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(A) :: A redenção da democracia

A redenção da democracia

Embora pareça responder aos anseios mais íntimos das pessoas, o regime democrático é trabalhoso e a maioria não se quer envolver em grandes entusiasmos políticos.

Patrícia Fernandes
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1 A tentação do inevitável

Vimos, na semana passada, como os intelectuais tendem a enamorar-se de um certo determinismo histórico, caindo muitas vezes na tentação do inevitável. Tal não é surpreendente se atendermos ao modo como o nosso cérebro funciona: visando a economia de esforço, estamos programados para encontrar padrões e sabermos, assim, responder de modo rápido e eficiente aos desafios que surgem.

Trata-se de uma herança evolutiva e que se mantém pela sua utilidade, sobretudo no domínio social e político: se a natureza humana não muda, as dinâmicas sociais e políticas tenderão a repetir-se. É por isso que o conhecimento histórico é tão importante em política, e talvez resida aí a razão pela qual os programas e os livros sobre história são tão populares: sabemos que eles contêm verdades intemporais.

O problema encontra-se em considerar que o jogo está fechado, que a história já está escrita e que as coisas se sucedem de modo inevitável. Um defeito que afeta, como Rui Ramos recorda recorrentemente, muitos historiadores: o de olharem para a história como se o desfecho fosse inevitável. Em sentido contrário, parece haver um meio termo entre tendências que resultam da realidade-tal-qual-ela-é e da liberdade individual, de poder introduzir novidade no mundo ou influenciar o curso dos acontecimentos.

O espírito liberal reside nesta resistência à inevitabilidade e é hoje particularmente importante de ser recordado quando parecemos mergulhados num paradigma de inevitabilidade tecnológica: como se estivéssemos condenados a deteriorar a nossa condição humana em telemóveis, redes sociais e apps de dating, bots de inteligência artificial e descobertas científicas que desejam colocar o ser humano no lugar de Deus. E como se estivéssemos também condenados, recordando Platão, a assistir à deterioração dos regimes democráticos e à sua transição para a tirania.

2 Os problemas da democracia

Apesar do desconforto gerado pela proposta platónica de abolição da família e da propriedade privada, é possível que a parte mais desconcertante de A República resida na descrição que o filósofo faz dos regimes democráticos. Destacando a promessa democrática de igualdade, mas sobretudo a sua ânsia de liberdade, Platão entende que as democracias conduzem a uma situação de caos e anomia social que torna inevitável o surgimento de um protetor-tirano.

Para Platão, o problema da democracia é fundamentalmente epistemológico: o conhecimento da realidade pressupõe um exercício intelectualmente exigente e distingue-se da doxa, das opiniões que pululam no espaço público. Governada pela maioria, que é necessariamente ignorante, a cidade democrática acaba por ser malconduzida, com divisões geradas por discursos demagógicos e interesses pessoais. Mas a paixão pela igualdade e liberdade conduz a outras transformações sociais: o sentido de autoridade é posto em causa, as hierarquias são perturbadas e os papéis sociais deixam de ser desempenhados devidamente.

É especialmente a esta dinâmica de instabilidade que assistimos hoje, com a autoridade de pais, professores e dirigentes políticos a ser desafiada, e com tantos a porem em causa as normas sociais que garantem a coesão social. E as esferas familiar, escolar (universidades incluídas) e política parecem ressentir-se com mais força, na medida em que era aí que a autoridade natural mais se fazia valer.

Contudo, a democracia levanta outros problemas e que podem ser mais bem compreendidos à luz dos conhecimentos cognitivos e evolutivos das últimas décadas: é que ela desafia o modo como o nosso cérebro funciona. Por razões evolutivas, o nosso raciocínio está sujeito a diversas distorções cognitivas, e um dos vieses mais importantes é o da confirmação: a tendência para procurar ou validar prioritariamente informação que confirma as nossas intuições anteriores. No fundo, precisamos de sentir que estamos certos (como sobreviver se estivermos constantemente em dúvida?), mas a democracia cria as condições para que, todos os dias, nos digam que estamos errados. Será a democracia contranatura?

A democracia parece, de facto, desafiar a nossa natureza. Não só põe em causa o nosso instinto natural para a hierarquia – fazendo com que os pais tendam a colocar a vontade das crianças acima da sua, os professores tendam a tratar os estudantes como iguais e os especialistas tendam a sentir que têm de respeitar todas as opiniões –, como nos obriga ao confronto constante com visões diferentes e, em particular, a reconhecer que essas visões são tão válidas e legítimas como as nossas.

E, assim, tal como o liberalismo parece representar o esforço permanente de não cedermos aos nossos instintos mais tribais e emotivos, também a democracia parece representar o esforço permanente de não cedermos à nossa natureza animal que evoluiu para sobreviver. É cansativo, e não é surpreendente que o apoio à democracia seja muitas vezes condicionado: confiamos que é o melhor sistema enquanto a maioria está do nosso lado; quando as pessoas começam a “pensar mal”, a democracia torna-se menos atraente.

3 A redenção da democracia

Os problemas que os atuais regimes democráticos estão a enfrentar não teria surpreendido um dos seus mais perspicazes analistas: com apenas 30 anos, o aristocrata francês Alexis de Tocqueville publicou o primeiro volume das suas reflexões sobre a democracia na América e nelas encontramos uma análise muito crua das vantagens e desvantagens do regime que se consolidava na América e que Tocqueville via como uma força providencial que, em breve, se espalharia pela Europa.

Por um lado, e como Lívia Franco ensina em Pensar a Democracia com Tocqueville, o autor francês compreendeu, à custa da sua própria experiência política, como a democracia, contrariamente às expectativas democráticas mais nobres, não impele os homens à participação política. Pelo contrário, e como os atenienses já sabiam (a participação na Eclésia era minoritária), as sociedades democráticas caracterizam-se pelo desinteresse político e pela letargia. Embora pareça responder aos anseios mais íntimos das pessoas, o regime democrático é trabalhoso e a maioria não se quer envolver em grandes entusiasmos políticos.

Por outro lado, Tocqueville é particularmente perspicaz em notar como as sociedades democráticas se tornam propensas ao individualismo: para além de reforçarem o desejo por bens materiais, elas ampliam o orgulho pessoal, alimentam a ideia de autossuficiência e fazem com que o indivíduo se desligue da comunidade e das responsabilidades que o ligam aos outros. Apesar de apelarem a uma dimensão coletiva expressa na ideia de soberania popular, as democracias incitam o nosso lado mais individualista e tendem, por isso, a transformar-se, como os atenienses também sabiam, em sociedades mais conflituosas e menos capazes de cooperação.

Mas Tocqueville não é um profeta da inevitabilidade: pelo contrário, o seu trabalho assenta na ideia de que não estamos condenados a democracias más ou tirânicas. No seu entender, a redenção democrática seria possível com recurso à religião, nomeadamente aquela que se revelou a mais compatível com os valores democráticos e liberais: o Cristianismo.

A religião seria eficaz numa dupla dimensão. Em termos individuais, oferece uma doutrina clara sobre os valores que devem orientar a nossa vida pessoal para não cairmos no individualismo excessivo, no consumismo exacerbado e na ânsia pela novidade e pelas sensações. Em termos coletivos, a religião permite traçar um projeto que oriente a nossa vida comum e nos recorde da interdependência comunitária. Afinal, só partilhando um quadro comum de valores é possível manter uma comunidade democrática saudável. E, ao contrário do que foi prometido, a religião continua a ser a melhor ferramenta para manter vivo esse quadro comum de valores.