(c) 2023 am|dev

(A) :: ICNF reestruturado sim, extinto não

ICNF reestruturado sim, extinto não

Acho muito bem que o governo repense o ICNF numa perspetiva de reestruturação, mas mantendo centralizadas as competências do Estado em matéria de conservação da natureza e florestas.

Paulo Trigo Pereira
text

1 Há duas concepções extremas de democracia. A primeira, minimalista, elitista para alguns, é a de Joseph Schumpeter para quem a democracia é um arranjo institucional em que quem tem o poder de decidir, obtém-no a partir de uma luta competitiva pelo voto popular. A segunda, mais substantiva, conhecida por deliberativa, é tributária do pensamento de Jurgen Habermas que considera que um ingrediente essencial democrático é a deliberação sobre as decisões políticas no espaço público. Subscrevo a versão de Schumpeter como condição necessária para caracterizar um regime democrático, mas não a considero suficiente e aqui socorro-me de Habermas. A democracia não é, nem pode tornar-se, apenas eleições para decidir quem governa as autarquias, as regiões autónomas ou, a nível nacional, quem legisla, quem tem o poder executivo e quem assume as funções presidenciais.

O governo, na sua prática recente, tem aplicado a versão minimalista de democracia. Possui toda a legitimidade democrática para governar pois a AD foi a coligação mais votada, o primeiro ministro foi convidado a formar governo e nenhuma moção de censura foi aprovada na assembleia da república para o derrubar. É da exclusiva competência do governo definir a sua orgânica interna quer ao nível do desenho ministerial, quer dos organismos da administração direta e indireta do Estado.

Porém, as suas reformas organizacionais já aprovadas (extinção da FCT e ANI, fundidas na Agência de Investigação e Inovação, criação da Agência do Clima) ou em que se fala (ICNF) não foram precedidas de estudos que sejam conhecidos nem de debate público. (Importa lembrar que este governo já reestruturou organicamente o ICNF há meses, embora tratando-se de uma pequena reestruturação).

Não há que ter ilusões sobre qualquer reforma institucional. Há e haverá sempre apoiantes e detratores, pois qualquer reforma implica alterações de vários tipos de poder. Mas precisamente para se conseguir distinguir o que são argumentos a favor (ou contra) uma dada reforma institucional necessitamos primeiro de estudos que os fundamentem e depois de algum espaço de debate público e político para os debater. Ora nem uma coisa nem outra se está a passar com as reformas implementadas. E isto não é aconselhável até porque se trata de um governo minoritário que pode durar a legislatura, mas pode também não durar. Do mesmo modo que não podemos andar a repetir eleições não deve o governo operar reestruturações de ânimo leve sem diálogo com outros atores políticos relevantes, a academia e a sociedade civil para assegurar a sua perenidade e não ser fator de instabilidade.

2 Vamos agora à substância da questão, a reestruturação, fusão, ou extinção do ICNF de que se fala, e que mereceu já uma carta aberta de umas centenas de personalidades que defendem a manutenção do ICNF reforçando os seus meios técnicos, humanos e financeiros. Concordo com os subscritores que deve existir uma entidade autónoma, como autoridade nacional de conservação da natureza e biodiversidade e que essa entidade deve ser o ICNF com recursos adequados. Porém, é preciso ir mais longe e perceber que essa autoridade está já hoje parcialmente limitada e o ICNF necessita de uma reestruturação, a par do ecossistema institucional em que está inserido.

Acontece que, por exemplo, no caso das áreas protegidas, o caminho seguido desde os governos socialistas foi o da municipalização quer da gestão das áreas protegidas de âmbito nacional, quer das próprias CCDRs, que deixaram de ser na prática organismos desconcentrados da administração central como tive ocasião de argumentar. Logo em 2017, na altura em que se avançou com o projeto piloto de cogestão, escrevi no artigo: áreas protegida nem municipalização nem status quo que “o atual modelo financeiro e de gestão das áreas protegidas é inadequado e está esgotado. O actual ICNF não desempenha bem a sua função.” E é exatamente a mesma posição que defendo hoje com o benefício de já se saber o resultado da implementação do modelo de cogestão.

Uma coisa, certamente desejável, é promover a participação de municípios e da sociedade civil na cogestão, outra muito diferente é fazer diminuir o poder do Estado naquilo que são e deveriam continuar a ser as suas competências. Aqui a autoridade do ICNF não pode ser exercida pois no atual modelo de cogestão o presidente é um presidente da câmara. Ainda por cima a rotatividade dos presidentes de câmara a exercer esta função leva à instabilidade na gestão. Sucedem-se despachos a nomear novas pessoas nas várias  comissões de cogestão. A agravar tudo isto, o facto de poderem estar representadas oito entidades diferentes nestas comissões leva a uma falta de eficácia.

Acho muito bem que o governo repense o ICNF numa perspetiva de reestruturação, delegando nos municípios o que pode e deve ser descentralizado, mas mantendo centralizadas as competências do Estado em matéria de conservação da natureza e florestas.