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(A) :: Os três paradoxos na Europa moderna 

Os três paradoxos na Europa moderna 

Uma sociedade sem limites destrói-se a si própria. A Europa arrisca transformar o seu  oásis de liberdade num deserto moral se continuar a confundir acolhimento com rendição. 

Tiago Almeida Pinto
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O problema da tolerância infinita 

Há 80 anos, em 1945, Karl Popper apresentou um aviso à humanidade sob a forma do  famoso paradoxo da tolerância. Dizia ele que se uma sociedade for ilimitadamente  tolerante e não estiver disposta a defender-se dos intolerantes, então os tolerantes  acabarão por ser destruídos e, com eles, a própria tolerância.

É uma ideia que parece abstrata, mas que está a tornar-se bastante concreta na Europa.  Em nome da inclusão e da diversidade, temos confundido acolhimento com rendição, e  tolerância com ausência de convicção. O resultado é uma Europa que, de tão aberta,  começa a perder a noção do que é e dos limites que deve traçar.

A linha que separa a Liberdade do vazio 

Vivemos num continente que fez da liberdade individual uma bandeira. Foi um triunfo  conquistado com séculos de luta contra dogmas, monarquias absolutas e teocracias. Mas essa liberdade nunca foi verdadeiramente absoluta — e ainda bem.

A nossa liberdade existe dentro de limites, e estes limites definem a liberdade, mondando a. São limites com diferentes graus de flexibilidade, sejam o Código Civil, as leis penais,  as normas sociais de convivência, os ditames religioso, etc. A liberdade tem contornos e  fronteiras sem os quais se dissolveria em arbitrariedade.

Curiosamente, é em nome dessa mesma liberdade que hoje se questiona se devemos  aceitar práticas, símbolos ou costumes que negam os princípios fundamentais da  igualdade e da dignidade humana. A Europa, em vez de afirmar os seus valores com  confiança, parece hesitar, como se tivesse vergonha do que construiu.

Tolerância ou integração? 

A tolerância é uma virtude; a integração é um dever. Uma sociedade só se mantém coesa  se partilhar uma base comum de valores, de linguagem e de respeito mútuo. Não se trata  de exigir uniformidade cultural, mas sim de garantir compatibilidade de princípios. Quem chega deve ser recebido com dignidade e oportunidades, mas também deve compreender  e aceitar as regras da casa. É o preço da pertença.

A Europa, ao contrário, tende a inverter a equação: adapta-se a quem chega, em vez de  pedir que quem chega se adapte. E, quando isso acontece, o processo de integração  fracassa, porque se perde o equilíbrio. A médio prazo, é sempre o sistema mais coeso e  confiante que prevalece, independentemente dos valores que apregoa — e, neste  momento, não é o nosso.

O paradoxo da hospitalidade 

Jacques Derrida chamou-lhe o “paradoxo da hospitalidade”: uma casa totalmente aberta  deixa de ser casa. Receber o outro implica definir condições: sem fronteira, não há  proteção; sem regra, não há acolhimento.

Este paradoxo aplica-se hoje, de forma evidente, à Europa. Ao abrir-se ilimitadamente em  nome da hospitalidade, arrisca destruir as condições que a tornaram acolhedora. Uma  sociedade sem fronteiras morais nem culturais não se torna mais livre, torna-se mais  vulnerável.

Para culminar a tríade dos paradoxos, este sem nome e autor definido, apresenta-se o  derradeiro: quem procura refúgio na Europa, fugindo de regimes opressivos e/ou más  condições de vida, arrisca destruir o próprio refúgio se não respeitar as leis e os valores  que o tornaram possível. A compaixão sem responsabilidade não constrói convivência – destrói-a.

Em última análise, o oásis europeu só é oásis porque, depois de muito errar, soube erguer  valores e regras que o distinguem do deserto à sua volta. Mas se os que nele chegam (e os que nele já vivem) deixarem de cuidar desse substrato moral e civilizacional, o oásis  secará. E todos perderemos.

O erro cultural europeu 

Atualmente, mesmo se os decisores políticos tivessem coragem e visão para traçar linhas  vermelhas claras (e no curto prazo), faltaria à Europa algo mais profundo: uma cultura  coletiva capaz de as compreender e sustentar. As democracias liberais, reféns da emoção  e do curto prazo, hesitam em tomar medidas por medo de parecer intolerantes. Essa hesitação nasce de uma cultura de culpa que transformou a inclusão em capitulação, como se defender valores próprios fosse uma forma de intolerância. O resultado é um  continente que até sente que precisa fazer algo (o caminho não só para a decadência, mas também para a irrelevância está a ser feito de forma muito sustentada e a olhos  vistos, infelizmente), mas que não encontra a coragem nem o consenso social para agir.

A história é clara: encontramos várias civilizações que se extinguiram quase sem ser derrotadas, esvaziando-se por dentro (o Império Romano do Ocidente ou o Império  Bizantino já viviam divididos e exaustos antes dos Bárbaros e Otomanos chegarem para  o golpe final). Há um lento declínio, uma perda de confiança nas crenças e valores, e  depois na vontade de os defender. O colapso acontece pelo cansaço dos próprios e não  necessariamente pela força dos outros.

Redescobrir o sentido dos limites 

As “linhas vermelhas” não são um sinal de rigidez: são a prova de que uma sociedade se  conhece e se respeita. São o que impede que a liberdade de um se torne o abuso de  outro. São o que protege a igualdade entre homens e mulheres, a separação entre fé e  política, e o direito de pensar diferente sem ser punido por isso.

Redescobrir os nossos limites é, afinal, redescobrir a nossa identidade. A Europa que  venceu guerras e ditaduras não foi a que se calou em nome da convivência pacífica — foi  a que soube dizer “não”, com firmeza e clareza moral. O desafio de hoje não é diferente:  não é fechar-se, é reafirmar-se.

Popper e Derrida, vindos de horizontes opostos, acabaram por dizer o mesmo: sem  limites, não há liberdade; sem fronteira, não há hospitalidade. E uma sociedade que  esquece isso não se torna mais humana — torna-se apenas mais frágil.