O médico anestesista Luís Cabral, que é a escolha da ministra da Saúde para liderar o Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM), tem uma larga experiência na área e lidera atualmente o Serviço Regional de Proteção Civil e Bombeiros dos Açores, que tem a cargo a emergência médica do arquipélago. Mas o nome escolhido por Ana Paula Martins está a ser alvo de forte contestação entre os técnicos de emergência pré-hospitalar e os trabalhadores do instituto. Em causa está o modelo criado por Luís Cabral para a emergência médica nos Açores, e que foi alvo de uma auditoria do Tribunal de Contas, divulgada em 2024, que aponta para várias ineficiências no socorro por parte daquele serviço, nomeadamente no tempo de resposta a situações graves e a elevada taxa de inoperacionalidade dos meios.
O presidente do Sindicato dos Técnicos de Emergência Pré-Hospitalar (STEPH), Rui Lázaro, alerta que “não se avizinham bons tempos para a emergência médica em Portugal” se, como o Observador antecipava no final de julho, Luís Cabral for nomeado. O dirigente sindical diz mesmo que os “portugueses devem ficar preocupados” com o modelo que poderá ser implementado a nível nacional, se o médico decidir replicar no continente o modelo que criou nos Açores. Também Vítor Almeida — o médico antestesista que chegou a ser convidado para liderar o INEM — critica a escolha do Governo para a liderança do instituto e avisa também que os portugueses “devem ficar apreensivos” com a mais que provável nomeação de Luís Cabral.
As regiões autónomas (Açores e Madeira) têm sistemas de saúde próprios e não fazem parte do SNS. A especificidade dos arquipélagos também se estende à área da emergência médica, que, nos Açores, é assegurada pelo Serviço Regional de Proteção Civil e Bombeiros dos Açores. É a esta entidade que cabe garantir os meios e a coordenação da resposta aos cerca de 250 mil habitantes das nove ilhas. O responsável clínico por esse serviço é, desde há alguns anos, o médico anestesista Luís Cabral, que entre 2012 e 2016 já tinha estado à frente da Secretaria Regional da Saúde do arquipélago. Anestesista há 15 anos, Luís Cabral tem também a competência em emergência médica e uma vasta experiência pré-hospitalar no INEM desde 2006.

Técnicos alertam que emergência médica poderá sair prejudicada com modelo dos Açores
A concretizar-se, a nomeação de Luís Cabral para a presidência do INEM deixa apreensivos os técnicos de emergência. “Esta nomeação preocupa-nos porque Luís Cabral tem defendido publicamente um modelo absolutamente contrário do que o Governo tem vindo a trilhar connosco e que Sérgio Janeiro [atual presidente do INEM] vinha implementando bem e com melhorias significativas”, diz Rui Lázaro. O dirigente sindical considera que “pode estar em causa o INEM e a capacidade de a emergência médica conseguir prestar melhores cuidados e salvar mais vidas”. Também o presidente da Associação Nacional dos Técnicos de Emergência Médica (ANTEM), Paulo Paço, diz ter “reservas” quanto à escolha do médico Luís Cabral e, sobretudo, quanto à “tentativa de importação do sistema de Açores para o continente”.
https://observador.pt/2025/07/31/medico-anestesista-luis-cabral-lidera-corrida-para-escolha-de-novo-presidente-do-inem/
Nos Açores, Luís Cabral implementou um sistema de emergência médica assente na triagem de Manchester (o mesmo sistema de triagem usado nos hospitais do SNS) e cujo socorro é apenas assegurado por enfermeiros e tripulantes de ambulância de socorro, os TAS — que são bombeiros. Um modelo que o médico defende ter gerado bons resultados, mas que técnicos de emergência pré-hospitalares e outros trabalhadores do INEM criticam, uma vez que, dizem, não é eficaz no socorro.
Nos Açores, e ao contrário do que é feito pelo INEM atualmente, a triagem de uma situação de emergência é médica é feita através dos protocolos de Manchester. “Esta triagem é desajustada, já nos hospitais não é muito eficaz. Portanto, transpô-la para uma linha telefónica é desajustado. Os países mais evoluídos que nós nunca foram por este caminho porque não traz melhorias. Apostam num sistema de triagem dedicado”, explica o presidente do STEPH, acrescentando que este tipo de triagem, a ser transposta para a emergência médica no continente, “vai colocar em causa a vida de muita gente”. A contestação dos técnicos à triagem de Manchester é transversal, com o presidente da ANTEM a defender que o país não teria enfermeiros suficientes para assegurar uma triagem deste tipo a nível nacional.
A chamada “sivização” do INEM — com o socorro assente em enfermeiros e bombeiros, ao invés de técnicos de emergência, enfermeiros e médicos (mesmo nos casos mais graves) — é outro ponto que promete, a ser implementado, gerar grande contestação no seio do INEM. “Este é um modelo que, além de ser muito caro — e o próprio relatório da IGF [Inspeção Geral de Finanças] ao INEM aponta que o modelo SIV é o mais dispendioso de todos —, é também ineficaz”, garante Rui Lázaro. Porquê? O dirigente sindical refere que “provoca uma maior demora na triagem e no acionamento dos meios de emergência e também na entrega do doentes ao hospital”.
A demora excessiva na triagem e na resposta é precisamente uma das conclusões que ressalta da auditoria do Tribunal de Contas ao Serviço Regional de Proteção Civil e Bombeiros dos Açores, divulgada em dezembro de 2024. A auditoria aponta várias falhas ao sistema de emergência médica no arquipélago. Segundo o relatório, o tempo médio de resposta às situações de prioridade vermelha, as mais graves, e que atinge quase os nove minutos, não cumpre os padrões internacionais.
Auditoria do Tribunal de Contas apontou falhas ao serviço de emergência liderado por Luís Cabral
Para além disso, a auditoria realça também a elevada taxa de inoperacionalidade do Serviço de Suporte Imediato de Vida (de 9,27%). Uma taxa que, aponta o documento, está “relacionada essencialmente com a falta de meios humanos, designadamente recursos de enfermagem e de forma residual Tripulantes de Ambulância”. O relatório sublinha também que na terceira maior ilha dos Açores, o Faial, não existe socorro durante a noite e deixa críticas à vertente financeira, ao referir que não é possível apurar a conformidade dos valores pagos aos bombeiros voluntários dos Açores pelo serviço de transporte, uma vez que o Serviço Regional de Proteção Civil e Bombeiros do Açores não audita o número de quilómetros realizados.
O problema da escassez de enfermeiros, que também atinge os Açores (como sublinha o Tribunal de Contas), é a prova, dizem os técnicos de emergência, de que não seria possível replicar o modelo insular a nível nacional. “Seria necessário aumentar o número de enfermeiros de forma exponencial”, alerta Paulo Paço, o que, alerta, é “difícil” tendo em conta a falta de profissionais.
“O modelo dos Açores é seis vezes mais caro que o do INEM. E fica dependente de muitos enfermeiros, que o país não tem. O INEM teria de contratar milhares de enfermeiros. Não é exequível, porque não temos esses enfermeiros disponíveis no mercado”, corrobora o presidente do STEPH. Para além disso, o modelo dos Açores dispensa as Viaturas Médicas de Emergência e Reanimação (VMER), tripulados por médicos, e acionadas habitualmente para os casos mais graves, algo que Rui Lázaro também critica. “A presença de médicos em qualquer serviço de emergência é fundamental, não só na vertente operacional mas também na vertente de regulação clínica”, defende.
“Estar a alterar o modelo por completo, ainda por cima substituindo-o por outro que o Tribunal de Contas classifica como dispendioso e ineficaz, [significará] que não se avizinham bons tempos para a emergência e para o socorro dos portugueses, que terão de ficar preocupados com o que terão pela frente”, alerta Rui Lázaro.
Em julho, quando foi contactado pelo Observador, Luís Cabral rebateu as críticas que já se faziam ouvir. “É um modelo que funciona e isso acaba por ser importante”, disse o médico, sublinhando que os Açores são a 4.ª melhor região da Europa na reversão de paragens cardiorrespiratórias.
Trabalhadores queriam continuidade de Sérgio Janeiro. Substituição criticada
Esta quinta-feira, o jornal Público noticiou que a ministra da Saúde, Ana Paula Martins, chamou o presidente do INEM, Sérgio Janeiro, para uma reunião para lhe comunicar que vai ser substituído à frente do instituto. A decisão de não recondução do médico internista é o culminar de um processo atribulado, que foi desencadeado pela demissão de Luís Meira, no ano passado. O concurso para a seleção do presidente do INEM foi lançado a 14 de novembro de 2024, logo a seguir à greve dos técnicos de emergência pré-hospitalar — que esteve associado à morte de três pessoas. Nessa altura, já Sérgio Janeiro ocupava o cargo em regime de substituição desde julho, tendo sido escolhido por Ana Paula Martins depois da saída de Luís Meira.
No entanto, a CReSAP não chegou a concluir o concurso lançado em novembro, por falta de candidatos para completar a chamada short list, que tem de incluir três nomes válidos. Assim, a 3 de janeiro de 2025 foi aberto um novo concurso para o lugar de presidente (juntamente com um outro destinado a preencher o lugar de vogal), e que foi concluído cerca de mês e meio depois. A 19 de fevereiro, a CReSAP enviou a short list ao Ministério da Saúde, na qual constava o nome de Sérgio Janeiro, Luís Cabral e do médico intensivista Nelson Pereira.
https://observador.pt/2025/01/09/conselheira-do-supremo-leonor-furtado-escolhida-pelo-governo-para-liderar-comissao-que-vai-refundar-o-inem/
O governo caiu entretanto, e o processo arrastou-se. Ao que o Observador apurou, o Ministério da Saúde quis esperar pela conclusão dos trabalhos da Comissão Técnica Independente (entretanto nomeada com a tarefa de avaliar o funcionamento do instituto e reformar o INEM) para comunicar formalmente a saída a Sérgio Janeiro. Isto embora a decisão de nomear Luís Cabral já tenha sido tomada há bastante mais tempo.
A decisão de não reconduzir no cargo Sérgio Janeiro é criticada pelos trabalhadores ouvidos pelo Observador. “O Dr. Sérgio Janeiro fez trabalho notável, conseguiu resolver problemas-chave (helicópteros, fez reformas no CODU [Centro de Orientação de Doentes Urgentes], deu passos importantes na área da formação, fez renovação da frota) e foi um homem de consensos. Foi um pacificador”, diz ao Observador o médico Vítor Almeida, que foi convidado para liderar o INEM em julho do ano passado. Chegou a aceitar o convite da ministra da Saúde, mas desistiu alegando falta de meios financeiros e condições para assumir a presidência.
O médico, que trabalha no INEM, diz que o instituto está agora “numa fase de estabilidade”, e que não é desejável uma mudança de liderança nesta altura. “Não podemos andar constantemente em mudanças. Esta mudança preocupa-me e deve preocupar os portugueses. Estando o INEM numa fase de estabilização, com reforço de meios e com problemas-chave praticamente resolvidos, surpreende-me esta mudança de rumo, que me deixa apreensivo e que deve deixar os portugueses apreensivos”, refere Vítor Almeida, recusando tecer mais comentários acerca do colega Luís Cabral. O médico adianta que já foi chamado pela Comissão Parlamentar de Inquérito ao INEM, que deverá iniciar os trabalhos nas próximas semanas, e que responderá a todas as perguntas na Assembleia da República.
Já o presidente do STEPH também critica a mudança na liderança do INEM. “Era sensato apostar na continuidade. O INEM apresenta uma melhoria no tempo de atendimento, melhoria na redução do número de ambulâncias paradas por falta de técnicos, o INEM conseguiu contratar mais técnicos. E por isso é de todo desajustada esta alteração, sobretudo quando estamos a poucos dias de conhecer o relatório da CTI que vai propor a refundação do INEM”, refere Rui Lázaro.

O sindicato que representa os técnicos de emergência pré-hospitalar enviou uma carta ao primeiro-ministro, Luís Montenegro, na passada segunda-feira, e à qual o Observador teve acesso, em que sublinha que a nomeação de Luís Cabral “suscita muitas e legítimas preocupações entre os profissionais do setor” e alerta que a escolha pode representar um “retrocesso” no INEM.
“Temos a certeza de que esta decisão pode representar um retrocesso no caminho de cooperação e modernização que vinha sendo trilhado, colocando em causa o espírito de confiança e estabilidade que tem sido cuidadosamente construído”, refere a missiva. Assim, o STEPH “apela” a Luís Montenegro “que reavalie esta eventual nomeação, garantindo que a escolha para a presidência do INEM seja orientada pelos princípios da competência, da continuidade e do interesse público”. Ao Observador, Rui Lázaro diz que, para já, não está prevista nenhuma forma organizada de protesto mas não descarta que tal possa vir a acontecer. Aliás, na carta, o STEPH pede ao primeiro-ministro que reavalie a nomeação “de forma que não venham a ser colocadas em causa as boas condições que nos trem permitido trabalhar em soluções com o governo”.
Esta sexta-feira de manhã, a ministra da Saúde disse aos jornalistas em Matosinhos que o Ministério está “muito grato” a Sérgio Janeiro, “por ter abraçado esta missão num período tão difícil depois da demissão do anterior presidente do INEM”. Recusando confirmar que Luís Cabral é o escolhido, Ana Paula Martins afirmou que o Governo irá “anunciar, em tempo oportuno”, a decisão que foi tomada. Quanto a Sérgio Janeiro, a ministra garantiu que não há qualquer ressentimento na saída. “Pelo contrário, de maneira nenhuma”, afirmou: “Esperamos poder contar com o Dr. Sérgio Janeiro para outros projetos na área de saúde.”
O Observador tentou contactar Luís Cabral no âmbito deste artigo, mas não obteve resposta.
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