1 Contratação pública: tendências
Os mercados públicos têm importãncia crescente no nosso desenvolvimento e são instrumento estratégico da boa gestão pública, a qual, como todos sabem, intervém em todas as áreas da vida nacional. Tal como acontece nos restantes Estados da EU, qualquer ato de contratação pública deve subordinar-se ao quadro legal atual que integra o Direito Administrativo e que transpôe as Diretivas Europeias de Public Procurement, em boa hora aprovadas pela UE em 2014. Ora, como é natural, o Direito ao prosseguir objetivos de equidade e tranparência concentra a sua atenção na norma cuja estabilidade no tempo contribui para a justiça intertemporal pelo que é fácil esquecerem -se as profundas mutações vividas pelo universo regulado. E é talvez este o caso bastando recordar as importantes alterações vividas em Portugal pelos mercados públicos entre 2011 e 2024, segundo o interessante Relatório Anual da Contratação Pública publicado pelo IMPIC:

Estes simples dados permitem bem evidenciar:
- O impressionante crescimento dos contratos de aquisições de bens e serviços cujo valor mais do que sextuplicou e cujo número quase duplicou!
- A crescente importância para o desenvolvimento económico já que o número dos operadores económicos contratados mais do que duplicou.Ora convém lembrar que, em geral, por cada adjudicatário, existe uma média de três grandes subadjudicatários o que permite estimar em mais 130 000 as empresas dependentes dos mercados públicos.
- O crescimento do número de entidades adjudicantes (compradores públicos) o qual já era muito superior ao recomendado e que contrasta com a conhecida escassez de quadros qualificados para “public procurers” compreendendo-se, assim, bem o stress dos que mantêm a contratação a fucncionar !
2 Contratação pública: problemas
Infelizmente será consensual considerar que a contratação pública é objeto de preocupação dificultando a vida em sociedade e o seu desenvolvimento por diversos motivos:
- Lentidão, a qual resulta de pesados procedimentos sucessivos a começar pelos impostos pelo Regime da Administração Financeira do Estado e da conhecida ausência de cultura de gestão.
- Complexidade, a qual se radica num quadro legal que é dos mais extensos e complexos segundo descritores habituais tais como dimensão e o número de conexões de gráu superior a 2.
- Litigiosidade, pois o número de processos litigiosos associados a recursos nos Tribunais Administrativos Superiores ultrapassa as muitas centenas o que contrasta com as dezenas que deveriam existir num Estado com a nossa dimensão.
- Risco de corrupção, já que é bem elevado o número de casos com intervenção do Ministério Público e em que surgem suspeita de corrupção associadas a contratos públicos.
- Obstáculo à inovação e à sustentabilidade, contrariando todas as recomendações europeias, empurrando algumas das nossas empresas mais inovadoras para mercados externos pois em Portugal são rejeitados tal como aconteceu recentemente em conhecida empresa da Saúde, Sword Health.
Em suma, estamos longe de ter o instrumento de gestão pública desejável para Portugal, seus cidadãos e empresas.
3 Como mudar?
Os processos de mudanças de sistemas tão vastos e diversificados, implicando tantos corpos profissionais e especialidades são sempre muito complexos e difíceis mas existe consenso internacional no apoio à metodologia aprovada pela OCDE a qual mereceu o voto favorável de Portugal recomendando começar-se por fase de avaliação diagnosticando os problemas a encarar, seguida de inquérito e debate aberto sobre soluções alternativas envolvendo não só especialistas mas também as entidades mais interventoras (neste caso, organismos públicos, operadores económicos, Tribunais, etc), divulgação de proposta com prioridades e orientações, e, posteriormente aprovação de políticas e quadros legais.Como é evidente, em nada se compara com a liturgia nacional mais habitual da escrita do novo texto por assessores no mistério dos Gabinetes, consulta pública em prazo ridículo, receção de milhares de propostas de alteração e, por fim, publicação da versão inicial, salvo correções de promenor, designadamente ortográficas.
Na verdade, Portugal não tem adotado a metodologia recomendada pela OCDE e, pelo contrário, a transposição das Diretivas sobre Mercados Públicos de 2014 a cargo do Governo XXI da chamada geringonça, foi catálogo exemplar de más práticas pois baseou-se apenas em sucessivos Grupos de juristas, com orientações divergentes, polvilhados por contactos informais ainda com outros juristas que publicamente se manifestavam em divergência com as novas Diretivas. Os resultados, com atraso de mais de 1 ano, estão à vista e incluíram erros grosseiros tais como a exigência do preço-base no procedimento da parceria para a inovação (!).
Eis porque importa que o atual Governo adote metodologia correta potenciando também os corpos intermédios existentes em Portugal tais como a APMEP-Associaçaõ Portuguesa dos Mercados Públicos– a qual tem uma natureza científica, não representando lobbies ou corporações mas integrando todo o espetro de profissionais, organismos e empresas relevantes para a contratação pública. Esta associação é presidida atualmente pelo Prof Miguel Assis Raimundo e vai organizar o seu próximo Congresso anual na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa no próximo dia 21 de Novembro.
Mas para além dos processos globais e estruturados de mudança, importa também introduzir mudanças cirúrgicas mas que podem ajudar a desbloquear probemas específicos.
Foi o que aconteceu com o recente Decreto-Lei nº 112/2025 de 23 de Outubro pelo que importa analisar as alterações introduzidas.
4 O Decreto-lei 112/2025 de 23 de Outubro
Este diploma altera a anterior Lei nº30/2021 aprovando:
- o aumento dos limiares para a consulta prévia e o ajuste direto relativamente a contratos que se destinem a promover habitação pública ou de custos controlados o que parece inteiramente justificado e de interesse público para acelerar a resposta ao grave problema de falta de habitação. Note-se, aliás, que as recentes alterações legislativas de Estados de referência como a Itália, a Suécia, a França ou o Reino Unido têm vindo a aumentar os limiares dos procedimentos por convite embora exigindo a conveniente fundamentação. Em Portugal, no Código atual diz-se que as empresas a convidar são à “escolha” da entidade adjudicante o que, em termos jurídicos, é singular pois trata-se de acto administrativo que se pretende não fundamentado contrariando o Artigo 268º-3 da Constituição e, em termos de eficiência da contratação pública, não corresponderá, certamente, à melhor prática para maximizar o “value for money”. Como consta que o Governo irá valorizar as Listas dos Fornecedores, aqui está campo óptimo para melhorar estes procedimentos, tal como acontece no Código Italiano de 2023.
- Generaliza a possibilidade de realizar contratação integrada – projeto + empreitada – a qual tem sido proscrita ou menorizada não só pelo Código mas também por interpretações menos modernas do Tribunal de Contas. Esta modalidade, designada em Portugal pela expressão infeliz de “ conceção-construção” é, pelo contrário, modalidade muito valiosa pois acelera a contratação, pode promover a inovação e a sustentabilidade em termos do ciclo de vida, evita o conhecido ping-pong da troca de responsabilidades entre projetista e empreiteiro e reduz o flagelo dos trabalhos a mais que tanto nos prejudica. Na verdade, a avaliação desta modalidade tem sido feita por numerosos autores tais como os professores Shresha e Sullivan, concluindo favoravelmente após a análise de mais de 1000 contratos. Também em Portugal, o galopante crescimento do valor dos trabalhos a mais tem sido estudado e os dois artigos mais citados têm como co-autor o professor de Economia que atualmente é Ministro das Finanças: Miranda Sarmento! Talvez esta simpática coincidência ajude futuramente!
Em suma, esta alteração legislativa traz boas notícias, esperando-se que o Governo prossiga caminhada positiva evitando os erros do XXI Governo de modo a desbloquear os nossos importantes mercados públicos.
Declaração de interesse: o autor foi sócio fundador e anterior presidente da APMEP.