Há uma referência ao perigo da nostalgia numa cena de Cinema Paraíso, de Giuseppe Tornatore.
Esse filme que é um tropeço de ternura, uma chama no coração, uma pedrada no charco da consciência.
Recordo aquela cena em que o velho Alfredo diz a Totò para não voltar à aldeia e esquecê-los a todos. Para não ficar preso à nostalgia.
Para um país de saudosistas crónicos, pode parecer frio, quase maléfico, este pensamento. Porém, é de um amor incondicional, sem limites: perceber que a memória pode ser uma corda que prende, um sal que esfrega as feridas mais profundas.
O nosso passado não deve definir o nosso presente. A vida é misteriosa e sinuosa como aquelas estradas cheias de curvas e contracurvas da Beira Interior. Só lhes falta o cheiro das oliveiras e do musgo grosso que cobre os pedregulhos.
Há uma rapariga que se senta todos os dias com o seu cão numa esquina do Chiado. Invejo a sua serenidade.
Os olhos do amigo de quatro patas são de um mel reconfortante. Quando passo por eles, penso: “Esses olhos nunca viram passado, presente ou futuro. Ficam felizes por apenas sentirem o toque e o cheiro da dona.”
Ela olha para a frente, de olhar tímido, penetrante, transparente mas frio, tentando chegar ao coração de um bom-samaritano que lhe dê algo: dinheiro, comida ou roupa.
Todos temos um passado: a dona, o cão, até eu, que observo a cena de forma cobarde, transformando-a em palavras.
Mas é viver sem passado que se alcança a paz.
É esse silêncio, essa paz, que andamos todos à procura. Ainda que com os olhos soterrados num smartphone.
A banda sonora é a barulheira infernal do metro, com um cego a tentar penetrar num vagão cheio, troteando uma melodia batida com a sua gasta vara de metal.
Encontro-me em divagações com o passado: as férias da infância, os dias de escola — os bons e os tenebrosos —, os primeiros empregos, os últimos trabalhos, os hobbies. E nada disso parece fazer sentido. Faz parte de um tempo recôndito.
No passado jazem as maiores feridas.
Por isso, amigos, olhemos de frente para esse túnel afunilado que é a existência humana. Sem nunca parar de caminhar, mesmo não enxergando o caminho.
Atualmente, assistimos à sociedade mergulhada em discussões irrelevantes: burcas, racismo disfarçado de competência e falsos problemas.
Percebo que as elites não queiram o silêncio. Pois é quando nos vemos ao espelho que se chega às respostas para os verdadeiros problemas e desigualdades sociais. Preferem a discussão inócua da espuma dos dias: muita urgência e pouco sentido.
Escolhem também elas ficar agarradas a um passado longínquo: os mesmos nomes, as mesmas vozes, desvalorizando assim o presente. Como se agora todos fôssemos “fracos”, “indulgentes”. Talvez, daqui a cinquenta anos, sejamos nós os heróis de outras cavernas de Platão.