Na introdução a esta “biografia” de José Sócrates, João Miguel Tavares (JMT) cita o escritor José Rentes de Carvalho: “Olhe o José Sócrates: é carismático, é mau, é estúpido. Como personagem romanesca é uma mina de ouro. Mas nenhum escritor pegou ainda nele. Nem os mais jovens. Eu faria dele um Rastignac como o de Balzac”. Há várias razões, boas e más, para isso ainda não ter acontecido. E estão quase todas neste livro, a que JMT dedicou boa parte dos últimos dez anos.
Ali em cima, a palavra biografia aparece entre aspas pelo simples facto de não haver aqui novas revelações e factos desconhecidos sobre o percurso do antigo primeiro-ministro. Aliás, esse método é explicado logo no início pelo autor que quis “limitar a […] investigação àquilo que foi publicado em jornais, revistas e livros; ao que foi ouvido nas rádios ou visto nas televisões”. O método tinha dois objetivos: surpreender o leitor com histórias que já tinham sido divulgadas mas que, entretanto, tinham caído no esquecimento, e demonstrar a tese de que “a personalidade de José Sócrates, as suas contradições e os seus métodos estiveram à vista de todos ao longo dos anos em que ele exerceu o poder”.
O primeiro objetivo é amplamente alcançado: a grande maioria dos leitores será surpreendida, pelo menos ao nível dos pormenores, por muitas das histórias aqui relatadas e enquadradas. Mas é precisamente isso que compromete o segundo objetivo e que, paradoxalmente, justifica a necessidade deste livro. Se muitos dos factos aqui compilados são surpreendentes – e se o são, isso não se deve a uma peculiar propensão nacional para a amnésia cívica – o livro fica justificado por nos oferecer, a esta distância, uma visão de conjunto que liga acontecimentos e personagens entre si.
A tese, inegavelmente tentadora, aponta para uma responsabilidade coletiva e institucional na ascensão política de Sócrates, mas ignora a dificuldade, na altura dos acontecimentos, de pegar nos fios esparsos de uma atividade política iniciada ainda nos anos 70 e ir tecendo em simultâneo uma tapeçaria coerente e reveladora. O método escolhido por JMT só é possível porque houve alguma dose de escrutínio a montante. Que esse escrutínio não tenha impedido José Sócrates de chegar ao poder e de se manter aí durante seis anos deve-se às características do homem e às circunstâncias políticas em que ele se afirmou. Dessas circunstâncias fazem certamente parte as instituições, não isentas de defeitos e de vícios, mas aqui a “debilidade institucional” é uma razão tão vaporosa quanto os célebres “problemas estruturais” do país.

O problema maior da tese é que nos empurra para o excecionalismo de Sócrates (as suas qualidades mágicas que lhe permitiram esconder-se “debaixo dos holofotes”, como afirma JMT) e para o excecionalismo das instituições democráticas em Portugal (os seus vícios inultrapassáveis e especificamente lusitanos). Ora, o que o livro demonstra é que nem Sócrates era assim tão excecional (em ambos os sentidos da palavra), patente na afirmação de JMT de que “José Sócrates é um puro produto das estruturas partidárias da democracia portuguesa”, nem a sua ascensão se explica por uma debilidade excecional das instituições. Se as estruturas partidárias produziram políticos como José Sócrates, era natural que, mais cedo ou mais tarde, algum deles chegasse ao poder, o que atenua, de alguma forma, o impacto da constatação inicial de que Sócrates foi o primeiro político desde a instauração da República a chegar ao poder sem vir de boas famílias ou sem ter um sólido percurso académico.
Inevitavelmente literário
Voltemos à dimensão romanesca da personagem Sócrates que é, reconheço, a grande personagem literária portuguesa dos últimos vinte e cinco anos. Uma das razões para ainda não ninguém ter feito de Sócrates o seu Eugène de Rastignac está na profusão de episódios rocambolescos e cómicos enumerados neste livro. Quem precisa de ficção quando a realidade a supera e dispensa? Dos primórdios provincianos aos esquemas autárquicos, das amizades envergonhadas aos luxos de nababo, das aventuras semi-académicas às exibições de erudição postiça, da linguagem feroz e camiliana à obsessão com a imagem, da suposta fortuna do avô do volfrâmio aos apartamentos milionários, da mãe humilde que de repente se vê administradora de offshores às tragédias inconcebíveis que se abatem sobre a família, é tudo excessivo, exagerado, uma sucessão de acontecimentos e de personalidades que nem o chamado realismo histérico seria capaz de acomodar sem soçobrar sob o peso da inverosimilhança.
A outra razão para a literatura atual não se aproveitar de Sócrates é que a literatura de há 150 anos já o fez, com mais arte e proveito. De certo modo, Sócrates já está n’A Queda dum Anjo ou n’O Conde d’Abranhos. Quando Calisto Elói, depois de descer à cidade e se aperceber que a sua indumentária não está de acordo com a moda e os novos tempos, atualiza as suas fatiotas, é José Sócrates. Quando o biógrafo de Alípio Abranhos menciona, acintosamente, a falta de vida intelectual do seu biografado na infância é impossível não pensar no que JMT escreve de Sócrates – “deseja o prestígio académico, mas não o trabalho que ele dá” – ou nas justificações do próprio Sócrates para a sua falta de dedicação aos estudos quando, ainda na década de 70, andou por Coimbra – “tive outras aprendizagens”. Quando o Conde afirma “que desde novo, fui inclinadote a agitar questões sociais”, podemos ouvir a voz de Sócrates a dizer “tive a certeza de que a engenharia não era o meu destino. É o mundo dos pormenores e eu tenho uma inteligência direcionada para o abstrato”.
Não se pense que é um exagero. No livro, JMT transcreve umas declarações de Sócrates sobre o amigo Carlos Santos Silva: “A única coisa que sabia é que ele era uma pessoa com meios de fortuna”. Vejam agora o que Alípio Abranhos escreve sobre o próprio pai, “deslumbrado pela perspetiva de me ver possuidor de uma educação que os seus meios de fortuna não lhe permitiriam dar-me”. E não há ecos na Gazeta do Interior, jornal regional fundado por Afonso Camões, Sócrates e Carlos Santos Silva, da Bandeira Nacional, o jornal onde o Conde d’Abranhos se destaca? É caso para dizer: está tudo nos clássicos.
Uma lição de narrativa
Uma das palavras-chave na história de José Sócrates não é ficção, nem romance, nem mesmo mentira — é narrativa. Uma narrativa é uma versão dos acontecimentos que exige construção. Não pode ser completamente inventada, se não perde credibilidade. Não pode ser uma mentira descarada porque põe em causa irrepreensibilidade moral do autor. No essencial, tem de ser verdade. A narrativa é aquela coisa maleável em torno da verdade. Um dos exemplos que JMT encontrou das narrativas socráticas foi a história da filiação no PSD. José Sócrates filiou-se mesmo no PSD em 1974. Porém, anos mais tarde, não resistiu a pintar este facto com as suas tintas narrativas: “Na altura eu era um verdadeiro social-democrata, como, aliás, ainda sou hoje. E mantenho-me fiel a esses ideais do socialismo reformista. Por isso, em 74, inscrevi-me logo no primeiro partido com o nome de Social Democrata”. Podia ser fiel à social-democracia, mas não era fiel à verdade porque, na altura em que se tornou militante, o partido chamava-se PPD e não PSD. A mesma tendência aparece na narrativa do seu guterrismo precoce (teria estado do lado de Guterres desde 1983) ou a explicar porque é que tinha aceitado bem a nomeação para secretário de Estado em 1995 quando, na verdade, esperava ser ministro: “Todos aqueles que ocupavam lugares de responsabilidade no partido, mas que eram ainda muito novos, abaixo dos trinta, foram convidados para secretários de Estado”. Nesse primeiro governo de Guterres, ele, António Costa e Armando Vara não tinham menos de trinta anos.
Contudo, o momento fundacional da narrativa socrática não é nem uma mentira, nem sequer uma leve distorção dos factos. Também não é uma interpretação inverificável. Foi a escolha do seu nome de guerra, do seu nome político. O pai de José Sócrates, Fernando Pinto de Sousa, era arquiteto e uma figura importante do PPD na Covilhã. Sócrates, que sempre manteve com o pai uma relação de proximidade fria (quando os pais se separaram, ficou a viver com ele), chegou a dizer que era um produto do seu pai. Por isso, não é negligenciável que, partir de 1984, quando já era militante do PS, tenha optado por se dar a conhecer como José Sócrates, eliminando os apelidos. As interpretações possíveis são múltiplas, mas o significado e as consequências deste seu batismo no Jordão são óbvios: de uma assentada, livrou-se das conotações políticas associadas ao nome do pai e libertou-se da tutela paternal. Havia ainda um outro significado: num país em que os apelidos ainda contam tanto, este novo nome rasurava uma história. Ao escolhê-lo, Sócrates prescindia do peso e da herança. Inventava-se como um novo homem, com pouco passado, sem grande história, apenas futuro. Nem Zé Pinto, como também chegou a ser conhecido, nem José Pinto de Sousa, filho do seu pai. Apenas José Sócrates.

Para alguém que nasce fora dos círculos do poder, não ter passado ou nome pode ser um obstáculo. Pode também ser um trunfo. Quanto menos passado um político tiver, menos terá de mentir. Em Portugal, por cultura e um pudor canhestro, sempre houve a tendência para respeitar a intimidade dos políticos. Daí que a participação de candidatos a cargos políticos em programas da tarde ou confessionais seja uma obrigação que alguns cumprem relutantemente. Mas Sócrates, que chegou a ser entrevistado no lacrimogéneo Alta Definição, sempre se esquivou a revelar mais do que o estritamente necessário. O argumento era o da reserva da vida privada, o que até se pode compreender quando está em causa a exposição dos filhos, mas que, pelo que sabemos hoje, era apenas uma forma de bloquear o escrutínio a alguém cujas fronteiras entre vida pública (ou politicamente escrutinável) e vida privada eram muito ténues.
Esse cuidado em não revelar demasiado é evidente na forma como ocultou publicamente muitas das suas amizades e ligações, quase todas que remontavam aos tempos de funcionário da Câmara da Covilhã, onde começou a trabalhar em 1981. Uma vez mais, só um livro escrito a esta distância poderia assinalar a ostensiva ausência do maior amigo do mundo, Carlos Santos Silva, da biografia de José Sócrates, escrita por Eduarda Maio (eis um sinal que estava e não estava lá). Do mesmo livro, também está ausente Carlos Martins, figura muito próxima de Sócrates desde os tempos da Covilhã e seu assessor em São Bento, apesar de, com a preparatória incompleta, dificilmente ter outras habilitações que não a confiança pessoal do chefe e amigo. Esta cuidadosa construção – e ocultação – de uma densa teia de amizades e interesses era muito antiga. Sócrates era um especialista em fazer amizades, manter amizades e em esconder amizades. Se os sinais exteriores de riqueza se tornaram ostensivos, os sinais exteriores de amizade sempre foram discretos, quase invisíveis. E os amigos nunca lhe levaram a mal. Mais do que isso. Como escreve JMT, nunca o traíram. Uma boa narrativa precisa de figurantes que saibam quando aparecer, quando desaparecer e, mais importante, sabem que um figurante não abre boca.
A legítima referência cultural
Sócrates poderia muito bem ter tido uma longa e proveitosa carreira como político local, mas havia nele um desejo, uma ambição, de triunfar em Lisboa: é esse desejo de triunfo, e as formas que esse desejo viria a assumir, e não tanto as suas origens, que denuncia o seu provincianismo. Até porque as suas origens não jogaram propriamente contra si. Os negócios no interior eram pouco escrutinados. É a partir do momento em que se torna uma figura nacional que a narrativa — lentamente, é certo — começa a abrir brechas. Mas essa ambição, é justo dizer (e JMT di-lo), era acompanhada de um inegável talento político. Não era fácil para um jovem oriundo da Covilhã ganhar destaque a nível nacional, sendo eleito deputado logo nas eleições de 1987, as que deram a primeira maioria a Cavaco Silva. “Possuidor de uma excelente intuição para detetar as boas oportunidades políticas” (p. 208), a forma como se assenhoreou do tema do ambiente no PS é disso demonstrativo.
Para ele não havia temas menores. Outra maneira de ver é que alguém como ele não se podia dar ao luxo de escolher, mesmo que tenha mais tarde insistido para ir para o Ministério do Ambiente e não da Agricultura, porque não se tinha preparado para ir “tratar de couves”. Um dos primeiros momentos em que se destacou na Assembleia da República foi logo em 1988, em defesa de uma proposta para regular a prática do naturismo nas praias portuguesas. Bem retrabalhado, poderia ser o discurso de uma personagem ao estilo de Calisto Elói ou de Alípio Abranhos, com a sua estrénua defesa do naturismo como “forma de realização plena no conhecimento integral do corpo humano e de reação ao artificialismo da vida contemporânea”, a que sabiamente juntou um dardo ao governo: “A Câmara notou o constrangimento e o embaraço com que a bancada do PSD encara esta matéria. São, digamos, um constrangimento e um embaraço normais para as forças políticas conservadoras.” Ah, o naturismo, essa prática que assinala o grande progresso civilizacional de podermos regredir aos tempos do Pai Adão. Mas, na altura, Sócrates marcou pontos.
Marcou pontos também quando, num célebre episódio na Assembleia, levou uma garrafa de água do Alviela. Era um número, um episódio como aquele em que o Conde d’Abranhos ganha uma pouco invejável notoriedade devido a uma intervenção curta na Assembleia e que lhe vale a fama de chalaceador. Sócrates não se importava de ser chalaceador porque tinha a certeza de que outras oportunidades viriam. Ao mesmo tempo, à medida que ganhava notoriedade, desejava o reconhecimento intelectual, não queria ser apenas uma caricatura política com apartes espirituosos na Assembleia, sobretudo a partir do momento em que pôs os olhos na liderança do partido. Essas figuras coloridas dos partidos nunca vão muito longe e ele queria ir longe. A obsessão pela legitimação cultural de que fala JMT tornou-se incontida quando a possibilidade de vir a ser primeiro-ministro passou a ser uma realidade. Com a maior exposição, vieram as tentações maiores e, com elas, os erros. Até chegar ao ponto em que nenhuma narrativa, por mais abracadabrante que fosse, seria suficiente para esconder o óbvio.
Quem resiste a uma boa história?
O trajeto de Sócrates, do nascimento numa aldeia transmontana (na verdade, nasceu no Hospital de Santo António, no Porto) até ao triunfo no centro do poder lisboeta, passando pela formação político-partidária e cívica (por assim dizer) numa cidade beirã, demonstra que nem a corte lisboeta era tão impenetrável nem a província estava assim tão afastada desse centro histórico do poder desde que um talento inato para a política, uma vontade férrea e um ressentimento social propulsor se unissem num só homem para reduzir a distância e esboroar as muralhas para lá das quais imperavam, até aí, os bem-nascidos e os que através dos estudos e esforço pessoal adquiriam o bilhete mágico de entrada nesse mundo.
[A 14 de janeiro de 1986 um acontecimento muda o rumo da campanha das presidenciais: a inesperada agressão a Soares na Marinha Grande. Nas urnas, o socialista e Zenha lutam por um lugar na segunda volta frente a Freitas. A “Eleição Mais Louca de Sempre” é o novo Podcast Plus do Observador sobre as Presidenciais de 1986. Uma série narrada pelo ator Gonçalo Waddington, com banda sonora original de Samuel Úria. Pode ouvir aqui, no Observador, e também na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube Music. E pode ouvir o primeiro episódio aqui, o segundo aqui e o terceiro aqui.]
A ascensão política de Sócrates coincide com uma profunda mudança da classe política portuguesa: Sócrates é fruto e sintoma dessa alteração. Se, como bem nota JMT, ele foi o primeiro a chegar à cadeira de primeiro-ministro, não era o único com um trajeto idêntico ao nível das juventudes partidárias e da política local. Ter sido precisamente ele o primeiro é que de facto torna o seu um caso particularmente admirável (nas várias aceções do termo) por demonstrar um conjunto de virtudes pessoais singulares que o próprio tratou de codificar numa mitologia (narrativa) sabiamente trabalhada e à qual a sociedade não resistiu – quem resiste a uma boa história?

Perante o fenómeno Sócrates, houve uma adesão acrítica, deslumbrada, uma cegueira voluntária, agravada por algumas fraquezas institucionais do país, mas não muito diferente do que aconteceu com outros políticos em momentos diferentes. E seria bom não justificar tudo o que aconteceu com o argumento das instituições porque as instituições adquirem dessa forma um estatuto quase divino, de salvaguarda infalível contra os maus políticos e, na pior das hipóteses, de bode expiatório para ações individuais. Não há nenhum sistema no mundo que impeça a ascensão e o triunfo de maus políticos: o que distingue os melhores sistemas, com as melhores instituições, é a capacidade de os identificar e remover dos cargos e, quando for caso disso, puni-los pelos seus desmandos.
Esta mitificação, quase divinização das instituições, que está no centro da tese de JMT – a ascensão de Sócrates só foi possível num quadro de debilidade institucional porque os sinais estavam lá todos –, esquece que as instituições não nascem, para parafrasear Guterres, do vácuo e também não é no vácuo que exercem as suas funções. Ora, se os sinais estavam todos lá é porque, de alguma forma, as instituições, incluindo a imprensa, fizeram uma parte do seu trabalho. A tese do excecionalismo de Sócrates, pelas suas qualidades, e das instituições portuguesas, pelos seus defeitos, é muito apelativa, mas muito incompleta. Nem Sócrates era um caso invulgar no panorama político-partidário depois do 25 de Abril, a geração que se politizou já em democracia, nem atuou num quadro institucional reduzido a escombros.
Sócrates e Portugal: uma história de amor
A certa altura, o país, a começar pelo PS, precisava de um Sócrates e Sócrates estava lá, graças ao seu instinto, à sua capacidade política, ao seu sentido de oportunidade e aos acasos, como o de ter servido no governo de um primeiro-ministro que era a antítese do seu espírito intrépido e decidido e de ter enfrentado, para chegar à liderança do PS, um setor tradicional do partido (Manuel Alegre) e um setor hereditário (João Soares), quando os modelos de sucesso da esquerda lá fora apontavam para outros caminhos, outras vias. Sócrates foi-se adaptando ao perfil de liderança da nova esquerda, a da terceira via: jovem, elegante, moderno, telegénico, representante de uma esquerda descomplexada, sem furores revolucionários mas mantendo consciência social, defensora do papel do Estado mas amiga do investimento privado, mais cosmopolita do que internacionalista. A questão não é a de saber como é que Sócrates chegou ao poder, mas como é que naquelas circunstâncias tão propícias não chegaria.
Guterres poderia ter sido esse líder, mas algo na sua personalidade – a mistura de brilhantismo intelectual com uma tibieza temperamental – impediu-o de assumir esse papel. Havia nele uma relutância congénita, uma incapacidade de se desatrelar do peso-morto do humanismo cristão que o mantinha preso a uma outra era, um produto mais da Igreja do Rato do que do Largo do Rato, com todos os seus escrúpulos paralisantes. Sócrates não tinha essa bagagem e, mesmo que a tivesse, não teria tido pejo em livrar-se dela em nome do pragmatismo. A sua religião era o pragmatismo. Não era um cata-vento, antes um astuto observador dos cata-ventos que mostram sempre para que lado o vento sopra.
Contudo, esse pragmatismo de nada lhe teria servido sem um mínimo de substância ou de resultados. Quando Guterres, no seu primeiro governo, não o agraciou com um ministério, entregando a desejada pasta do Ambiente a Elisa Ferreira, Sócrates não se afundou na melancolia nem permitiu que o ressentimento o paralisasse. Aquele homem que temos visto a espernear perante a comunicação social sempre que se apresenta no Campus da Justiça, que enfrenta jornalistas e juízes com uma desfaçatez indecorosa, é o mesmo que, em meados dos anos 90, se recusou deixar-se abater por lhe ter sido dada uma secretaria de Estado quando as suas ambições já eram outras, numa época em que lhe deram o apodo de “Zé das Sobras”.
Em circunstâncias semelhantes, outros políticos— quais Carlos da Maia resignado no seu luxuoso consultório — ter-se-iam afundado na melancolia dos seus gabinetes. Sócrates, pelo contrário, fez da frustração o seu combustível, da secretaria de Estado o seu quartel-general e das áreas que lhe cabia tutelar a divisão de panzers com que invadiu a paisagem política portuguesa, sem temer o confronto, a contestação, compreendendo instintivamente que um político resoluto, mesmo com ideias razoáveis, é sempre mais apreciado do que um líder hesitante com a cabeça a transbordar de ideias excecionais.
É conhecida aquela cena do filme Nixon, de Oliver Stone, em que Nixon fala para o retrato de JFK na Casa Branca: “Quando olham para ti veem o que gostariam de ser, quando olham para mim veem o que são”. O caso de Portugal com Sócrates é mais estranho e complexo: quando olhava para ele, o país via apenas o que gostaria de ser ignorando os pormenores que revelavam tudo aquilo que ele era e que o país, com ou sem Sócrates, também era e continua a ser. Os dois – Sócrates e Portugal – surgem retratados neste livro com uma minúcia e um sentido de serviço público que nos informa, indigna, diverte e, em última análise, nos entristece em doses iguais. Se tudo isto fosse um romance, não seria mau. E Sócrates seria mesmo uma grande personagem. Infelizmente, isto é um país e Sócrates foi primeiro-ministro.