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(A) :: Futuro presidente do INEM contestado por modelo de socorro que aplicou nos Açores. "Portugueses devem ficar preocupados"

Futuro presidente do INEM contestado por modelo de socorro que aplicou nos Açores. "Portugueses devem ficar preocupados"

Sérgio Janeiro está de saída e o modelo de emergência médica dos Açores, a cargo de Luís Cabral (que será nomeado em breve), suscita críticas e alertas. Técnicos de emergência dizem que é "ineficaz".

Tiago Caeiro
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O médico anestesista Luís Cabral, que é a escolha da ministra da Saúde para liderar o Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM), tem uma larga experiência na área e lidera atualmente o Serviço Regional de Proteção Civil e Bombeiros dos Açores, que tem a cargo a emergência médica do arquipélago. Mas o nome escolhido por Ana Paula Martins está a ser alvo de forte contestação entre os técnicos de emergência pré-hospitalar e os trabalhadores do instituto. Em causa está o modelo criado por Luís Cabral para a emergência médica nos Açores, e que foi alvo de uma auditoria do Tribunal de Contas, divulgada em 2024, que aponta para várias ineficiências no socorro por parte daquele serviço, nomeadamente no tempo de resposta a situações graves e a elevada taxa de inoperacionalidade dos meios.

O presidente do Sindicato dos Técnicos de Emergência Pré-Hospitalar (STEPH), Rui Lázaro, alerta que “não se avizinham bons tempos para a emergência médica em Portugal” se, como o Observador antecipava no final de julho, Luís Cabral for nomeado. O dirigente sindical diz mesmo que os “portugueses devem ficar preocupados” com o modelo que poderá ser implementado a nível nacional, se o médico decidir replicar no continente o modelo que criou nos Açores. Também Vítor Almeida — o médico antestesista que chegou a ser convidado para liderar o INEM — critica a escolha do Governo para a liderança do instituto e avisa também que os portugueses “devem ficar apreensivos” com a mais que provável nomeação de Luís Cabral.

As regiões autónomas (Açores e Madeira) têm sistemas de saúde próprios e não fazem parte do SNS. A especificidade dos arquipélagos também se estende à área da emergência médica, que, nos Açores, é assegurada pelo Serviço Regional de Proteção Civil e Bombeiros dos Açores. É a esta entidade que cabe garantir os meios e a coordenação da resposta aos cerca de 250 mil habitantes das nove ilhas. O responsável clínico por esse serviço é, desde há alguns anos, o médico anestesista Luís Cabral, que entre 2012 e 2016 já tinha estado à frente da Secretaria Regional da Saúde do arquipélago. Anestesista há 15 anos, Luís Cabral tem também a competência em emergência médica e uma vasta experiência pré-hospitalar no INEM desde 2006.

Técnicos alertam que emergência médica poderá sair prejudicada com modelo dos Açores

A concretizar-se, a nomeação de Luís Cabral para a presidência do INEM deixa apreensivos os técnicos de emergência. “Esta nomeação preocupa-nos porque Luís Cabral tem defendido publicamente um modelo absolutamente contrário do que o Governo tem vindo a trilhar connosco e que Sérgio Janeiro [atual presidente do INEM] vinha implementando bem e com melhorias significativas”, diz Rui Lázaro. O dirigente sindical considera que “pode estar em causa o INEM e a capacidade de a emergência médica conseguir prestar melhores cuidados e salvar mais vidas”. Também o presidente da Associação Nacional dos Técnicos de Emergência Médica (ANTEM), Paulo Paço, diz ter “reservas” quanto à escolha do médico Luís Cabral e, sobretudo, quanto à “tentativa de importação do sistema de Açores para o continente”.

https://observador.pt/2025/07/31/medico-anestesista-luis-cabral-lidera-corrida-para-escolha-de-novo-presidente-do-inem/

Nos Açores, Luís Cabral implementou um sistema de emergência médica assente na triagem de Manchester (o mesmo sistema de triagem usado nos hospitais do SNS) e cujo socorro é apenas assegurado por enfermeiros e tripulantes de ambulância de socorro, os TAS — que são bombeiros. Um modelo que o médico defende ter gerado bons resultados, mas que técnicos de emergência pré-hospitalares e outros trabalhadores do INEM criticam, uma vez que, dizem, não é eficaz no socorro.

Nos Açores, e ao contrário do que é feito pelo INEM atualmente, a triagem de uma situação de emergência é médica é feita através dos protocolos de Manchester. “Esta triagem é desajustada, já nos hospitais não é muito eficaz. Portanto, transpô-la para uma linha telefónica é desajustado. Os países mais evoluídos que nós nunca foram por este caminho porque não traz melhorias. Apostam num sistema de triagem dedicado”, explica o presidente do STEPH, acrescentando que este tipo de triagem, a ser transposta para a emergência médica no continente, “vai colocar em causa a vida de muita gente”. A contestação dos técnicos à triagem de Manchester é transversal, com o presidente da ANTEM a defender que o país não teria enfermeiros suficientes para assegurar uma triagem deste tipo a nível nacional.

“O modelo dos Açores é seis vezes mais caro que o do INEM. E fica dependente de muitos enfermeiros, que o país não tem"
Rui Lázaro, presidente do Sindicato dos Técnicos de Emergência Pré-Hospitalar

A chamada “sivização” do INEM — com o socorro assente em enfermeiros e bombeiros, ao invés de técnicos de emergência, enfermeiros e médicos (mesmo nos casos mais graves) — é outro ponto que promete, a ser implementado, gerar grande contestação no seio do INEM. “Este é um modelo que, além de ser muito caro — e o próprio relatório da IGF [Inspeção Geral de Finanças] ao INEM aponta que o modelo SIV é o mais dispendioso de todos —, é também ineficaz”, garante Rui Lázaro. Porquê? O dirigente sindical refere que “provoca uma maior demora na triagem e no acionamento dos meios de emergência e também na entrega do doentes ao hospital”.

A demora excessiva na triagem e na resposta é precisamente uma das conclusões que ressalta da auditoria do Tribunal de Contas ao Serviço Regional de Proteção Civil e Bombeiros dos Açores, divulgada em dezembro de 2024. A auditoria aponta várias falhas ao sistema de emergência médica no arquipélago. Segundo o relatório, o tempo médio de resposta às situações de prioridade vermelha, as mais graves, e que atinge quase os nove minutos, não cumpre os padrões internacionais.

Auditoria do Tribunal de Contas apontou falhas ao serviço de emergência liderado por Luís Cabral

Para além disso, a auditoria realça também a elevada taxa de inoperacionalidade do Serviço de Suporte Imediato de Vida (de 9,27%). Uma taxa que, aponta o documento, está “relacionada essencialmente com a falta de meios humanos, designadamente recursos de enfermagem e de forma residual Tripulantes de Ambulância”. O relatório sublinha também que na terceira maior ilha dos Açores, o Faial, não existe socorro durante a noite e deixa críticas à vertente financeira, ao referir que não é possível apurar a conformidade dos valores pagos aos bombeiros voluntários dos Açores pelo serviço de transporte, uma vez que o Serviço Regional de Proteção Civil e Bombeiros do Açores não audita o número de quilómetros realizados.

O problema da escassez de enfermeiros, que também atinge os Açores (como sublinha o Tribunal de Contas), é a prova, dizem os técnicos de emergência, de que não seria possível replicar o modelo insular a nível nacional. “Seria necessário aumentar o número de enfermeiros de forma exponencial”, alerta Paulo Paço, o que, alerta, é “difícil” tendo em conta a falta de profissionais.

“O modelo dos Açores é seis vezes mais caro que o do INEM. E fica dependente de muitos enfermeiros, que o país não tem. O INEM teria de contratar milhares de enfermeiros. Não é exequível, porque não temos esses enfermeiros disponíveis no mercado”, corrobora o presidente do STEPH. Para além disso, o modelo dos Açores dispensa as Viaturas Médicas de Emergência e Reanimação (VMER), tripulados por médicos, e acionadas habitualmente para os casos mais graves, algo que Rui Lázaro também critica. “A presença de médicos em qualquer serviço de emergência é fundamental, não só na vertente operacional mas também na vertente de regulação clínica”, defende.

“Estar a alterar o modelo por completo, ainda por cima substituindo-o por outro que o Tribunal de Contas classifica como dispendioso e ineficaz, [significará] que não se avizinham bons tempos para a emergência e para o socorro dos portugueses, que terão de ficar preocupados com o que terão pela frente”, alerta Rui Lázaro.

Em julho, quando foi contactado pelo Observador, Luís Cabral rebateu as críticas que já se faziam ouvir. “É um modelo que funciona e isso acaba por ser importante”, disse o médico, sublinhando que os Açores são a 4.ª melhor região da Europa na reversão de paragens cardiorrespiratórias.

Trabalhadores queriam continuidade de Sérgio Janeiro. Substituição criticada

Esta quinta-feira, o jornal Público noticiou que a ministra da Saúde, Ana Paula Martins, chamou o presidente do INEM, Sérgio Janeiro, para uma reunião para lhe comunicar que vai ser substituído à frente do instituto. A decisão de não recondução do médico internista é o culminar de um processo atribulado, que foi desencadeado pela demissão de Luís Meira, no ano passado. O concurso para a seleção do presidente do INEM foi lançado a 14 de novembro de 2024, logo a seguir à greve dos técnicos de emergência pré-hospitalar — que esteve associado à morte de três pessoas. Nessa altura, já Sérgio Janeiro ocupava o cargo em regime de substituição desde julho, tendo sido escolhido por Ana Paula Martins depois da saída de Luís Meira.

No entanto, a CReSAP não chegou a concluir o concurso lançado em novembro, por falta de candidatos para completar a chamada short list, que tem de incluir três nomes válidos. Assim, a 3 de janeiro de 2025 foi aberto um novo concurso para o lugar de presidente (juntamente com um outro destinado a preencher o lugar de vogal), e que foi concluído cerca de mês e meio depois. A 19 de fevereiro, a CReSAP enviou a short list ao Ministério da Saúde, na qual constava o nome de Sérgio Janeiro, Luís Cabral e do médico intensivista Nelson Pereira.

https://observador.pt/2025/01/09/conselheira-do-supremo-leonor-furtado-escolhida-pelo-governo-para-liderar-comissao-que-vai-refundar-o-inem/

O governo caiu entretanto, e o processo arrastou-se. Ao que o Observador apurou, o Ministério da Saúde quis esperar pela conclusão dos trabalhos da Comissão Técnica Independente (entretanto nomeada com a tarefa de avaliar o funcionamento do instituto e reformar o INEM) para comunicar formalmente a saída a Sérgio Janeiro. Isto embora a decisão de nomear Luís Cabral já tenha sido tomada há bastante mais tempo.

A decisão de não reconduzir no cargo Sérgio Janeiro é criticada pelos trabalhadores ouvidos pelo Observador. “O Dr. Sérgio Janeiro fez trabalho notável, conseguiu resolver problemas-chave (helicópteros, fez reformas no CODU [Centro de Orientação de Doentes Urgentes], deu passos importantes na área da formação, fez renovação da frota) e foi um homem de consensos. Foi um pacificador”, diz ao Observador o médico Vítor Almeida, que foi convidado para liderar o INEM em julho do ano passado. Chegou a aceitar o convite da ministra da Saúde, mas desistiu alegando falta de meios financeiros e condições para assumir a presidência.

O médico, que trabalha no INEM, diz que o instituto está agora “numa fase de estabilidade”, e que não é desejável uma mudança de liderança nesta altura. “Não podemos andar constantemente em mudanças. Esta mudança preocupa-me e deve preocupar os portugueses. Estando o INEM numa fase de estabilização, com reforço de meios e com problemas-chave praticamente resolvidos, surpreende-me esta mudança de rumo, que me deixa apreensivo e que deve deixar os portugueses apreensivos”, refere Vítor Almeida, recusando tecer mais comentários acerca do colega Luís Cabral. O médico adianta que já foi chamado pela Comissão Parlamentar de Inquérito ao INEM, que deverá iniciar os trabalhos nas próximas semanas, e que responderá a todas as perguntas na Assembleia da República.

Já o presidente do STEPH também critica a mudança na liderança do INEM. “Era sensato apostar na continuidade. O INEM apresenta uma melhoria no tempo de atendimento, melhoria na redução do número de ambulâncias paradas por falta de técnicos, o INEM conseguiu contratar mais técnicos. E por isso é de todo desajustada esta alteração, sobretudo quando estamos a poucos dias de conhecer o relatório da CTI que vai propor a refundação do INEM”, refere Rui Lázaro.

O sindicato que representa os técnicos de emergência pré-hospitalar enviou uma carta ao primeiro-ministro, Luís Montenegro, na passada segunda-feira, e à qual o Observador teve acesso, em que sublinha que a nomeação de Luís Cabral “suscita muitas e legítimas preocupações entre os profissionais do setor” e alerta que a escolha pode representar um “retrocesso” no INEM.

“Temos a certeza de que esta decisão pode representar um retrocesso no caminho de cooperação e modernização que vinha sendo trilhado, colocando em causa o espírito de confiança e estabilidade que tem sido cuidadosamente construído”, refere a missiva. Assim, o STEPH “apela” a Luís Montenegro “que reavalie esta eventual nomeação, garantindo que a escolha para a presidência do INEM seja orientada pelos princípios da competência, da continuidade e do interesse público”. Ao Observador, Rui Lázaro diz que, para já, não está prevista nenhuma forma organizada de protesto mas não descarta que tal possa vir a acontecer. Aliás, na carta, o STEPH pede ao primeiro-ministro que reavalie a nomeação “de forma que não venham a ser colocadas em causa as boas condições que nos trem permitido trabalhar em soluções com o governo”.

Esta sexta-feira de manhã, a ministra da Saúde disse aos jornalistas em Matosinhos que o Ministério está “muito grato” a Sérgio Janeiro, “por ter abraçado esta missão num período tão difícil depois da demissão do anterior presidente do INEM”. Recusando confirmar que Luís Cabral é o escolhido, Ana Paula Martins afirmou que o Governo irá “anunciar, em tempo oportuno”, a decisão que foi tomada. Quanto a Sérgio Janeiro, a ministra garantiu que não há qualquer ressentimento na saída. “Pelo contrário, de maneira nenhuma”, afirmou: “Esperamos poder contar com o Dr. Sérgio Janeiro para outros projetos na área de saúde.”

O Observador tentou contactar Luís Cabral no âmbito deste artigo, mas não obteve resposta.

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