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(A) :: Almoços e jantares, combustível e até um soutien. Como Jaime Madureira usou 53 mil euros que desviou dos bombeiros do Porto

Almoços e jantares, combustível e até um soutien. Como Jaime Madureira usou 53 mil euros que desviou dos bombeiros do Porto

Durante vários anos, Jaime Madureira (pai de 'Macaco') aproveitou-se do cargo de Presidente da associação de Bombeiros do Porto para gastar 53 mil euros em roupa, muitos jantares e higiene pessoal.

Miguel Pinheiro Correia
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Rodrigo Mendes
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A dois dias do Natal de 2015, o presidente da Real Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários do Porto (RAHBVP) foi a dois supermercados diferentes encher os carrinhos com mais de 205 euros: comprou cervejas, bollycao, ferrero rocher, whisky, borrego, pescada, tripas, sarrabulho e pão de ló. No final, pagou a conta — mas não com dinheiro seu. E esse nem sequer foi caso único. Em cinco anos, Jaime Madureira gastou mais de 53 mil euros da associação em bens que nunca foram utilizados ou consumidos pelos bombeiros.

As despesas no supermercado, em refeições e em combustível repetiram-se nos últimos anos em que liderou a associação centenária e com cariz “voluntário e social” sediada na freguesia de Ramalde. Por esse motivo, e já depois de ter sido afastado da direção da RAHBVP, foi condenado esta quarta-feira a quatro anos de pena suspensa por peculato e fica obrigado a devolver todo o dinheiro aos bombeiros. A sentença foi lida no Tribunal de São João Novo, no Porto, precisamente no mesmo tribunal onde, há menos de três meses, o seu filho, Fernando Madureira, foi também condenado a 3 anos e nove meses de prisão efetiva.

O tribunal concluiu que o pai do antigo líder da claque portista dos Super Dragões usou, como se fossem seus, dezenas de milhares de euros que pertenciam à associação. Tudo foi possível porque em 2014, quando a apropriação começou, o presidente com mais de oito anos em funções ditou uma mudança: Jaime Madureira disse aos funcionários da secretaria que as receitas dos bombeiros deveriam passar a ser-lhe entregues em mão, em vez de serem depositadas na conta bancária da instituição.

Funcionária começou a anotar dinheiro dos bombeiros que era dado a Jaime Madureira, depois de terem surgido boatos de que ela estaria a ficar com o dinheiro. Presidente acabou afastado da associação em 2019, anos antes de começar o julgamento

As trabalhadoras acataram as ordens do homem agora com 73 anos. “Durante o final de 2014 e o início de 2015, foram entregues quantias em numerário ao arguido, em montante não concretamente apurado”, lê-se no acórdão a que o Observador teve acesso. A partir daí, uma secretária começou a escrever numa tabela todos os valores que entregou a Jaime Madureira.

Apesar de se ter separado há 14 anos da mãe de Fernando Madureira, colocando fim a um casamento de 37 anos, mantém uma relação cordial com a ex-mulher “em torno de assuntos que envolvam” os três filhos. Desde que ‘Macaco’ está preso que o antigo casal se junta para visitar o filho mais velho.

https://observador.pt/especiais/quem-falhar-sofrera-as-consequencias-as-mensagens-e-os-testemunhos-que-condenaram-fernando-madureira-na-operacao-pretoriano/

O registo dos anos seguintes foi esclarecedor para o tribunal. Apesar de receber apenas uma pensão pelo trabalho como revisor da CP, Jaime jantava regularmente em restaurantes, churrasqueiras e tascas. Entre 2015 e 2017, comeu por oito, 70 ou até 360 euros — sobretudo em estabelecimentos no Grande Porto, mas há também refeições na Mealhada ou em Mirandela.

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“Assim, no triénio 2015-2017, Jaime de Almeida Madureira fez sua a quantia de 24.807,35 euros dos bombeiros com gastos em restaurantes assinalados, essencialmente com refeições de almoço e jantar, sem autorização e sem qualquer conexão com a representação da RAHBVP”, refere o mesmo acórdão.

Mas as refeições que fazia não era o único destino que dava aos fundos da associação de bombeiros de que se foi apropriando. No mesmo período, Jaime aproveitou a sua posição como presidente para ir ao supermercado comprar um pouco de tudo — desde comida a itens de higiene pessoal — e para abastecer os seus dois carros.

“Jaime Madureira agiu (…) bem sabendo que a RAHBVP era uma associação de utilidade pública administrativa, de fins não lucrativos, que as funções de presidente que desempenhou eram de cariz voluntário, social e não remuneradas. (…) Agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e penalmente punida”.

Bombeiros tinham refeições “especiais” poucas vezes por ano. Mas Jaime jantava com dinheiro da associação repetidamente

Mal os gastos começaram a ser anotados pela secretária, a tendência começou a notar-se. As refeições, sobretudo jantares, eram quase diárias e, apesar de o roteiro de restaurantes ser extenso, notam-se preferências. O Pedro dos Frangos, na Baixa do Porto, era um deles. Gastou mais de mil euros nesse restaurante entre 7 de janeiro de 2015 (dia em que tem uma fatura de 189 euros) e 30 do mesmo mês (quase 300 euros nessa ocasião).

Uma das testemunhas de defesa confirmou que “muitas vezes” faziam refeições nos Bombeiros com “frango assado comprado” nessa churrasqueira, “o que só acontecia nas prevenções [aos fogos] e numa ou outra ocasião festiva” — que confirmou serem as do 25 de Agosto, dia de aniversário de fundação da associação, e a de Natal, não se tendo referido a outras compras, como esta de janeiro.

Um dos estabelecimentos mais repetidos é o pequeno restaurante d’O Barril, em Leça da Palmeira, onde Jaime gastou mais de 220 euros em maio de 2015, em 13 refeições diferentes, apenas uma ao almoço. Nesse mês, chegou a almoçar com o dinheiro da associação no aniversário do filho, conhecido por ‘Macaco’. Em junho repetiu as idas ao restaurante O Barril oito vezes e no mês seguinte fez mais 17 refeições ali, gastando mais de 390 euros só nesse espaço.

Bombeiros assumiram que só tinham refeições oferecidas em datas simbólicas. 2017 foi o ano em que Jaime mais gastou dinheiro da associação em almoços e jantares: mais de nove mil euros em despesas não autorizadas

Foi no mesmo restaurante que, em janeiro do ano seguinte, almoçou por 32 euros no dia do seu 65.º aniversário. No ano anterior, registou duas despesas de mais de 60 euros no mesmo dia. Tanto aí como no total das várias transações analisadas pelas autoridades, Jaime pagou tanto em multibanco como em dinheiro, tendo chegado a usar um cheque num jantar de 664 euros no Porto.

Bombeiros ouvidos em tribunal “salientaram que só as refeições das intervenções de prevenção aos fogos e aos jogos no Estádio do Boavista é que a Associação lhes pagava, e essas eram documentalmente justificadas”.

Na maior parte das vezes, Jaime sentava-se sozinho à mesa dos restaurantes onde era cara conhecida, mas pelo menos duas funcionárias chegaram a fazer-lhe companhia em almoços que ele pagava. Depois, colocava as faturas na contabilidade da associação, sem ter autorização para tal.

Os gastos atingiram um recorde em 2017, ano em que despendeu de mais de nove mil euros em refeições não autorizadas, com o mês de abril a ser o período do triénio mais movimentado: 1.687 euros não justificados, que contrasta com os 65 que o tribunal considerou terem motivação conhecida e validada.

Jaime comprava todo o tipo de alimentos, mas bombeiros só comiam “frango, rissóis e croquetes”

Mas nem só de toalhas de papel e travessas de inox viveram os gastos não justificados de Jaime Madureira. No mesmo período, o presidente da RAHBVP alternou a ida a restaurantes com muitas visitas aos supermercados, bombas de combustível e lojas de roupa, onde comprava bens que, mais uma vez, e segundo os bombeiros, não eram para usufruto da associação.

A lista é longa. Espumante, camarão, costeletas de borrego, novilho, presunto, cerveja, gelado, vinho, bacalhau, pimentos padrón, desodorizante, pizza, pão de ló, donuts, desodorizante, bollycao, comida para gato, roupão, soutien, alheiras, super bock, ferrero rocher, whisky, tripas, sarrabulho, pão de ló, sapateira, moscatel de favaios, vodka, bifanas, entre muitos outros.

A descrição extensa contrasta com o tipo de refeições que os bombeiros relataram ter feito no quartel, ou com os itens de higiene pessoal que dizem ter utilizado nos balneários. “Resultou da maioria dos depoimentos que as compras de supermercado efetuadas pelo arguido não eram destinadas às refeições dos Bombeiros, pois essas (…) eram sempre refeições mais pobres do que os bens refletidos nas faturas apresentadas à contabilidade”, lê-se no acórdão.

"Nas poucas festas que faziam, (...) não lhes eram servidas refeições com bacalhau, camarão, espumante, etc, constantes das facturas e apresentadas à contabilidade dos Bombeiros”, explicaram as testemunhas. No Natal, apenas eram comprados presentes para os filhos dos operacionais

Os bombeiros admitem que as refeições que faziam em ocasiões especiais eram compradas e embaladas nos restaurantes, não sendo cozinhadas no quartel, pelo que não faria sentido a compra de tantos ingredientes. “Confirmaram essas testemunhas que nas poucas festas que faziam, que se resumiam ao Dia do Bombeiro, e uma no Natal em que apenas adquiriam presentes para os filhos dos Bombeiros, não lhes eram servidas refeições com bacalhau, camarão, espumante, etc, constantes das faturas e apresentadas à contabilidade dos Bombeiros”.

Uma bombeira descreveu que as refeições a que tinham direito — e que eram apenas as dos jogos do Boavista e das prevenções de incêndios — eram simples, “à base de frango assado, rissóis, croquetes, etc, geralmente comprados confecionados”.

Mesmo a possibilidade de estes bens serem comprados para venda no bar dentro dos Bombeiros é refutada pela totalidade das testemunhas. Explicam elas que esse espaço de 15m2, sem cozinha, era explorado por pessoas “externas à corporação” e que eram essas pessoas as responsáveis por comprar as bebidas e snacks lá vendidos.

“A maioria das testemunhas asseverou que não eram cozinhadas refeições regularmente na sede da Corporação, então, a que se destinavam as compras, que incluem roupa interior, calças de homem e de senhora, dodot´s,...", lê-se no acórdão. Jaime chegou a gastar 240 euros em roupa na Zara

Na fase mais intensa de prevenção aos fogos, os bombeiros dormiam no quartel e tomavam banho nos balneários, mas os produtos de higiene utilizados eram sempre levados e comprados pelos operacionais.

“A maioria das testemunhas asseverou que não eram cozinhadas refeições regularmente na sede da Corporação, então, a que se destinavam as compras, que incluem roupa interior, calças de homem e de senhora, dodot´s, inúmeras bebidas alcoólicas, Nestum, chocolates, tudo itens comprados com regularidade?”, questiona-se no acórdão.

Com o dinheiro da associação, Jaime também comprou blazers, calças, calçado, camisas e um colete. Por duas ocasiões, dirigiu-se à Zara para gastar, no total, 240 euros em roupa. Além dos mais de 10 mil euros em supermercados e dos quase 25 mil euros em restaurantes, o presidente da RAHBVP usufruiu da sua posição para abastecer e inspecionar os seus dois carros pessoais — um Mercedes preto e um Peugeot cinzento.

Jaime aproveitou os cartões com vantagens que eram para uso exclusivo dos bombeiros através de uma parceria com uma gasolineira e que não permitiam ao condenado usá-lo com “despesas de representação”.

“Em data não concretamente apurada, Jaime Madureira passou a utilizar o cartão empresa da RAHBVP e efetuou abastecimentos, em benefício pessoal, nos veículos [de] sua propriedade e por si utilizados”. No total, foram 128 abastecimentos em dois anos, maioritariamente no Mercedes, num valor de 4.882,47 euros.

O gosto pelos cargos públicos, a relação com a família e os estudos já em adulto

Desde 2007 na liderança da RAHBVP, Jaime assume que tem gosto pelo exercício de cargos públicos, não tendo sido essa a primeira experiência. Também foi presidente de um clube de futebol amador da Ribeira e chegou a ser presidente da Assembleia de Freguesia de S. Nicolau, entre 2007 e 2009.

Para melhor poder desempenhar essas funções, relançou-se nos estudos já em adulto, tendo concluído uma licenciatura em Direito na Universidade do Minho e um mestrado em Direito das Autarquias Locais. Antes desta incursão em cargos públicos, dedicou a sua vida a ser revisor da CP durante 30 anos, tendo-se reformado aos 55 — o tribunal acredita que o dinheiro que recebia das pensões, e as condições em que dizia viver, não são condizentes com os gastos em refeições e bens.

Conciliou a vida profissional com um longo casamento de 37 anos, do qual resultaram três filhos, sendo o mais velho o antigo líder dos Super Dragões. Em tribunal, admitiu que a rutura na relação poderá ter sido causada por, desde 2006, ter dado prioridade às funções na associação de bombeiros, mantendo-se distante da família com frequência.

Desde então, vive em casa de uma amiga — com quem diz ter “uma relação funcional” —, mas passa algumas noites em casa de uma prima “sempre que se desentende com a amiga”. “Jaime Madureira informou que [contribui] para a economia doméstica de casa da amiga com géneros alimentares, em montante que não quantificou, avaliando a sua atual situação económica como de suficiência graças ao facto da amiga não lhe exigir que contribua nas despesas fixas com a habitação cujo valor refere desconhecer”.

Em tribunal, disse que deu do seu dinheiro pessoal “sempre que algum dos bombeiros o solicitava”, por entender que tinha que “prestigiar o cargo que ocupava”. Foi caracterizado como “uma pessoa intempestiva, mas generosa, aparenta fragilidades que o poderão condicionar na tomada de decisões, nomeadamente por se revelar pessoa autocentrada e com necessidade de reconhecimento social”.

Contudo, os juízes são claros a dizer que o arguido “não soube, ou não quis” esclarecer de forma sustentada a razão para ter submetido à contabilidade da associação as despesas pessoais.

Para a decisão, foi essencial o depoimento de uma administrativa da associação que começou a registar todas as entradas de numerário numa folha — que era assinada pelo arguido, confirmando como o dinheiro recebido lhe era entregue em mãos — depois de terem surgido boatos de que duas funcionárias estavam a ficar com o dinheiro das multas e dos donativos.

“A testemunha disse que o dinheiro nunca era depositado na conta da Associação e que ficava nas mãos do arguido, desconhecendo a testemunha (bem como as demais testemunhas a quem isso foi perguntado) o destino que o arguido dava a essas quantias”.

As testemunhas confirmaram que o cargo não era remunerado e que também não tinha despesas de representação.