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Lei da Nacionalidade pré-aprovada com cruzamento de votos a pender para a direita, mas Chega faz suspense até voto final

Voto na especialidade aumentou prazos de residência e passou a exigir meios de subsistência a quem se quer naturalizar. PS põe-se de fora e analisa riscos constitucionais, Chega não promete luz verde.

Mariana Lima Cunha
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Noites de negociações “intensas” e “duras”, trocas de propostas até à 25ª hora, pedidos de adiamentos e apelos até ao fim. O complexo processo que levou à primeira aprovação da Lei da Nacionalidade foi, por isso, descrito pelo Governo como uma tentativa extrema de chegar ao “consenso mais alargado possível” e pelos seus detratores como um processo atabalhoado, pouco claro e que traz “incerteza jurídica”. No fim, o PS tentou aproximações ao Governo, mas sem sucesso; o PSD conseguiu aprovar as suas propostas, com votações cruzadas entre PS e Chega; e, apesar de a lei incluir objetivos ambicionados pelo partido de André Ventura, este mantém que nem todas as suas linhas vermelhas foram respeitadas e faz suspense até ao fim.

Esta terça-feira, dia 28 de outubro, quando a Lei da Nacionalidade for votada na sua versão final, em plenário e por todos os deputados, a votação terá uma particularidade: não basta que haja mais deputados a favor do que contra; como é uma lei reforçada — ou seja, uma lei que complementa a Constituição — exige que exista uma aprovação da maioria absoluta dos deputados (ou seja, 116 de 230).

Era, por isso, particularmente importante alargar o consenso a vários partidos, garantindo que a lei não morria na praia. Se em questões como o tempo de residência exigido para se ser cidadão português os principais partidos aproximaram-se (com o PS a aumentar os prazos que tinha começado por propor), e se o Chega conseguiu, à última hora, que o PSD definisse que quem não tiver “meios de subsistência” não pode ser português, outras questões que os partidos consideravam essenciais ficaram pelo caminho.

E assim, apesar de o Chega ter deixado passar a maior parte das propostas do PSD, não há uma garantia final de que na terça-feira a lei seja aprovada — e já há uma análise a ser feita, por parte do PS, aos riscos constitucionais que decorrerão de uma eventual aprovação e à necessidade de Marcelo Rebelo de Sousa pedir uma fiscalização preventiva ao Tribunal Constitucional.

PSD cede em linha vermelha ao Chega, que ainda analisa diploma

A votação em sede de especialidade, na Comissão de Assuntos Constitucionais, ocupou toda a manhã desta sexta-feira e arrancou sem acordos globais entre os partidos: nem Chega nem PS alinhavam inteiramente com a lei e não se sabia exatamente qual o resultado que sairia das quatro horas e meia de votações, que são feitas alínea a alínea.

Quando a votação começou, ainda o PSD estava a pedir o adiamento de um dos seus pontos fulcrais — o artigo 6, que determina as condições para se poder obter a nacionalidade portuguesa — para o fim da discussão. Mais tarde, daria entrada uma alteração: os sociais democratas queriam incluir uma nova alínea nessas condições, estabelecendo que quem pedir a nacionalidade tem, no momento do pedido, de assegurar os seus “meios de subsistência” — uma exigência central do Chega a que o PSD acabava por ceder.

Não é, ainda assim, garantido que cedências como esta levem o partido de André Ventura a acompanhar a versão final da lei, até porque o PSD conseguiu fazer aprovar a possibilidade de retirar a nacionalidade a cidadãos naturalizados se cometerem certos crimes, mas não de forma automática, como Ventura queria — a decisão passará sempre por um juiz. “A questão da subsistência é importante mas não era a única. Vamos agora avaliar o resultado para determinar a votação final global”, dizia a deputada Cristina Rodrigues ao Observador, no final da votação.

Horas depois, André Ventura reconhecia o “papel importante” do Chega neste processo e as “aproximações” registadas durante a madrugada, sem que no entanto se chegasse a um “consenso final”. E insistia: a perda da nacionalidade deve aplicar-se automaticamente a quem comete crimes graves (um dos pontos que mais dúvidas colocam entre constitucionalistas); o PSD não deve prever, como prevê, que os cidadãos naturalizados tenham a sua nacionalidade consolidada a partir dos dez anos, mesmo que se descubra que a obtiveram de forma fraudulenta (“quando a burla é descoberta, a nacionalidade deve ser retirada”); e “terroristas ou violadores” não podem ter a nacionalidade — crimes que o PSD já prevê que levem à perda da mesma.

O PSD viria criticar quem se “entricheira” ou “leva as convicções ao absurdo“, nas palavras do deputado António Rodrigues, e defender que “adotou as propostas à medida dos que queriam colaborar”. “Desde o primeiro dia que dissemos que não privilegiávamos ninguém”, avisou, pedindo “responsabilidade” aos partidos para aprovarem essa proposta com uma necessária maioria qualificada, de 116 deputados, desde que não prefiram “não ter” uma lei — principalmente aqueles que põem a “tónica” no assunto, leia-se ao Chega — ou tê-la, mesmo que não se “concorde inteiramente” com a versão final.

Já o PS viria colocar-se definitivamente fora do barco, confirmando que não chegou a acordo apesar das diversas tentativas e de se ter aproximado do PSD mesmo em “temas particularmente sensíveis”, como resumiu o líder parlamentar, Eurico Brilhante Dias.

Para o PS, havia alguns temas essenciais em que não poderia ceder mais: desde logo, os socialistas acreditam que não deveria ter sido revogado o artigo que permitia que o tempo de residência estivesse a ser contado enquanto esta não era oficialmente autorizada, para efeitos de nacionalidade, e que se deveria ter chegado a um ponto intermédio, em que o tempo estivesse a contar enquanto o Estado não cumpre o prazo de resposta (uma vez que há cidadãos que esperam durante anos pela autorização de residência, apesar de já cumprirem os critérios para terem direito a ela). “Na primeira oportunidade facilita-se, é a postura do PS”, atacaria o PSD.

“É um corte grave na relação da administração pública com os cidadãos. E do ponto de vista constitucional temos as maiores dúvidas que não colocar ponto preciso e equivalente não venha a transformar-se numa desigualdade”, resumiu o líder parlamentar socialista.

Outro ponto problemático, explicou o deputado e negociador do PS para este tema, Pedro Delgado Alves, foi o chumbo de qualquer tipo de regime transitório — que o PSD tinha chegado a aceitar, garante o PS — para que quem está agora a cumprir ou quase a cumprir o prazo atual, de cinco anos de residência no país, pudesse ainda fazer o pedido e obter a nacionalidade portuguesa. O PS tinha começado por pedir que esses pedidos ainda pudessem dar entrada até 31 de dezembro de 2026, recuou até março, mas nada feito.

Além disso, os socialistas (tal como os restantes partidos à esquerda) apontaram uma “indeterminação nos conceitos” da lei, um problema “polvilhado” por todo o articulado, como quando se exige que quem pede a nacionalidade tenha conhecimento da “cultura” portuguesa (o PS propunha que fosse a língua, História, o hino e a bandeira). E recusavam a “amplitude” de crimes que poderão determinar a perda de nacionalidade, “vasta e desproporcional”, e que representará uma “quebra de relação” dos cidadãos com o Estado.

Feitas as contas ao articulado final, o PS disse ter feito um esforço para que a lei se tornasse “menos má” mas só ter visto recuos do PSD nas matérias que colocava como centrais; os partidos mais à esquerda apontaram para um “entendimento” à direita para “piorar” a lei (ou nas palavras de Mariana Mortágua uma “barganha política” para disputar espaço entre PSD e Chega); e a IL acabou a desafiar André Ventura a aprovar a lei na votação final, em vez de a chumbar por “motivos táticos”. Nos corredores de PS e PSD, comentava-se que o Chega deverá agora aceitar uma lei “menos dura”, melhor ainda assim do que lei nenhuma, e que o partido costuma “fazer-se caro” nestas negociações; o Chega insistia que teve várias linhas vermelhas que ficaram por contemplar.

Se a lei for aprovada pela maioria absoluta dos deputados, poderá ainda enfrentar novos obstáculos: o PS sugere que o Presidente da República “poderá pedir” a sua fiscalização preventiva e os socialistas “tomarão decisões” depois da análise cuidada do documento, considerando, para já, que pontos como a falta de um regime transitório para quem já cá está e está à beira de cumprir os requisitos necessários podem representar uma “desproporcionalidade” e, assim, um problema constitucional.

Prazos aumentam e haverá testes sobre língua, cultura e História

No ponto mais central da lei, que tem a ver com a alteração dos prazos de residência exigidos para que alguém possa tornar-se português, houve algumas aproximações: atualmente o prazo é de cinco anos; o PSD e o CDS propunham que fosse de sete para cidadãos da CPLP e da UE e dez para os restantes; o PS chegou a propor seis e nove anos; mas os socialistas não chegaram a contribuir para a aprovação da norma, precisamente por considerarem que a mudança é demasiado “abrupta” e “frustra as expectativas” de quem trabalha e vive em Portugal e “orientou” a vida nesse sentido.

“Não acautelar minimamente um regime transitório quando passa para o dobro dos anos parece-nos um erro. Da perspetiva de justiça, proporcionalidade, mas também reputacionalmente, para o Estado português — de um momento para o outro algo tão estruturante pode evaporar-se”, argumentou Delgado Alves, sem sucesso. Os socialistas recusaram que a questão se reduzisse uma “fetichização” dos prazos e assumiram que não considerava a sua última proposta “espetacularmente boa”, mas que tinham tentado aproximar-se do PSD. “Foi uma aproximação exigente, ou uma adesão relutante”, atirou Rui Rocha. “Era a menos má”, atirou Delgado Alves.

Outro ponto que passou à direita (com abstenção do Chega), mas sem o acordo do PS, foi a exigência de que quem quer ser português comprove “através de teste ou de certificado conhecer suficientemente a língua e a cultura portuguesas, a história e os símbolos nacionais”; para o PSD isto faz parte da ideia de não ter uma comunidade deslaçada nem sem ligações reais ao país; para o PS, é a “pior solução” de todas (houve versões que falavam em língua, cultura, história, símbolos nacionais e várias combinações dessas várias opções) porque inclui o conceito mais subjetivo de cultura portuguesa. Foi chumbada a opção alternativa do Chega, que propunha um “Teste Nacional de Integração e Cidadania” cujas regras fossem regulamentadas com “objetividade e transparência”.

Os partidos estiveram de acordo em obrigar a que um cidadão naturalizado tenha de conhecer os direitos e deveres inerentes à nacionalidade, assim como a organização política do Estado português, e que declare solenemente a sua adesão aos princípios fundamentais do Estado de Direito Democrático. E também que não possam ter sido condenados, com trânsito em julgado da decisão judicial, com uma pena de prisão igual ou superior a dois anos, por crime punível segundo a lei portuguesa (uma proposta em que o PS foi ao encontro do PSD, aceitando o mesmo período de tempo).

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A geometria variável da lei (e a referência ao hino dos Anjos)

A direita conseguiu aprovar um aumento do tempo que tem de passar para que filhos de estrangeiros nascidos em Portugal se tornem portugueses — um dos progenitores terá de viver em Portugal há pelo menos cinco anos”. Também aprovou que comportamentos “de forma ostensiva e concludente” contra símbolos nacionais possam ser argumento de oposição à atribuição de nacionalidade, o que levou Delgado Alves a fazer uma referência sarcástica ao processo que opôs os Anjos a Joana Marques — “Vamos poupar-nos todos a processos por má interpretação do hino…”. Para o PS, a proposta ficava “estragada” pela indeterminação de conceitos. Os partidos à direita estariam também alinhados no aumento do período em que se pode fazer essa oposição (era um ano, passa para dois).

Em pequenos momentos, houve acordos feitos entre PS e PSD na própria mesa das votações — exemplo foi a norma em que o PSD propunha que o Governo pudesse conservar os dados biométricos de cidadãos cujo pedido de nacionalidade fosse rejeitado durante dez anos; os socialistas pediram que fossem cinco para que o tempo fosse menos “excessivo” e verbalmente chegou-se a acordo para que passasse a ser esse o prazo.

Não conseguiu, no entanto, acordo para recuar na revogação de um artigo que previa a naturalização para pessoas que nasceram em Portugal, sejam filhos de estrangeiros que vivessem no país quando nasceram e vivam em Portugal há pelo menos cinco anos (um mecanismo muito utilizado sobretudo no pós-25 de Abril — para o PSD, foi justificado no passado, mas não faz sentido que se mantenha no atual ordenamento jurídico).

E também não conseguiria prolongar parcialmente o regime de naturalização para descendentes de judeus sefarditas, como pretendia, estabelecendo para estes o mesmo prazo de residência reduzido (sete anos) que se aplicará a cidadãos da UE e CPLP. “É uma matéria de divisão profunda. Houve abusos reconhecidos pela própria comunidade e não faz sentido prolongar o regime indefinidamente”, argumentou António Rodrigues. “O PS está sempre disponível para abrir portas e exceções porque não é capaz de tomar uma decisão de corte”, atacou — e assim o fim do regime avança mesmo, com a direita a considerar que a reparação história à comunidade sefardita já foi feita e não faz sentido continuar de forma indefinida no tempo.

Nova lei aumenta prazos de residência e quer testar conhecimentos de cultura, português e História. Diploma à parte prevê perda de nacionalidade por decisão de juiz. PS não conseguiu assegurar regime de transição nem contagem do tempo que conte com atrasos do Estado

Perda de nacionalidade prevista em diploma à parte. Chega parcialmente de acordo

Logo de início, o PSD confirmou o que já se sabia — dizendo ter “todo o respeito” pela proposta do Chega para que a perda de nacionalidade seja automática perante certos crimes, votaria contra, por considerar (e tendo em conta os muitos avisos de constitucionalistas nesse sentido) que essa sanção não deve ser automática, mas decidida por um juiz e incluída no Código Penal. E apesar de esta ter sido definida como André Ventura como uma claríssima linha vermelha, o Chega acabou por deixar passar a proposta do PSD, ora através da abstenção, ora através do voto a favor.

Delgado Alves assegurou que se a “construção jurídica” da proposta tivesse sido outra, incluindo apenas crimes contra o Estado e terrorismo, o PS teria outra postura (tanto que se absteve nessas alíneas específicas); mas, na versão que ficou, será desproporcional, acusou. “Mantemos o princípio de serem crimes graves, avaliados por um juiz em cada caso concreto”, argumentou o social democrata Paulo Marcelo.

Assim, e já depois de o PSD ter baixado a pena de prisão efetiva dos casos em que esta perda de nacionalidade poderá aplicar-se — de cinco para quatro anos, aproximando-se do Chega, embora este não concorde que a regra só se aplique aos primeiros dez anos de naturalização — a norma ficou aprovada com abstenções do PS e do Chega (“Iam chumbar uma sanção a quem não cumpre as regras? Chega a ser Chega“, ironizava-se, já depois da votação no PSD).

Além disso, o Chega votou favoravelmente as alíneas que preveem os crimes em causa, incluindo crimes contra a vida, contra a integridade física, contra a liberdade pessoal, contra a liberdade e autodeterminação sexual, contra a vida em sociedade, por associação criminosa, contra o Estado, de auxílio à imigração ilegal, infrações e atividades terroristas, crimes de tráfico de armas e de tráfico de estupefacientes.

No meio de uma discussão emotiva — Delgado Alves chegou a emocionar-se enquanto acusava o Chega de estar a provocar “danos à qualidade da democracia” no mundo em que a sua filha viverá; Cristina Rodrigues respondeu que “o que envergonha a democracia são casos de corrupção que acontecem a torto e a direito no PS” o PSD acabou a concluir que tinha tentado chegar a consensos por “todos os meios”, nem sempre com sucesso. Acabou com acordos ora com um partido ora com outro, mas não tão claros que permitam antecipar uma votação final sem dúvidas nem dramas na próxima terça-feira.