O problema da tolerância infinita
Há 80 anos, em 1945, Karl Popper apresentou um aviso à humanidade sob a forma do famoso paradoxo da tolerância. Dizia ele que se uma sociedade for ilimitadamente tolerante e não estiver disposta a defender-se dos intolerantes, então os tolerantes acabarão por ser destruídos e, com eles, a própria tolerância.
É uma ideia que parece abstrata, mas que está a tornar-se bastante concreta na Europa. Em nome da inclusão e da diversidade, temos confundido acolhimento com rendição, e tolerância com ausência de convicção. O resultado é uma Europa que, de tão aberta, começa a perder a noção do que é e dos limites que deve traçar.
A linha que separa a Liberdade do vazio
Vivemos num continente que fez da liberdade individual uma bandeira. Foi um triunfo conquistado com séculos de luta contra dogmas, monarquias absolutas e teocracias. Mas essa liberdade nunca foi verdadeiramente absoluta — e ainda bem.
A nossa liberdade existe dentro de limites, e estes limites definem a liberdade, mondando a. São limites com diferentes graus de flexibilidade, sejam o Código Civil, as leis penais, as normas sociais de convivência, os ditames religioso, etc. A liberdade tem contornos e fronteiras sem os quais se dissolveria em arbitrariedade.
Curiosamente, é em nome dessa mesma liberdade que hoje se questiona se devemos aceitar práticas, símbolos ou costumes que negam os princípios fundamentais da igualdade e da dignidade humana. A Europa, em vez de afirmar os seus valores com confiança, parece hesitar, como se tivesse vergonha do que construiu.
Tolerância ou integração?
A tolerância é uma virtude; a integração é um dever. Uma sociedade só se mantém coesa se partilhar uma base comum de valores, de linguagem e de respeito mútuo. Não se trata de exigir uniformidade cultural, mas sim de garantir compatibilidade de princípios. Quem chega deve ser recebido com dignidade e oportunidades, mas também deve compreender e aceitar as regras da casa. É o preço da pertença.
A Europa, ao contrário, tende a inverter a equação: adapta-se a quem chega, em vez de pedir que quem chega se adapte. E, quando isso acontece, o processo de integração fracassa, porque se perde o equilíbrio. A médio prazo, é sempre o sistema mais coeso e confiante que prevalece, independentemente dos valores que apregoa — e, neste momento, não é o nosso.
O paradoxo da hospitalidade
Jacques Derrida chamou-lhe o “paradoxo da hospitalidade”: uma casa totalmente aberta deixa de ser casa. Receber o outro implica definir condições: sem fronteira, não há proteção; sem regra, não há acolhimento.
Este paradoxo aplica-se hoje, de forma evidente, à Europa. Ao abrir-se ilimitadamente em nome da hospitalidade, arrisca destruir as condições que a tornaram acolhedora. Uma sociedade sem fronteiras morais nem culturais não se torna mais livre, torna-se mais vulnerável.
Para culminar a tríade dos paradoxos, este sem nome e autor definido, apresenta-se o derradeiro: quem procura refúgio na Europa, fugindo de regimes opressivos e/ou más condições de vida, arrisca destruir o próprio refúgio se não respeitar as leis e os valores que o tornaram possível. A compaixão sem responsabilidade não constrói convivência – destrói-a.
Em última análise, o oásis europeu só é oásis porque, depois de muito errar, soube erguer valores e regras que o distinguem do deserto à sua volta. Mas se os que nele chegam (e os que nele já vivem) deixarem de cuidar desse substrato moral e civilizacional, o oásis secará. E todos perderemos.
O erro cultural europeu
Atualmente, mesmo se os decisores políticos tivessem coragem e visão para traçar linhas vermelhas claras (e no curto prazo), faltaria à Europa algo mais profundo: uma cultura coletiva capaz de as compreender e sustentar. As democracias liberais, reféns da emoção e do curto prazo, hesitam em tomar medidas por medo de parecer intolerantes. Essa hesitação nasce de uma cultura de culpa que transformou a inclusão em capitulação, como se defender valores próprios fosse uma forma de intolerância. O resultado é um continente que até sente que precisa fazer algo (o caminho não só para a decadência, mas também para a irrelevância está a ser feito de forma muito sustentada e a olhos vistos, infelizmente), mas que não encontra a coragem nem o consenso social para agir.
A história é clara: encontramos várias civilizações que se extinguiram quase sem ser derrotadas, esvaziando-se por dentro (o Império Romano do Ocidente ou o Império Bizantino já viviam divididos e exaustos antes dos Bárbaros e Otomanos chegarem para o golpe final). Há um lento declínio, uma perda de confiança nas crenças e valores, e depois na vontade de os defender. O colapso acontece pelo cansaço dos próprios e não necessariamente pela força dos outros.
Redescobrir o sentido dos limites
As “linhas vermelhas” não são um sinal de rigidez: são a prova de que uma sociedade se conhece e se respeita. São o que impede que a liberdade de um se torne o abuso de outro. São o que protege a igualdade entre homens e mulheres, a separação entre fé e política, e o direito de pensar diferente sem ser punido por isso.
Redescobrir os nossos limites é, afinal, redescobrir a nossa identidade. A Europa que venceu guerras e ditaduras não foi a que se calou em nome da convivência pacífica — foi a que soube dizer “não”, com firmeza e clareza moral. O desafio de hoje não é diferente: não é fechar-se, é reafirmar-se.
Popper e Derrida, vindos de horizontes opostos, acabaram por dizer o mesmo: sem limites, não há liberdade; sem fronteira, não há hospitalidade. E uma sociedade que esquece isso não se torna mais humana — torna-se apenas mais frágil.