“Vamos ter de engolir um sapo. Se for preciso, tapem a cara com uma mão e votem com a outra”. A frase de antologia política foi uma tentativa de alívio da consciência comunista, interpretada por Álvaro Cunhal, na segunda volta das presidenciais de 1986: o “sapo” a engolir era Mário Soares, já que no outro quadrado estava Diogo Freitas do Amaral. Um dilema que chegou ao PS, com outros contornos e por antecipação. Nos últimos dias, foram vários os socialistas que já foram apoiando António José Seguro para Belém por necessidade estratégica — mesmo que a contragosto. Outros, como Ferro Rodrigues, continuam a adiar uma decisão.
No partido já se repete sem rodeios o objetivo de ter na segunda volta o candidato que apoia, Seguro. Disse-o ainda esta semana o líder parlamentar Eurico Brilhante Dias: “O nosso objetivo é apoiá-lo e que ele passe à segunda volta e que depois da segunda volta seja vencedor.” No caso deste socialista, o apoio veio com naturalidade já que Brilhante Dias foi dos poucos socialistas do segurismo que transitou para o costismo. Fazia parte da direção de Seguro no PS e chegou a fazer parte, como secretário de Estado da Internacionalização, de dois governos de Costa. Em 2022 foi mesmo escolhido pelo então líder para presidir à bancada parlamentar da maioria absoluta. Hoje faz parte da do núcleo duro de José Luís Carneiro e diz-se “empenhado” nessa campanha.
Não é um sentimento transversal no PS, ainda que a reunião da Comissão Nacional que oficializou o apoio a Seguro tenha tido apenas duas abstenções (na sala estava António Correia de Campos, que é mandatário distrital da candidatura do almirante Gouveia e Melo) e zero votos contra. E o anúncio da decisão, no final da reunião, até teve a ironia de chegar pela voz de um dos socialistas que, há 12 anos, deu o pontapé de partida na ofensiva costista contra Seguro: Carlos César.
Hoje é presidente do partido, na altura saía da presidência do PS-Açores, mas ainda foi o organizador do congresso da sua sucessão. Em janeiro de 2013, em plena crise de liderança de Seguro que era questionado internamente, convidou António Costa para abrir essa reunião açoriana. Não havia qualquer lógica evidente, ou protocolo que levasse o presidente da Câmara de Lisboa (que era então Costa) a abrir o congresso dos socialistas açorianos na cidade da Horta. Aliás, tal lógica só ditava que o secretário-geral encerrasse a reunião, o que estava previsto.
Seguro estava no meio de uma crise interna, com o seu estilo de oposição a Pedro Passos Coelho a ser questionado diariamente. Costa era visto como o desejado, entre algum PS, e César estendia-lhe o tapete. Um gesto entendido no Largo do Rato como um desafio ao líder — e era — que, um ano depois, deu frutos com Costa a tomar mesmo a liderança dos socialistas e César a ser seu número dois. Agora, o mesmo César não vê outra saída: “A opção que nós temos de fazer é, olhando para os candidatos, saber qual é o melhor. E, para o Partido Socialista, o melhor é o doutor António José Seguro.”
Não é o único que um dia questionou Seguro como líder a dar agora a volta ao texto. Duarte Cordeiro, um dos jovens turcos socialistas que, no Parlamento, fritou a liderança de Seguro, foi dos primeiros nomes socialistas a prestar-lhe apoio e até já apareceu numa ação de campanha. Ao Observador, dois dias antes da Comissão Nacional do PS, já Cordeiro “engolia o sapo”: “Vou apoiar António José Seguro. Nunca o apoiei, é verdade. Mas acho que, nesse sentido, sou representativo daquilo que acho que é importante que seja feito no atual contexto: é a pessoa mais bem posicionada do centro-esquerda.”
E Pedro Nuno Santos, o cabecilha deste mesmo grupo que ensombrou o líder Seguro em 2013, não terá outra saída. Afinal, foi ele que, como líder do partido, praticamente lançou Seguro nas presidenciais, numa altura em que o ex-líder que ajudou a derrubar reaparecia no espaço público. Foi há um ano que colocou o nome de Seguro na lista de presidenciáveis, num ato que até hoje o PS debate se foi deslize ou congeminado — sendo certo que, um mês depois, estava arrependido de ter falado em nomes. Mas o quadro por ele mesmo determinado era de um partido a ter, desta vez, apoio explícito a um candidato da sua área política. É somar um mais um: há um candidato e o nome até já esteve na sua boca. E o resultado só poderá ser o apoio também do antigo crítico Pedro Nuno.
Fernando Medina é mais um dos socialistas insuspeitos de alinhar com Seguro — ainda que não tenha sido dos mais rebeldes em 2013/2014, já que estava na CML e lá ficou a substituir Costa — a render-se ao facto deste ser “o único candidato na área do centro-esquerda, com possibilidade de passar à segunda volta e de poder ganhar esta eleição”.
Na Rádio Renascença, no início da semana, Medina elogiou Seguro, o “democrata”, que “procura fazer pontes”, e que, acrescentou, “tem um trajeto conhecido da parte dos portugueses, quer antes de ser secretário-geral do PS, como também secretário-geral do PS”. Para Medina, Seguro é “alguém com uma ampla experiência sobre a política nacional, é alguém que tem ideias sobre um conjunto de áreas e matérias de organização do Estado”.
[A 14 de janeiro de 1986 um acontecimento muda o rumo da campanha das presidenciais: a inesperada agressão a Soares na Marinha Grande. Nas urnas, o socialista e Zenha lutam por um lugar na segunda volta frente a Freitas. A “Eleição Mais Louca de Sempre” é o novo Podcast Plus do Observador sobre as Presidenciais de 1986. Uma série narrada pelo ator Gonçalo Waddington, com banda sonora original de Samuel Úria. Pode ouvir aqui, no Observador, e também na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube Music. E pode ouvir o primeiro episódio aqui, o segundo aqui e o terceiro aqui.]
Ferro: “Desde 1980 voto no candidato presidencial apoiado pelo PS. Desta vez estou mesmo em reflexão”
A última semana mostrou também que continua a não ser um tema fácil. Mesmo com uma posição oficial do partido, há vários socialistas que preferem não se atravessar já. É o caso de Eduardo Ferro Rodrigues que disse ao Observador que “desde 1980” vota no candidato presidencial apoiado pelo PS, quando ele existe. Agora há, mas o antigo líder não se inclina para o mesmo caminho: “Desta vez estou mesmo em reflexão, à espera dos debates.”
Ferro foi um dos socialistas que chegou a desejar que António Sampaio da Nóvoa avançasse na corrida da Belém, anunciando mesmo uma espécie de pré-apoio, em julho passado. Mas o antigo reitor da Universidade de Lisboa não chegou a avançar, o PS apoia António José Seguro e Ferro — que em 2013 também foi um dos socialistas que pressionou Seguro para a saída — não promete nada: “Votarei em quem, podendo ganhar, me der mais garantias de firmeza no combate à extrema direita“. Aliás, há uma coisa que promete, que é manter-se à margem desta campanha: “Não tenciono assumir qualquer protagonismo na campanha que já se iniciou”. Ainda na semana passada Francisco Assis desafiou Ferro e também Santos Silva a apoiarem Seguro, sem efeito.
https://observador.pt/2025/07/02/ferro-rodrigues-apoiaria-candidatura-de-sampaio-da-novoa-seria-um-excelente-presidente-da-republica/
Augusto Santos Silva e Mariana Vieira da Silva, dois socialistas que foram dos mais vocais a criticarem uma candidatura presidencial de Seguro, também estão recuados. No caso de Santos Silva, já tinha dito que Seguro “não parece cumprir os requisitos mínimos de uma candidatura que possa ser apoiada pelo PS e um vasto campo de forças democráticas”, acusando-o mesmo de fazer um discurso que “se fica pelas banalidades.”
Meses depois de o ter dito e agora que o seu partido apoia o ex-líder, o antigo presidente da Assembleia da República diz não ter “nada a acrescentar” ao que já disse. Mais ou menos na mesma linha do que já tinha feito Mariana Vieira da Silva.
A antiga ministra tinha dito, logo de início, que não lhe parecia que “o trabalho político de António José Seguro nos últimos anos e aquilo que representa possa servir para agregar todo o centro-esquerda. Não podemos olhar para as qualidades políticas para ser Presidente da República como algo que é banal.” Esta semana, confrontada no canal Now com a decisão do partido, tal como Santos Silva não a contestou, considerando-a “natural”, mas também como ele mantém o que já disse no passado.
Mais: ainda acrescentou que esta não foi “a melhor forma de apoiar um candidato” e que o PS “não ponderou entre alternativas nem quem tinha mais capacidade de agregar votos. E não sou eu que o digo, são as sondagens que o demonstram bem” — apontando para uma sondagem da Intercampus para o CM/CMTV que colocava Seguro no quarto lugar, a perder terreno, e quase ao nível de João Cotrim Figueiredo, ex-líder da IL.
Na Rádio Observador, Pedro Delgado Alves também considerou “natural” o apoio do PS à candidatura, mas não disse se o apoia. Disse apenas que é uma decisão “pessoal” que “não terá de ser necessariamente a do partido”, mas disse que tem uma “visão e um perfil” do que quer para o Presidente da República que passa pela “defesa da Constituição”, concluindo que “nem sempre” tem concordado com Seguro nestas matérias.
Na mesma linhas, Alexandra Leitão, na Rádio Observador, considerou “muito natural e lógico” o apoio do PS a António José Seguro. Mas sobre o seu apoio, refugiou-se, por agora, numa “reflexão” que ainda está a fazer perante “o panorama de candidatos presidenciais”.
Enquanto alguns socialistas refletem ou confidenciam, de forma menos pública, que é um assunto que pretendem continuar a adiar. Outros apareceram, também esta semana, já apostados nas contas futuras. Com Seguro muito atrás nas sondagens, Ana Gomes tenta abrir caminho à esquerda, defendendo que as outras candidaturas deste espaço político desistam a favor de Seguro. Referia-se a todas, desde António Filipe, do lado do PCP, a Catarina Martins, do Bloco de Esquerda, passando pelo mais recente avanço do deputado do Livre, Jorge Pinto.
Em entrevista recente à SIC, a propósito do seu estilo político, António José Seguro apresentou-se como alguém que não aprecia “combinatas”. Foi na mesma entrevista que se disse “honrado” com o apoio do seu partido, ao mesmo tempo que jurou protagonizar uma “candidatura suprapartidária”, resumindo o PS a “mais um apoio” entre aqueles que já soma. E entre esses já vão surgindo alguns socialistas, como o histórico Manuel Alegre, que ainda esta semana se juntou à apresentação de uma biografia sobre Seguro onde o candidato esteve presente.
https://observador.pt/especiais/ana-gomes-candidatos-a-esquerda-devem-desistir-antes-da-primeira-volta-a-favor-de-seguro/