O Bloco de Esquerda nasceu há pouco mais de 25 anos e corre o risco de definhar inexoravelmente ou mesmo de desaparecer. Porque o problema do Bloco está longe de ser Mariana Mortágua, mesmo se a actual líder simboliza bem não só os pecados como as falácias de que se alimentou anos a fio este verdadeiro OPMI — Objecto Político Mal Identificado.
Num primeiro momento o Bloco, quando juntou o trotskista Francisco Louçã, o maoista Luís Fazenda e o ex-comunista Miguel Portas, parecia corresponder a um primeiro passo para unir umas esquerdas eternamente desavindas – e esquerdas que iam de eleição em eleição como quem caminha de frustração em frustração. Em tempos longínquos, a UDP de Fazenda conseguira eleger deputados (nunca mais de um de cada vez), mas o PSR de Louçã nem com campanhas porta-a-porta em Dona Maria, a pequena aldeia sem água que lhe teria podido dar a eleição, logrou chegar ao Parlamento. E quanto à Política XXI, ainda era pouco mais do que uma associação de dissidentes do PCP e mais alguns compagnons de route.
Quem quer que conhecesse a história das inúmeras declinações das extremas-esquerdas comunistas, e das suas insuperáveis e rancorosas divergências, mais depressa via nessa unidade um esforço para salvar do abismo um espaço político gravemente ferido pelo colapso, no final desse século de extremos, da ilusão soviética. E quem quer que tivesse reparado na contradição de um partido que integrava dissidentes “de direita” do PCP fazer questão de sentar os seus primeiros deputados à esquerda do PCP, teria porventura visto pouco futuro político no Bloco.
Enganar-se-ia. A política faz-se muito dos partidos e das suas circunstâncias, e o Bloco acabou por surgir no momento ideal para depressa ganhar alguma projecção. Primeiro, porque um PS ainda liderado pelo católico António Guterres lhe entregou de bandeja os “temas fracturantes”, o que lhe permitiu chegar a um eleitorado mais sensível a “causas” num tempo de recuo das ideologias. Depois, porque não tardaria a ter de se falar de austeridade, de pântano ou de “país de tanga”, o que associado a uma sucessão rápida de eleições (1999, 2002, 2005) permitiu ao Bloco chegar rapidamente a um grupo parlamentar que se visse.
Este crescimento assentava contudo num engano e escondia uma enorme fragilidade.
O engano derivava de o Bloco quase sempre ter conseguido esconder a sua natureza revolucionária e anti-capitalista, uma natureza que Louçã não negava, que ficava bem evidente nos “campos de férias” que organizava, mas de que boa parte dos seus eleitores, porventura até alguns dos seus quadros, nem se apercebia.
A fragilidade é fruto desse engano: o Bloco, ao contrário do PCP, sempre foi muito mais um partido de eleitores do que um partido de militantes, com a particularidade de ter um eleitorado sobretudo urbano, com rendimentos acima da média, muito volúvel e por isso propenso a mudar o seu voto e, paradoxos dos paradoxos, um eleitorado que, nos seus valores, era em média mais liberal do que o eleitorado do partido que então se situava mais à direita, o CDS. (Concretizando, para que não fiquem dúvidas, o que escrevo vem no estudo de Pedro Magalhães e do João Cancela sobre As Bases Sociais dos Partidos Portugueses, onde se escreve, por exemplo, que “o eleitorado do BE distingue-se claramente do dos outros partidos de esquerda pela sua heterogeneidade, fruto da atractividade que tem tido para as classes médias assalariadas”.)
Este eleitorado não “mingua” de eleição para eleição, esvaindo-se como se tem esvaído o eleitorado do PCP – este eleitorado oscila entre grandes entusiasmos e deserções bruscas, como sucedeu primeiro em 2011 (num aparente castigo à forma como Louçã recusou reunir com a troika) e agora a partir de 2021, no momento do colapso final da geringonça, quando o Bloco passou num ápice de 19 para cinco deputados.
Durante alguns anos a liderança conjunta de Catarina Martins/João Semedo, e depois de Catarina a solo, permitiu continuar a disfarçar a duplicidade de um partido nascido à esquerda do PCP mas com eleitores sociologicamente à direita do PSD e do CDS. A construção mediática do partido das três caras “engraçadinhas” (para usar a famosa expressão de Jerónimo de Sousa), isto é, do partido de Catarina, Mariana e Marisa, também não ajudou a que se percebesse que algo não batia certo quando de um lado se falava de um Bloco “social-democrata” (Catarina) e do outro se proclamava que “temos de perder a vergonha e ir buscar a quem está a acumular dinheiro” (Mariana).
A queda vertiginosa do Bloco nas últimas quatro eleições que disputou (duas legislativas, umas europeias e umas autárquicas) são o sinal de que a fórmula da amalgação e do disfarce, que funcionou durante tantos anos, está esgotada. Para os eleitores volúveis do Bloco há, no mercado do voto, ofertas mais tentadoras: mais frescas se pensarmos no Livre, mais úteis se regressarmos ao PS, mais genuinamente liberais se olharmos para a IL. Para esses eleitores, arrisco dizer, o problema não é Mariana ou o radicalismo de Mariana, pois Catarina Martins também esteve mal nas europeias e das autárquicas não emergiu qualquer nome. Para esses eleitores o problema é a percepção de que esta fórmula se esgotou. O mesmo já aconteceu com outros, em Portugal e na Europa.
De resto vale também a pena olhar para a Europa para tentar perceber se de lá chega qualquer sinal de esperança para as esquerdas radicais – só que as notícias não são lá muito boas.
Aqui ao lado, em Espanha, a formação política mais parecida com o Bloco é o Podemos, mas este é hoje uma sombra do que já foi nos tempos em que sonhava tornar-se um partido maior do que o PSOE. As sondagens colocam-no nos 4%. Saltando para a Grécia, onde um partido da mesma família, o Syriza, chegou a ser governo, as intenções de voto estão no mesmo patamar. Ou seja, na Europa os dois partidos ou movimentos com mais pontos de contacto com o Bloco, e que muito o inspiraram em tempos idos, estão pelas ruas da amargura.
Quer isto dizer que não há outros caminhos? Talvez existam, não sei é se feitos à medida do que o Bloco é e representa, se bem que alguns desses caminhos possam parecer tentadores. Em França a maior força à esquerda, a França Insubmissa, está bem nas sondagens mas é dirigida por Jean-Luc Mélenchon, um antigo ministro socialista. Na Alemanha há dois partidos à esquerda a subir nas sondagens, o Die Linke e a Lista Sahra Wagenknecht, sendo que ambos têm em comum o terem contado ou contarem com a militância de um antigo líder social-democrata e antigo ministro das Finanças, Oskar Lafontaine. Finalmente no Reino Unido parece estar a formar-se um partido mais radical à esquerda dos trabalhistas, um partido que tem tido alianças pontuais com eleitos islamistas, sendo que aí encontramos um outro antigo líder socialista (ou trabalhista), neste caso Jeremy Corbin.
Por outras palavras: na Europa os partidos mais próximos do nosso Bloco dão sinais de terem conhecido melhores dias e caminham para uma quase insignificância. No mesmo espaço político surgem porém outras forças revigoradas pela adesão de antigos líderes, ou de figuras proeminentes, de partidos socialistas ou social-democratas. Quererá isto dizer alguma coisa sobre o que possa acontecer num espaço reorganizado da nossa esquerda mais radical? Responda quem puder, sendo que todas estas forças têm pelo menos um ponto em comum: a sua proximidade ao radicalismo islâmico e o seu ódio a Israel. Duvida-se é que por essa Europa fora haja mais vontade do que a pouca vontade que existiu em Portugal para confiar lugares políticos à fauna da flotilha.
Afechar, e no que ao Bloco diz respeito, já que Mariana ainda vai estar no Parlamento durante a discussão do Orçamento, que tal propor a abolição do seu “imposto Mortágua”? Ao menos despedia-se com uma pequena benfeitoria, mas creio que isso acontecer é ainda mais improvável que Cristo voltar a descer à terra.