente mas tão só o elo que rompeu de uma cadeia já literalmente descarnada.
O gerencialismo é uma administração sem cuidado — uma racionalidade que substitui o sentido pelo desempenho e o compromisso pelo lucro. Ao tornar tudo substituível e descartável, acaba não tendo adequado desempenho nem lucro! A substituição e o descarte é um padrão social que se repete em Portugal, mormente em instituições públicas: a memória institucional pelos ajustes da conveniência, o conhecimento pela esperteza ou mesmo pela ignorância, os competentes pelos incompetentes coniventes, a governança pela manipulação ou mesmo pelo autoritarismo, o trabalho pela burocracia ou mesmo pelo simulacro…. O talento e as competências emigram de Portugal e os que ficam com valor procuram o trabalho remoto e no privado. E fazem bem! Na função pública, em concursos, amigos ou fiéis substituem o mérito; nas carreiras, professores, médicos e outros profissionais estão a ser substituídos por tarefeiros de vários tipos e nos próprios administradores o padrão é o ‘regime de substituição’. Assim, depois da experiência ex post facto do Elevador da Glória, dizer que o país está preso por fios não é já só uma ‘maneira de dizer’.