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(A) :: Se o silêncio vale ouro, porque é que há tanto ruído nesta história?

Se o silêncio vale ouro, porque é que há tanto ruído nesta história?

Alain Corbin, reputado “historiador das sensibilidades”, propôs-se escrever a história de um bem cada vez mais raro. Porém, sob a aparência de erudição, "História do silêncio" revela-se insubstancial.

José Carlos Fernandes
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Fazer uma história do silêncio é, à partida, um desafio tremendo, uma vez que nem o silêncio nem o seu negativo, o ruído, são fenómenos transitórios que não deixam qualquer vestígio directo. Não há datação por carbono, nem análise de DNA, nem palinologia, nem LiDAR, nem tomografia de muões que ajudem a reconstruir a paisagem sonora do passado. E mesmo após a invenção de dispositivos de gravação de som – o primeiro a ser patenteado foi o “phonoautographe” de Édouard-Léon Scott de Martinville, em 1857 – as suas limitações ditaram, durante muito tempo, que apenas fossem registados determinados tipos de sons (antes de mais, música e discursos) e em determinadas circunstâncias. A história do silêncio e da forma como as sociedades de diferentes tempos e lugares o entenderam requer, pois, que se façam inferências a partir da análise de decretos, regulamentos municipais, relatórios das forças da ordem, decisões de tribunais, crónicas, notícias de jornal, diários e outros documentos que aludam à produção de sons e à sua ausência.

O historiador francês Alain Corbin (n.1936) tem mostrado particular inclinação para o que podemos designar como a “história da insubstancialidade”: na sua vasta bibliografia contam-se histórias da alegria (Histoire de la joie, 2024), do repouso (Histoire du repos, 2022, editado em Portugal pela Quetzal), do vento (La rafale et le zéphyr, 2021), da ignorância (Terra incognita, 2020), das emoções (La fraîcheur de l’herbe, 2018), da sombra das árvores (La douceur de l’ombre, 2013) ou dos cheiros (Le miasme et la jonquille, 1982). Chega agora a Portugal, pela mão da Quetzal, a sua Histoire du silence: De la Renaissance à nos jours (2016), com o título História do silêncio: Do Renascimento aos nossos dias e tradução de Antonio Sabler.

Um livro que ficou por escrever

Corbin já aflorara o tema dos ambientes sonoros de épocas pretéritas em Les cloches de la terre: Paysage sonore et culture sensible dans les campagnes au XIXe siècle (1991), mas, desta feita, o escopo é muito mais amplo – ou, pelo menos, é isso que o título sugere. Infelizmente, o conteúdo efectivo fica muito longe de cumprir o prometido pelo título e acaba por ser uma divagação indisciplinada e ociosa sobre a presença do silêncio nas artes & letras.

A maior parte do livro poderia ser descrito por um título como “Notas sobre referências ao silêncio nalguns escritores francófonos do século XIX e início do século XX”, mas há também considerações sobre o silêncio na pintura, que, bizarramente, ocupam a maior parte do capítulo intitulado “A palavra do silêncio”, e em que Corbin dá mostras de ser incapaz de distinguir pintores que, efectivamente, tornaram o silêncio visível, como Georges de La Tour, Caspar David Friedrich, Edward Hopper e Arnold Böcklin, e outros que apenas estão relacionados com o silêncio por a pintura ser, por definição, uma arte silenciosa (Fra Angelico, Piero della Francesca, Raffaello, Rembrandt).

Na maior parte do livro, Corbin limita-se a coser, displicentemente, uma manta de retalhos de excertos de livros, diários e declarações de homens de letras tendo por tema o silêncio, invariavelmente para enaltecê-lo como origem e garante de numerosas virtudes. No capítulo “Aprendizagens e disciplinas do silêncio”, Corbin deixa a esfera das artes & letras para produzir considerações sobre o ruído na esfera concreta, mas é incapaz de, sobre este assunto, dizer mais do que bocejantes banalidades: “a imposição de silêncio diz respeito a lugares privilegiados: as igrejas, as escolas, colégios e liceus, o exército […]. No seio da igreja, o silêncio é sinal de respeito, de autodomínio, de capacidade de dominar os ímpetos. […] A celebração do culto é ela mesma uma escola de silêncio e de resguardo de toda a agitação. As crianças devem privar-se de falar e, em maior medida, de gritar no interior da igreja e na sua vizinhança” (pg. 78-79). Após brindar o leitor com lugares comuns sobre o silêncio nos estabelecimentos de ensino, afirma que, no exército (talvez queira dizer “nas forças armadas”), “o ‘silêncio nas fileiras’ constitui até hoje uma prática ritual”. Menciona, a seguir, a prática do “‘minuto de silêncio’, cuja história, tanto quanto sei, está por fazer” – mas não seria precisamente num livro intitulado “História do silêncio” que se esperaria que essa história fosse contada?

Corbin logo salta para as “disciplinas de silêncio impostas pelo código de etiqueta”, sobre as quais se limita a constatar, recorrendo à baronesa de Staffe, que “as crianças devem calar-se na presença dos adultos, sobretudo quando estes tomam a palavra”, e que os servos e trabalhadores agrícolas estavam obrigados a análoga atitude perante os seus patrões.

Por altura da pg. 83, o leitor descobre que já está “no início do século XIX”, sem que lhe tenha sido fornecida informação sobre o papel do silêncio nos séculos anteriores. Na verdade, Corbin também pouco tem a dizer sobre o silêncio no início do século XIX, um tempo “em que saber calar-se, saber guardar silêncio, face à algazarra apreciada pelo povo, participa de um processo de distinção”. E bastam mais duas páginas de lugares-comuns para chegar aos nossos dias: “Embora não seja possível datá-las, mesmo aproximadamente, houve uma modificação e uma moderação das imposições e das disciplinas do silêncio na época contemporânea. Muitos benefícios até então atribuídos ao silêncio desapareceram, enquanto pouco a pouco se produzia uma metamorfose das maneiras de o sentir”. Simultaneamente, “um abaixamento do limite de tolerância ao ruído e à algazarra no Ocidente, desde o início do século XIX, veio sobrepor-se a todos esses processos” (pg. 85). Após meia página a descrever o que seria a algazarra nas cidades do início do século XIX (à qual o autor não associa a Revolução Industrial – termo que, surpreendentemente, não figura no livro, embora aquela tenha alterado radicalmente os padrões de silêncio e ruído), Corbin afirma que “a partir de meados do século [XIX], baixa o limite de tolerância ao ruído” (pg. 86), de forma que, nas cidades, “quase só restam os clamores dos ardinas e a lábia dos vendedores ambulantes” (pg. 88).

Após uma menção à I Guerra Mundial e à “guerra industrial […], um inferno sonoro, um grande tumulto, obsessivo e ininterrupto” (pg. 89), afirma, numa desconcertante elipse: “É então que no centro da cidade surgem sinais que intimam ao silêncio. Os mais característicos são aqueles onde figura a fórmula ‘Hospital: silêncio’” (pg. 90). A associação de ideias prossegue em roda livre: “Consideremos, excepcionalmente, a época actual. Levantar a voz num comboio é considerado uma perturbação, porque os viajantes querem silêncio. […] É igualmente apreciado o silêncio durante uma viagem de avião; quebrá-lo pode ser considerado indelicadeza. Tal como num cinema” (pg. 90).

Aqui chegado, mesmo o leitor mais benevolente ou ingénuo se interrogará se Alain Corbin estará a divertir-se à sua custa desde a primeira página ou se estas reflexões de estarrecedora indigência são mesmo o melhor que o autor conseguiu produzir sobre o tema.

“Os bosques têm pois também o seu modo de calar”

No capítulo “Os silêncios da natureza”, Corbin evoca dezenas de escritores – quase todos franceses activos na viragem dos séculos XIX/XX – que dissertaram sobre o majestoso silêncio que impera nos espaços naturais, mas a maior parte dos fragmentos citados revela um forte enviesamento das percepções. É certo que os espaços urbanos tendem a ser objectivamente mais ruidoso do que os espaços naturais, sobretudo quando se consideram as regiões mais áridas, glaciais ou rochosas, onde pouco mais se faz ouvir do que o sopro do vento. Porém, há que levar em conta que o sentido auditivo do urbanita – e o escritor é uma criatura essencialmente urbana – foi adaptando-se, ao longo de gerações, para dar atenção sobretudo aos ruídos produzidos pelos seus semelhantes e pelos veículos, gadgets, electrodomésticos e restantes equipamentos da panóplia civilizacional. Assim sendo, tem dificuldade em distinguir, identificar e interpretar os elementos da paisagem sonora “campestre” e, por vezes, chama “silêncio” à mera ausência de ruídos de fontes antrópicas.

Basta lembrar que há regiões geográficas e períodos do ano em que mesmo os espaços com rarefeita presença humana registam níveis sonoros capazes de rivalizar com zonas urbanas: poucos humanos terão a oportunidade de visitar as cacofónicas colónias de aves marinhas que se formam na época de reprodução em costas remotas, mas quem já tenha tido a experiência, muito comum, de passar alguns dias num espaço rural das zonas mediterrânicas, entre Junho e Setembro, estará consciente de que, durante boa parte do período diurno, o ambiente sonoro é completamente dominado pelo estridular das cigarras, que, nalgumas circunstâncias, anda perto dos 80-90 dB que podem ser experimentados numa rua com tráfego intenso ou numa oficina metalomecânica, ou junto de um aspirador ou de uma máquina de cortar relva, e não é menos agressivo e massacrante (quem fala de “canto das cigarras” ou tem escassa experiência fora das zonas urbanas ou é duro de ouvido). Mas as regiões mediterrânicas estão longe de ser o único habitat da superfamília Cicadoidea, cujas 3000 espécies se distribuem por todos os continentes, com excepção da Antártida.

No tempo dos autores amiúde citados por Corbin – François-René de Chateubriand (1768-1848), Victor Hugo (1802-1885), Jules Barbey d’Aurevilly (1808-1889), Leconte de Lisle (1818-1894), Sully Prudhomme (1839-1907, autor da linha que serve de título a este capítulo), Émile Zola (1840-1902), ou Max Picard (1888-1965) – o campo era mais silencioso do que hoje. Porém, as fainas agrícolas e a limpeza e manutenção de espaços verdes mecanizaram-se; as festas de aldeia passaram a ser abrilhantadas por acordeonistas MIDI, por amplificação sonora digna de concerto de rock e por espalhafatosos espectáculos pirotécnicos; os caminhos rurais converteram-se em palco da recreação motorizada (motocross, moto quatro, raids todo-o-terreno, etc.); a caça com armas de fogo “democratizou-se”, deixando de ser privilégio da elite aristocrática e convertendo-se em hobby da classe média.

A mecanização da agricultura levou à redução substancial da mão-de-obra, pelo que os trabalhadores rurais são apenas uma pequena fracção da população das zonas rurais, hoje maioritariamente constituída por reformados, veraneantes, nómadas digitais e urbanitas fartos da vida citadina e seduzidos por uma visão romântica e irrealista da vida campestre. Uma vez que esta população tem a mentalidade e os hábitos do burguês urbano e dispõe de tempo livre e a moradia rural oferece mais desafogo do que o apartamento urbano, também aumentou o número de cães, e como estes já não desempenham tarefa alguma – a figura do animal de trabalho está em vias de extinção – e estão reduzidos à triste condição de “animais de companhia”, ocupam-se, como escape para o tédio, a frustração e a neurastenia, a ladrar ao mais pequeno pretexto, por vezes contagiando todos os companheiros de infortúnio num raio de quilómetros e gerando um coro cósmico e auto-sustentado de histeria canina. Em contrapartida, o mais conspícuo, doce e celebrado som da natureza – o canto das aves – definhou: a conversão dos habitats naturais em explorações agrícolas e “florestas de produção” cria vastas áreas artificializadas, cuja monotonia botânica não proporciona alimento nem abrigo para as aves; por outro lado, o uso liberal de pesticidas, a caça e as legiões de gatos domésticos e assilvestrados infligem-lhes pesadas baixas.

Nos últimos 100 a 150 anos, o silêncio e os sons da natureza sofreram alterações radicais, mas Corbin, preso à imagem idealizada e bucólica do campo forjada pelo Romantismo, não tem uma palavra a dizer sobre o assunto.

A arte de calar

No capítulo “Aprendizagens e disciplinas do silêncio”, Corbin dilata o conceito de silêncio para englobar o comportamento, mais extrovertido ou mais reservado, do indivíduo no seio da sociedade. Segundo Corbin, “saber calar-se, ser discreto, torna-se o fundamento da esfera privada, em plena ascensão a partir de finais do século XVIII. Ela assenta no segredo ou, pelo menos, na estrita delimitação da sua circulação” (pg. 84).

Corbin retoma o tema do silêncio nas relações sociais no capítulo “As tácticas do silêncio”, lembrando trechos de autores ilustres de diferentes épocas que advogam o máximo de discrição. Nos Dísticos de Catão, compilação de sabedoria proverbial dos séculos III-IV a.C., atribuída a um certo Dionísio Catão, lê-se “Não há perigo algum em calar-se, pode havê-lo em falar”; o ensaísta e filósofo Alain (pseudónimo de Émile-Auguste Charlier) recomendava, no seu Propos de 20.11.1927, “Tenta pois refrear a tua língua durante um dia; e no dia seguinte, como serão mais claros os teus desígnios e os teus deveres!”. No Oráculo manual y arte de prudencia (1647), o padre jesuíta e filósofo Baltasar Gracián advertia que “o cortesão deve sempre reflectir antes de dizer o que lhe ocorre ao espírito. Os que dão provas de um excesso de loquacidade não tardam em tornar-se ‘estúpidos e inertes’”. Gracián tem uma visão tão frugal e severa da gestão do discurso que vai ao ponto de recomendar que “há que falar como quem dita o seu testamento”.

Entre os autores dos séculos XVII e XVIII citados por Corbin que colocam ênfase na máxima contenção no uso da palavra está o abade Dinouart (Joseph Antoine Toussaint Dinouart, 1716-1786), autor de A arte de calar (1771, L’art de se taire), que é, porventura, a mais difundida entre várias obras com títulos e intenções análogas surgidas na mesma época – Corbin não o menciona, mas os argumentos expostos em A arte de calar inspiram-se (o próprio Dinouart o reconhece) em Conduite pour se taire et pour parler (1696), de Jean-Baptiste Morvan de Bellegarde (outro jesuíta), e é provável que a reedição desta obra, em 1771, tenha sido o que estimulou Dinouart a redigir o seu tratado sobre o mesmo tema.

Nas pg. 123-24, Corbin cita por duas vezes Le silence: Étude morale et littéraire (1885), de Émile Moulin – fá-lo de passagem e sem mencionar que a obra, que é a versão impressa da palestra homónima, proferida, a 2 de Maio de 1885, na Académie des Sciences, Belles-Lettres et Arts de Montauban, é uma das primeiras reflexões aprofundadas sobre o silêncio numa perspectiva histórica, literária e social, tendo, portanto, escopo similar ao do livro de Corbin. As afinidades entre os ensaios de Corbin e Moulin não se ficam por aqui: nas considerações que autores pretéritos produziram sobre o silêncio desfiadas em História do silêncio há trechos que decalcam a palestra de Moulin, mas sem que Corbin identifique essa proveniência. Pode extrair-se daqui uma lição: o silêncio nem sempre é sinal de discrição e modéstia – serve também para ocultar actos desonestos e censuráveis.

O que levará alguém com dois doutoramentos (um em Limoges, outro na Universidade Blaise-Pascal, em Clermont-Ferrand), que foi professor nas universidades de Limoges e de Tours e na Sorbonne e é visto como uma autoridade na área da história social e, em particular, na história das sensibilidades, e que, nesta área, publicou abundante e aclamada bibliografia, a correr o risco de ser acusado de plágio? Talvez uma combinação de displicência e de excesso de confiança. Quanto à displicência, é evidente em História do silêncio que Corbin não está para se dar ao trabalho de conduzir uma pesquisa séria nem de produzir pensamento original e produtivo, talvez por crer que o seu talento está tão acima do comum dos mortais que qualquer coisa que escreva bastará para satisfazer o leitor. Quanto ao excesso de confiança, tem duas componentes: por um lado, Corbin estará bem ciente de que o seu imponente curriculum dissuadirá críticas negativas e de que só um sandeu ousará contestar a autoridade de um-professor-doutor-da-Sorbonne-meu-Deus! e apontar-lhe debilidades, para mais no seu território de eleição. Por outro lado, Corbin terá também calculado que uma palestra proferida há século e meio por um obscuro membro de uma obscura agremiação intelectual de província (e cuja versão em papel não voltou a ser reimpressa desde então) tombou num olvido tão completo que pode ser “pilhada” sem receio.

Do elogio do silêncio ao culto da estridência

Se, para fazer a história do silêncio até ao final do século XIX, Corbin conta, em parte, com a “reciclagem” de trabalho alheio, no que toca à forma como o silêncio nas relações sociais é encarado no presente opta pelo mutismo. A formidável mudança comportamental desencadeada pelas redes (ditas) sociais, que fez de cada indivíduo com acesso à Internet um parlapatão incontinente e da jactância uma virtude não lhe merece uma linha sequer.

Os conselhos em prol da reserva, da ponderação e do uso judicioso das palavras, dispensadas pelos filósofos e moralistas da Antiguidade Clássica até ao século XIX, deram lugar à autopublicitação estridente e despudorada. “Hoje em dia, ‘the name of the game’ é notoriedade” – assim era sintetizado o espírito do século XXI por António Câmara, co-fundador e CEO da YDreams, em entrevista a uma rádio portuguesa, há uma vintena de anos, quando aquela empresa de tecnologias interactivas era a coqueluche das startups portuguesas e parecia ir conquistar o mundo (antes de se despenhar e de, em 2015, ter ficado à beira da insolvência). Esta sofreguidão por notoriedade, que, pelo menos desde a viragem dos séculos XIX/XX, se tornou central na vida empresarial, com cada produtor/comercializador de bens e serviços a tentar gritar mais alto do que os seus concorrentes e a gastar fortunas na contratação dos propagandistas mais afamados, foi multiplicada pelas redes (ditas) sociais, que fizeram da notoriedade a preocupação constante de todos os indivíduos, por mais anódinos e desprovidos de qualidades distintivas que sejam (ver capítulos “De acordo com o hábito das ovelhas” e “Um grande buraco no centro da vida” em A filosofia da Antiguidade tem alguma utilidade no século XXI?).

O cidadão comum tornou-se no consultor de relações públicas de si mesmo, permanentemente absorvido pela tarefa de dilatar a sua nomeada. Cada página de Facebook, Instagram ou TikTok é uma montra das virtudes do seu “proprietário” e das proezas, conseguimentos e eventos que pontuam o seu bocejante e espapaçado quotidiano, da “açaí bowl” do pequeno-almoço à constipação do hamster de estimação, da unha encravada ao novo espiralizador de legumes, das férias em regime de pensão completa num resort na República Dominicana à drenagem de um furúnculo. Neste ambiente em que a estultícia e a filáucia não conhecem limite, há quem se convença de que poderá conquistar crédito na sociedade e subir um degrau na escadaria que conduz à fama universal exibindo no Facebook os dois pimentos colhidos de um vaso na marquise que designa como “o meu projecto de agricultura biológica” ou protagonizando, no YouTube, um “unboxing & review video” de um pacote de 4 x 12 rolos de papel higiénico ultra-suave de marca branca (ver capítulo “A dança das galáxias em torno do meu umbigo” em Mariano Sigman e a arte da conversa de treta).

[Desembalamento e crítica a papel higiénico ultra-suave. O esforço deste YouTuber foi recompensado com 3600 visualizações, 27 “likes” e três comentários, um para manifestar gratidão, outro para informar o mundo da satisfação do internauta com a recente aquisição de uma embalagem de 120 sacos para o lixo por 14.49 dólares e outro para indagar em que país foi filmado o vídeo; um quarto comentário foi removido:]

https://youtu.be/4r6NvlWzkdo

Hoje, o mérito e talento de cada um são aquilatados pelo número de seguidores que tem nas redes, a sensatez e justeza das suas palavras são medidas pelo número de “likes” que cada post seu suscita. Cada novo assunto que entra na “agenda mediática” ou qualquer dislate que se “torna viral” é uma oportunidade irresistível para cada um, sem hesitação, emitir opinião fulminante, tonitruante e definitiva sobre uma matéria da qual pouco ou nada sabe, cuja existência lhe era desconhecida na véspera e que será varrida da sua memória dentro de uma semana. Embora a maioria dos utilizadores das redes (ditas) sociais se fique pelo comentário, a aspiração maior de quem frequenta estes loca infecta é ser o originador de algo que “viralizou”, mesmo que a “viralidade” decorra de se ter escrito ou dito algo sumamente imbecil ou ofensivo ou de se ter protagonizado um vídeo ridículo, grotesco ou repulsivo. Num tempo em que a memória nada vale, a ignorância campeia e a inconsciência das suas limitações é uma “qualidade” crucial para triunfar na vida, cada um está convertido no actor principal de um “biopic” sobre si mesmo com guião escrito pelo mais bajulador dos guionistas, que faz dele um igual de Demóstenes, Péricles ou Cícero quando escreve um “tweet” sobre a crise da habitação ou sobre um penálti não assinalado num jogo de ludopédio.

O primeiro dos 14 princípios de A arte de calar, do abade Dinouart – “Só vale a pena falar se o que se disser tiver maior valor do que o silêncio” – é letra morta nos dias de hoje, em que qualquer coisa, por mais inane, inoportuna e asinina que seja, é preferível ao silêncio. O segundo princípio de A arte de calar estabelece que “Há um tempo para nos calarmos e um tempo para falarmos”, mas hoje todos estão, permanente e exclusivamente, ocupados a “falar”, ou seja, a produzir sons com o aparelho fonador ou a produzir “conteúdos” para as redes (ditas) sociais ou a comentar conteúdos e comentários alheios nas redes (ver capítulo “A ágora e o circo” em Civilização ocidental: Luz negra para um mundo pós-humano).

Esta indisponibilidade para escutar não só está a corroer as relações interpessoais como mina a estrutura da sociedade democrática, como argumenta o filósofo Byung-chul Han em Infocracia: A digitalização e a crise da democracia (2021, Infokratie): “A comunicação actual é cada vez menos discursiva, na medida em que perde cada vez mais a dimensão do outro. […] O escutar é um acto político, na medida em que integra as pessoas numa comunidade e as capacita para o discurso, criando um nós. A democracia é uma comunidade de ouvintes. A comunicação digital, enquanto comunicação sem comunidade, destrói a política do escutar. […] O discurso é uma prática do escutar. A crise da democracia é, antes de mais , uma crise do escutar”. Han dedica à questão do silêncio um capítulo do livro Não-coisas: Transformações no mundo em que vivemos (2021, Undinge), em que associa esta “crise do escutar” ao fluxo caótico e avassalador de informação que tomou conta da sociedade moderna: “A informação rouba-nos o silêncio, impondo-se-nos e reclamando a nossa atenção. O silêncio é um fenómeno de atenção. Só uma atenção profunda produz silêncio. Mas a informação despedaça a atenção”.

As mutações tecnológicas e as mutações sociais e comportamentais que elas induziram conseguiram acabar com o silêncio e com a comunicação e, por arrasto, estão também a desfazer a democracia; mas, sobre este magno fenómeno do nosso tempo, Alain Corbin não tem uma palavra a dizer.

Cinema: silencioso, mudo e tagarela

Na pg. 113 de História do silêncio, lê-se que “o cinema como escola de silêncio mereceria uma série de volumes, tão labiríntico ele é”, mas é óbvio que não será Corbin a entregar-se a tão árduo labor: o assunto é aviado em menos de duas páginas de lugares comuns e tolices. Após afirmar que “o silêncio constitui um desafio para os cineastas”, por terem “de incarnar o que é, à primeira vista, irrepresentável”, reconhece três linhas abaixo, que “o problema põe-se do mesmo modo aos pintores e aos dramaturgos”. Considera que “o cinema mudo soube dizer, com uma força extrema, as emoções e os sentimentos”, para umas linhas abaixo, admitir que “uma música ilustrativa e legendas acompanhavam, em geral, os filmes mudos”.

A verdade é que antes da estreia, em 1927, de The jazz singer – tradicionalmente considerado como o marco inaugural do “cinema sonoro” – o cinema raramente foi silencioso e que, em muitos casos, nem sequer foi mudo. Desde a génese do cinema que inúmeros inventores, cineastas e exibidores conceberam e implementaram variadas tecnologias capazes de coordenar imagem e som, incluindo-se no conceito de “som”, diálogos + ruído ambiente + música – isto para lá da mais simples solução de encarregar um pianista ou (menos frequentemente) um pequeno ensemble, de, em tempo real, produzir música (eventualmente complementada por efeitos sonoros) que se adequasse às imagens projectadas no écran.

Uma discussão sobre o som e o silêncio no cinema passaria, obrigatoriamente, pela menção a Rudolf Arnheim (1904-2007), um psicólogo de formação que produziu relevante obra sobre a relação entre os mecanismos de percepção e a arte e que, em 1932, desgostado com a rápida ascensão do cinema sonoro, publicou Film als Kunst (editado em Portugal pelas Edições 70 como A arte do cinema), em que reivindicava que “as virtudes específicas da arte do cinema derivam das exploração do que constituem as limitações do meio cinematográfico: ausência de som, ausência de cor, falta de profundidade tridimensional”.

Não só o apelo de Arnheim para que o cinema se mantivesse fiel ao que ele entendia ser a sua matriz original foi, como sabemos hoje, completamente ignorado, como o cinema “mudo” deu lugar, por todo o lado, ao cinema “tagarela”. Os filmes que concedem espaço ao silêncio têm quase sempre tom contemplativo e ritmo lento (pelos padrões médios) e estão confinados ao “cinema de autor”, que não visa encher salas e quebrar recordes de bilheteria. Corbin constata que “a escrita cinematográfica do silêncio, repetimos, era toda ela subtileza, e o espectador dos nossos dias deixou, em geral de a apreciar” (pg. 115) e é tudo o que tem a dizer sobre o assunto.

Com efeito, o cinema que, há décadas, domina a programação das salas de cinema tem horror ao silêncio no mesmo sentido em que soi dizer-se que a natureza tem horror ao vácuo. A proscrição do silêncio do cinema não é um fenómeno confinado aos “filmes de acção”, que vivem do estardalhaço das colisões, das explosões e dos tiroteios, do rugido dos motores e das bestas e dos urros dos protagonistas, que são reproduzidos a volumes atroadores em sistemas sonoros multicanal cada vez mais “realistas” e “impactantes” (Dolby Surround, DTS Digital Surround, Dolby Atmos, DTS:X, Auro-3D, etc.). Todo o cinema “comercial” e parte do cinema “independente”, até mesmo a mais inócua e relaxada “comédia romântica”, foram completamente tomados pela tagarelice: não só a maioria das personagens estão reduzidas à condição de “cabeças falantes” que debitam diálogos inanes escritos por guionistas que nunca na vida tiveram uma ideia visual, como são raros os momentos sem a presença da “banda sonora”, essa indispensável vaselina musical que permite que os planos se vão sucedendo sem grande atrito, um após outro, e sem que o espectador, entorpecido pela musiqueta, se aperceba das falhas lógicas do guião ou da inépcia da montagem (para o que contribui o facto de, frequentemente, o espectador estar distraído a ruminar pipocas e a beberricar mistelas gaseificadas). Além da função “cinética” ou “lubrificante”, a “banda sonora” desempenha outros dois papéis cruciais: 1) produzir tensão e distensão e 2) instruir o espectador sobre as emoções a experimentar em cada momento.

Deve sublinhar-se que uma coisa é o uso judicioso de música em certos momentos do filme – afinal, um dos encantos e potencialidades do cinema é a sua natureza compósita e o efeito sinergístico entre as suas componentes – e outra bem diferente é recorrer constantemente a música para colmatar as graves deficiências dos outros elementos do filme e instilar um simulacro de vida num inerte monstro frankensteiniano.

Porém, sobre a abolição do silêncio no cinema, Corbin não nada de relevante a dizer.

O fim do silêncio no espaço privado

O cinema, visto em sala ou em casa (no “home cinema”), ou, como agora se tornou frequente, em qualquer lugar e circunstância (no tablet ou no smartphone), é apenas um dos muitos domínios em que os progressos tecnológicos ocorridos desde o final do século XIX mudaram drasticamente o papel do silêncio na vida quotidiana.

Um dos primeiros foram os dispositivos de gravação e reprodução sonora: o fonógrafo e as suas variantes, evoluções e tecnologias similares permitiram que a experiência da música deixasse de estar vinculada a ocasiões pontuais e a executantes de carne e osso e passasse a depender apenas do capricho do proprietário de uma desta maquinetas. Foi o princípio de um longo processo de erradicação do silêncio, que atingiu no século XXI proporções avassaladoras. A “telefonia sem fios” viria a dar um forte contributo para este fenómeno: enquanto o fonógrafo esteve limitado, durante muito tempo, às classes possidentes, os aparelhos de rádio democratizaram-se com relativa rapidez. As primeiras transmissões radiofónicas “comerciais” datam do início da década de 1920, difundindo notícias, música (a partir de discos, de interpretações em estúdio ou de concertos públicos), peças de teatro, ofícios religiosos, programas educativos e, inevitavelmente, reclamos publicitários. Os EUA foram um dos primeiros países em que a rádio se implantou e em 1931 já havia, em média, um receptor de rádio em cada lar americano.

Na Alemanha, Joseph Goebbels, Ministro da Propaganda do III Reich, apercebendo-se do formidável potencial do meio radiofónico para fins de doutrinação e instrumentalização das massas, encomendou ao engenheiro Otto Griessing a concepção de um receptor de baixo custo – daqui resultou o Volksempfänger (“receptor do povo”), apresentado em 1933, poucos meses depois da tomada do poder pelos nazis, e de que seriam fabricados 10-12 milhões de exemplares, nos seus diversos modelos, só até ao início da II Guerra Mundial. Com a vulgarização do receptor de rádio, as massas habituaram-se a viver imersas num fluxo ininterrupto de sons, no lar, nalguns espaços de acesso público e até nas fábricas (onde, criam alguns patrões, a música estimularia a produtividade).

Outro contributo de peso para a erradicação do silêncio da vida das pessoas veio da televisão, cujas transmissões experimentais se iniciaram na década de 1930. Mais uma vez, foi nos EUA que o novo medium primeiro se implantou junto das massas, processo iniciado após o término da II Guerra Mundial. Apesar de a televisão estar centrada, como o seu nome indica, na componente visual, o televisor acabou por, no ambiente doméstico, assumir o papel de gerador de banda sonora ininterrupta, relegando o receptor de rádio para o automóvel: o televisor passou a estar sempre ligado, independentemente de estar alguém a vê-lo ou não. No início, o período de emissão dos canais televisivos era circunscrito, mas há muito que ocupou todas as horas do dia, por isso há quem ligue o televisor mal desperta ou mal regressa do trabalho ou de outros afazeres, e só o desligue quando vai deitar-se. “Faz-me companhia”, era a justificação usual de quem era questionado sobre tal comportamento, antes de ele se ter tornado no comportamento-padrão – hoje já ninguém faz perguntas e alguns até estranharão que, ao entrar em casa alheia, não se seja acolhido pelo alarido histérico da TV. E para exterminar os últimos redutos de silêncio que pudessem restar no espaço doméstico, o embaratecimento dos televisores tornou possível que o televisor-mestre, da sala de estar, fosse complementado por televisores na cozinha e nos quartos, permitindo a cada membro da família ouvir os canais que prefere. E como hoje a oferta de canais televisivos e de fontes sonoras na Internet é colossal, cada prédio de apartamentos converte-se numa Torre de Babel.

O fim do silêncio no espaço comum

Entretanto, tinham ocorrido mudanças de monta fora do lar: a música invadira fábricas e escritórios (para aumentar a produtividade); estábulos (para incrementar a produção de leite), consultórios, barbearias, gares e aerogares (para tornar a espera menos penosa); ginásios (para impor ritmo e tornar o esforço menos penoso); lojas, centros comerciais e super e hipermercados (para incitar ao consumo); bares e restaurantes (para “criar ambiente”); comboios, autocarros e aviões (para fazer a viagem parecer menos longa). Muita desta música era seleccionada pelo proprietário ou operador do local ou do meio de transporte, mas também surgiram empresas especializadas na selecção e distribuição de música para espaços comerciais e laborais, a mais famosa das quais, a Muzak, acabou por tornar-se sinónimo de “música de fundo” (ver capítulo “O império do muzak” em Do walkman ao streaming: O que ouvimos realmente quando ouvimos música?). Entre a música de fundo com “curadoria”, ou a reprodução passiva da programação corrente nas rádios e nas televisões, todos os espaços comuns e circunstâncias em que os humanos vivem e convivem estão hoje tomados por um ininterrupto caudal de som: em táxis, Ubers e similares; em repartições públicas, estações de serviço e lojas de conveniência; em bazares de bricabraque “made in China” e lojas de haute couture; em tascas populares e restaurantes gourmet. Em muitos bares e cafés até acontece que os écrans passem a programação televisiva, mas sem som, enquanto o sistema de som “bomba” música avulsa, numa esquizofrenia que não parece incomodar ninguém. Nas zonas comerciais e históricas de algumas cidades foram instalados sistemas de som que, em épocas festivas ou, nalguns casos, todo o ano, empestam as ruas com muzak de um adocicado nauseante. Os estádios desportivos, cujo ambiente sonoro julgaríamos já estar saturado com os coros e percussões das claques e os urros, aplausos e vaias do público, adquiriram sistemas de som colossais que difundem música estridente e incitamentos à turba vociferados por um MC apopléctico e lapuz.

Não é no ambiente doméstico se encontrará refúgio para este assalto constante aos tímpanos, uma vez que, nas últimas décadas, os progressos na tecnologia, na gestão industrial e na logística permitiram comercializar a preços acessíveis ao cidadão comum, uma panóplia de ferramentas eléctricas e pneumáticas que têm feito as delícias de uma florescente legião de aficionados da bricolage, que ocupam as horas de lazer e os fins-de-semana e feriados, a serrar, perfurar, aparafusar, fresar, aplainar, lixar, esmerilar, afagar e polir, num afã que não conhece descanso e cujo principal propósito não é a beneficiação do lar mas o preenchimento do vazio existencial do bricoleur amador.

Os que crêem poder encontrar refrigério do insano tumulto urbano no repousante marulhar das ondas à beira-mar, descobrirão que este foi sufocado pela música que jorra dos bares, restaurantes e outros estabelecimentos balneares, pelo rugido dos jet skis, flyboards, jetboards e outras formas de lazer motorizado e pelo ronco das avionetas que rebocam reclamos ao longo da costa. Desiluda-se quem julgue que com o fim do dia a tranquilidade descerá, por fim, sobre a praia – as maquinetas aquáticas e aéreas recolhem-se, mas nos bares-discotecas começam as “sunset parties”, animadas por DJs e uma quantidade asinina de watts de potência sonora.

Os exterminadores de silêncio portáteis

Os primeiros auto-rádios surgiram na década de 1920, mas eram volumosos e apenas ao alcance dos mais abonados – por exemplo, o Philips 247 B, de 1937, media 24 x 18 x 18 cm e pesava 24 Kg e o preço de um Blaupunkt AS 5, de 1932, equivalia a 1/3 do preço de um automóvel de gama baixa. Em 1946, apesar dos anos de austeridade da II Guerra Mundial, já circulavam nos EUA 9 milhões de automóveis equipados com rádio e a década de 1950 trouxe, definitivamente, a massificação do auto-rádio. O efeito mais notório desta foi que a viagem e a deambulação por paragens diferentes daquelas que faziam parte da rotina, que, em tempos, foram ocasiões propícias ao silêncio, à contemplação e à meditação, ficaram também infectadas pela tagarelice incontinente da rádio.

As tentativas de incorporar gira-discos nos carros não foram longe, por razões fáceis de perceber, mas o advento da fita magnética e, em particular do “cartucho” (8-track cartridge), permitiu que o automobilista ouvisse música à la carte, sem estar dependente das escolhas das estações de rádio. O “cartucho”, surgido em 1964 e com uma largura de fita de 6.4 mm, foi suplantado pela cassette compacta, que fora apresentada ao público em 1963 e tinha uma largura de fita de 3.8 mm, mas levaria tempo a impor-se. O reinado da cassette compacta nos automóveis foi breve, pois em 1984 foi apresentado o primeiro leitor de CDs para carro, que rapidamente destronou a cassette, pouco prática e de fidelidade e fiabilidade medíocres.

Independentemente da tecnologia em questão, o que é importante compreender é que, por esta altura, andar ou estar sentado num automóvel sem qualquer fonte de música ou verborreia se tornara impensável. Em 1996, os Modest Mouse deram ao seu álbum de estreia o irónico título It’s a long drive for someone with nothing to think (“É uma viagem de carro demasiado longa para alguém sem nada em que pensar”), mas, por esta altura, já há muito que todos os automóveis no mundo ocidental estavam equipados com algum tipo de equipamento de som destinado a impedir que as mentes dos ocupantes pudessem empreender alguma reflexão minimamente elaborada.

Entretanto, a cassette compacta implantara-se noutra frente da música portátil.

Há muito que existiam aparelhos portáteis para tocar discos, mas foi a introdução da tecnologia de transístores que permitiu a produção em massa de gira-discos portáteis, práticos e com razoável volume sonoro – o primeiro modelo a ser comercializado, em 1955, foi o Philco TPA-1.

Os gira-discos portáteis permitiram aos adolescentes da década de 1960 e do início da década de 1970 levar a sua música para o campo e para a praia, mas as boomboxes ou ghettoblasters (rádio-cassettes), combinando receptor de rádio AM/FM e leitor/gravador de cassettes compactas, surgidas no final da década de 1960, mostraram-se muito mais portáteis, robustas e práticas (e ruidosas) do que os gira-discos e tornaram-se na opção dominante na música portátil a partir do final da década de 1970.

A nostalgia dos Gen Z por tempos que não viveram e de gente mais velha pelo tempo da sua juventude tem fomentado um renascimento de formatos sonoros “retro” (nomeadamente a cassete compacta) e dos respectivos aparelhos para a sua reprodução, mas trata-se de um fenómeno marginal – na prática, as clássicas boomboxes das décadas de 1970-80 foram substituídas por colunas portáteis bluetooth, com maior potência sonora, maior autonomia e, mediante emparelhamento com smartphones e tablets, com repertório ilimitado.

Cada um na sua bolha sonora

Em Julho de 1979, a Sony apresentou o Walkman TPS-L2, uma adaptação do gravador portátil de cassettes compactas usado pelos jornalistas para registar depoimentos, entrevistas e notas, agora tendo por finalidade a fruição individual de música em movimento. A qualidade de som do Walkman era, inevitavelmente, sofrível, mas representou uma mudança conceptual na relação do ser humano com a música que persistiria – e se aprofundaria – até aos nossos dias. Com o Walkman e os seus derivados e sucessores, a audição de música deixou de ser uma experiência comunitária para ficar confinada à esfera individual. Se, em termos de convivência humana, a voga do Walkman teve, em relação à boombox, a vantagem de não invadir o espaço sonoro alheio e de não contribuir para delapidar o (já muito depauperado) património comum de silêncio, por outro lado, o simples facto de alguém, num espaço público, se apresentar com as orelhas cobertas por auscultadores (ou com auriculares inseridos nos ouvidos) passou a ser um sinal inequívoco de que não estava disponível para comunicar ou interagir com os outros.

O Walkman da Sony vendeu, nas suas várias declinações e evoluções, 100 milhões de exemplares na sua primeira década de vida e contribui, juntamente com leitores similares de outras marcas, para que, em 1983, a venda global de música sob a forma de cassete compacta suplantasse o disco de vinil. No ano seguinte, a Sony voltou a inovar, ao lançar no mercado o primeiro Discman, o D-50/D-5 que fundia os conceitos do Walkman e do leitor de discos compactos, formato que entrara em produção em massa dois anos antes. Se o Discman suplantou o Walkman também ele seria suplantado, a partir do início do século XXI, pelos leitores de áudio digital (DAP = digital audio players) ou reprodutores multimédia portáteis, capazes de reproduzir ficheiros áudio (geralmente, mas não exclusivamente, no formato MP3, razão por que são também conhecidos como “MP3 players”). Os primeiros modelos de DAPs foram disponibilizados por marcas sul-coreanas no final da década de 1990, mas seria o iPod da Apple, lançado em 2001, a levar os DAPs a suplantarem todos os anteriores formatos de reprodução portátil de música.

O iPod vendeu 450 milhões de exemplares até 2022, ano em que a sua produção cessou por os formidáveis avanços nos smartphones terem levado estes a assumir, entre muitas outras funções, a de reproduzir ficheiros digitais de áudio e vídeo. Entre o lançamento do iPod e a sua descontinuação deram-se mudanças drásticas no acesso aos ficheiros digitais de áudio: em 2001, dominavam os downloads, a partir fontes legais ou piratas; a proporção dos downloads legais foi crescendo, ao mesmo tempo que a venda de música em suportes físicos declinava, e em 2012 os downloads representaram 43% das receitas da indústria musical nos EUA. Foi o seu apogeu, tendo sido substituídos pelo streaming, que é hoje a forma preferencial de acesso a música: em 2024, os downloads representaram apenas 0.8% das receitas da indústria musical mundial, contra 70% do streaming, 16% das vendas de suportes físicos e de 10% de direitos de execução pública.

O streaming – que gera receitas ínfimas para os compositores e intérpretes e beneficia sobretudo as plataformas que o providenciam – é a fonte da esmagadora maioria da música que hoje é reproduzida, quer através de smartphones e dos (já quase extintos) leitores de MP3, quer através de tablets, computadores (desktops e laptops), e até a maior parte dos abencerragens que ainda se entregam à excentricidade de ouvir música em aparelhagens de hi-fi se desfizeram das suas colecções de CDs e dos seus aparelhos reprodutores de suportes físicos e aderiram ao streaming.

O facto de cada indivíduo estar hoje provido, onde quer que se encontre, de uma conexão permanente ao resto do mundo – o smartphone – não só criou uma bolha sonora personalizada para o seu portador, como alterou o padrão de silêncio na comunidade. Antes do telefone móvel, uma pessoa solitária era, quase sempre, uma pessoa silenciosa, já que só os orates falavam sem necessidade de interlocutor. Porém, agora, quem sozinho vai pela rua, ou está na fila do supermercado, ou aguarda ser atendido num consultório ou numa repartição pública, ou viaja de autocarro, pode tagarelar sem cessar, por vezes de forma assaz sonora, e também pode contaminar as cercanias com a sua música ou com a banda sonora dos seus vídeo-jogos. Como os cultos do ego e da notoriedade anularam o conceito de privacidade, poucos dos que falam ao telemóvel no espaço público têm pejo em partilhar a sua intimidade com os circunstantes e transeuntes, que se veem, contra sua vontade, arrastados para um torvelinho de imbróglios sentimentais, de recriminações amargas, de juras de amor eterno, de discussões sobre quem fica com os miúdos no próximo fim-de-semana, de ponderosas deliberações sobre que marca de areia para gato comprar, de instruções sobre os cuidados a ter quando o cão for levado a passear e de minuciosos e excruciantes relatórios clínicos.

O volume no 11

No século XXI, o som não se limita a estar por todo o lado e a não deixar uma nesga ao silêncio: a sua presença é, cada vez mais, impossível de ignorar, pois as fontes de som têm hoje incomensuravelmente mais potência do que em qualquer período anterior. No interior de discotecas e clubes ou ao ar livre, nos concertos de estádio e nos megafestivais de Verão, o volume sonoro atinge níveis atordoantes, estupidificantes, esmagadores, ao ponto de alguns concertos deixarem registo nos sismógrafos. Se, como referem muitos pensadores citados por Corbin, o silêncio é indispensável à reflexão profunda, o volume sonoro que se tornou padrão em muitos espaços de diversão e lazer inibe o raciocínio mais elementar e reduz o ser humano à condição de asno.

Nos automóveis, a potência e sofisticação dos equipamentos áudio também foi aumentando. O “cartucho”, a cassette e o CD foram relegados para o caixote de lixo da história e o sistema áudio dos veículos de hoje raramente aceita suportes físicos – apenas reproduz ficheiros digitais e está integrado no sistema de “info-entretenimento” (infotainment), que pode ser colocado em comunicação com o smartphone (ou tablet) do condutor ou passageiros, via Bluetooth ou USB e graças a apps como a Android Auto ou a Apple CarPlay, ou, claro, ser usado para ouvir as “clássicas” estações de rádio. Esta evolução tem sido acompanhada por um constante aumento no número de colunas e na potência dos amplificadores com que os veículos vêem equipados de fábrica, mas os proprietários mais exibicionistas estão sempre prontos para fazer instalar sistemas de som ainda mais impressionantes – o objectivo dos aficionados do “car audio” não é, claro, ouvir música em condições ideais (o interior de um automóvel proporcionará sempre um som medíocre, por muito dinheiro que se invista), mas fazer anunciar a sua presença e impor ao resto do mundo a sua “personalidade” sonora, por onde quer que passe e onde quer que estacione.

O equipamento áudio automóvel ganharia, no século XXI, uma nova e assaz perversa função: a de complementar o som real do motor, de forma a dar aos ocupantes a impressão de que se trataria de um modelo mais potente ou mais “desportivo” e, assim, “enriquecer a experiência da condução” (a BMW chama-lhe “Active Sound Design”).

Medo do silêncio

Retrospectivamente, podemos ver o lançamento do Walkman TPS-L2, em 1979, como o dealbar de uma nova era. Nos 46 anos entretanto decorridos, as inovações tecnológicas sucederam-se num ritmo estonteante, vogas nasceram e morreram e a relação do ser humano com a tecnologia, a fruição musical e o silêncio alterou-se drasticamente. Neste complexo, turbulento e incessantemente mutável processo é possível discernir três grandes tendências: a abolição total do silêncio individual; a consolidação da misantropia; e a desqualificação da música para o estatuto de papel de parede sonoro (sobre este último aspecto, ver Do walkman ao streaming: O que ouvimos realmente quando ouvimos música?).

Embora, como se viu acima, o nível de ruído no meio urbano tenha aumentado sem cessar, existem ilhas de relativa tranquilidade nos bairros chiques e nos condomínios privados, sobretudo no interior dos edifícios de boa construção, insonorizados e dotados de vidros duplos ou triplos. Todavia, uma vez que lazer, estudo e trabalho passaram a estar completamente centrados no smartphone e no computador pessoal e muito do tempo passado com estes gadgets passou a envolver o uso de auscultadores, a experiência individual do silêncio diminuiu acentuadamente, mesmo que se tenha o privilégio de viver num bairro relativamente silencioso.

Assim, as gerações mais novas acostumaram-se a viver imersas num incessante caudal sonoro, talhado de acordo com os seus gostos e interesses, e a minimizar a interacção presencial com outros seres humanos e, muito menos, com seres humanos que não comunguem da sua mundividência, interesses e estilo de vida – pelo que é de uma ironia cruel que as redes cibernéticas que promovem este comportamento associal sejam designadas, em todas as línguas, como “sociais”. Na solidão ciberneticamente gerada de hoje, cada indivíduo é constantemente bombardeado com estímulos sonoros e visuais e microtextos e qualquer interrupção neste fluxo – por avaria ou por se estar num “sítio sem rede” (o que acontece cada vez menos), ou, no caso de crianças com pais austeros, por se ter sido punido com a interdição ou limitação do uso do smartphone, tablet ou PC – é geradora de angústias terríveis. Quem não está habituado a ficar a sós com os seus pensamentos durante uma hora ou duas sente a experiência como aterradora. E como a arquitectura e funcionamento das redes (ditas) sociais favorecem não só a solidão como a neurastenia, a insegurança e a necessidade desesperada de aprovação pelos outros, o silêncio é, para os que ficaram involuntariamente desconectados, um mar de profundezas abissais, onde a imaginação faz por lobrigar, na penumbra, fieiras de dentes afiados e a ondulações de tentáculos viscosos. Tudo isto não são mais do que elucubrações doentias – na verdade, o que o desconectado mais receia quando surge um hiato inesperado no usual caudal de informação, estímulos e frivolidades, não são monstros desconhecidos, é encontrar-se consigo próprio.

Existe um termo pseudotécnico para designar o medo do silêncio – “sedatofobia”, do inglês “sedate” (calmo, tranquilo) – ainda que este não seja oficialmente reconhecido como distúrbio mental pelos colégios de psicologia. As manifestações extremas de sedatofobia poderão ser raras – o que explicará o desinteresse dos estudiosos da mente por ela –, mas, na forma atenuada, a sedatofobia é uma das fobias mais disseminadas no mundo desenvolvido do século XXI e não cessa de alastrar, acompanhando a crescente dependência da humanidade em relação a interfaces tecnológicas de comunicação. Em contrapartida, poucos dos que tombam sob o seu feitiço são capazes de libertar-se: quanto menos se tiver a experiência do silêncio, mais intimidante este se torna; portanto, o silêncio é evitado a todo o custo; e o ciclo de retroacção positiva vai reforçando-se.

No ambiente urbano do mundo moderno, só um som é capaz de inspirar tanto receio como o silêncio: o rumor do vento no arvoredo à noite, que é recorrentemente evocado nos romances de António Lobo Antunes e que nos lembra de que, mais tarde ou mais cedo, a nossa transitória fagulha de consciência acabará por ser engolida pela escuridão sem fundo, mas que haverá sempre árvores, indistintas, negras, soturnas e indiferentes às nossas angústias e insónias, a murmurar sem descanso na sua linguagem indecifrável.

Conclusão

Imagine-se uma história da higiene pessoal que não fizesse menção à invenção e massificação do uso do sabão, do sabonete, do detergente, do shampoo, do desodorizante e da máquina de lavar roupa e à popularização da sauna e do spa. Imagine-se uma história da obesidade que omitisse a ascensão das cadeias de restaurantes de fast food, dos refrigerantes gaseificados, dos alimentos ultraprocessados, dos snacks embalados (doces e salgados) e das refeições congeladas, a transferência maciça da população de empregos que implicavam esforço físico árduo e continuado para funções burocráticas e a massificação do transporte motorizado.

É algo equivalente que Corbin faz nesta História do silêncio. Fá-lo com prosápia e eloquência, apoiado em profusas referências a autores respeitáveis, e consegue instilar no leitor a sensação de que escuta uma lição de sapiência de um mestre consagrado. Porém, chegado ao fim do livro, se o leitor tentar ordenar e sintetizar os conhecimentos apreendidos, perceberá que toda a erudição recebida se evaporou sem deixar rasto.

Nos últimos tempos, a “agenda mediática” tem dado atenção ao declínio económico da França e à sua crescente instabilidade política, mas pouco se fala do notório declínio do contributo francês para a esfera do pensamento humano e para o debate intelectual que tem vindo a registar-se nas últimas quatro ou cinco décadas e que tem como contraponto o domínio cada vez mais avassalador do contributo anglo-saxónico. Entre as várias razões que explicam o definhamento – relativo – do brilho da cultura francesa, está o florescimento no meio académico e editorial francês de um discurso pomposo, farfalhudo e ostensivamente erudito mas que, quando examinado de perto, se revela desprovido de substância e de rigor intelectual. Em vez de iluminar o assunto que elegeu como tema, o discurso do sábio-pavão pretende somente chamar a atenção para a sua aparatosa e variegada cauda – e está tão seguro da sua formidável sapiência e da necedade da audiência a que se dirige que não se dá ao trabalho de estruturar a sua exposição, ou de testar a solidez dos seus raciocínios, ou de pesquisar o que de mais relevante já foi dito e escrito sobre a matéria.

Quem passou pelo ensino universitário teve, muito provavelmente, o infortúnio de assistir a aulas e seminários ministrados por criaturas que nunca na vida se deram ao trabalho de preparar uma intervenção pública e que, sobrestimando tragicamente as suas capacidades, se limitam a ir encadeando, displicente e erraticamente, lugares comuns, curiosidades, mots d’esprit e citações “cultas” vagamente relacionadas com a matéria em apreço. Escutar tal verborreia é uma experiência entorpecente, mas sem consequências duradouras. Mas quando estas informes e pífias perorações assumem a forma de livro, o caso muda de figura: são citadas por pedantes nas suas conversas e por mestrandos e doutorandos nas suas teses, são elevadas a saber canónico, são inscritas na bibliografia essencial sobre o tema e são listadas por figuras públicas entre os seus “livros de cabeceira” ou, pelo menos, nas recomendações de “leituras para o Verão”.

Na elogiosa crítica a História do silêncio na revista cultural Télérama, Gilles Heuré escreveu que Corbin “se impôs a si mesmo uma discrição que assume a forma de um murmúrio intelectual”, mas seria mais apropriado falar de “borborigmo intelectual”. Por altura das pg. 125-26, Corbin cita um trecho do diário de Eugène Delacroix (entrada de 23 de Setembro de 1854) em que este discorre sobre as vantagens do escutar face ao falar e em que defende que “os tolos são bem mais facilmente levados do que os outros a esse vão prazer de se ouvirem a si próprios falando com os outros. […] Eles pensam menos em instruir o interlocutor do que em deslumbrá-lo”. A Corbin não lhe ocorreu, nem por um momento, que a observação pudesse aplicar-se a si mesmo.