Foi uma das caras mais populares no mundo do cinema e da moda ao longo dos últimos 70 anos. Um dos nomes que se tornou substantivo e adjetivo, marca registada, mistério e visão aspiracional. Mesmo já longe dos holofotes, continuava a atrair atenções e a ser recordada – de tal forma que até a própria se questionava sobre o interesse em torno da sua vida numa entrevista recente ao The Guardian. Mas a verdade é que, numa retrospetiva justa, a palavra ícone é talvez uma forma simplista de descrever aquela que foi uma das mais revolucionárias mulheres do século XX. Aos 91 anos, morreu Brigitte Bardot, atriz, modelo e ativista francesa, na sequência de uma operação de urgência que a levou ao internamento num hospital privado em Toulon, no sul de França.
Nascida a 28 de setembro de 1934, em Paris, Brigitte Anne-Marie Bardot cresceu num mundo em profunda transformação. Nos anos do pós-Segunda Guerra Mundial, na França que se revelaria através do cinema da Nouvelle Vague (e não só), BB – como tantas vezes o seu nome foi evocado, apenas pelas iniciais – destacou-se desde jovem pela beleza e pelo inconformismo. Os cabelos louros, os olhos grandes e arredondados, o nariz pequeno, os lábios finos e a estatura perfeita colocaram-na rapidamente no caminho de uma ascensão meteórica no mundo da moda, rodeada por alguns dos maiores criadores do universo da alta-costura, como Yves Saint Laurent, Christian Dior e Pierre Balmain. Mas foi no cinema que se tornou musa, diva, admirada e invejada, rompendo preconceitos e emancipando-se como mulher.
A sua estreia como modelo na capa da revista Elle, em março de 1950, aconteceu quando tinha apenas 15 anos. Para trás ficava, em definitivo, o sonho do ballet, que praticara durante vários anos. Bardot seria rapidamente associada ao chamado estilo New Look, lançado por Dior em 1947 – o epítome de uma revolução feminina, marcada por mulheres empoderadas e glamorosas através da estética e do design. Simone de Beauvoir, autora de O Segundo Sexo, chegou mesmo a dizer que Bardot era “uma locomotiva da história das mulheres”. Das sessões fotográficas para as revistas, de modelo juvenil à figura adulta, a beleza de Bardot atraiu a atenção de Marc Allégret, cineasta conhecido por descobrir novos talentos, entre as quais Simone Simon e Michèle Morgan, ambas tornadas estrelas do cinema francês na década de 1930.
Foi um pequeno-grande salto. Allégret convidou Brigitte para um teste para o seu filme Les lauriers sont coupés. Foi escolhida para o papel, mas o filme acabou por não ser realizado. Ainda assim, a oportunidade fê-la pensar em tornar-se atriz. Mais do que isso, o encontro com o cineasta e produtor Roger Vadim, que assistira ao teste, influenciaria profundamente a sua carreira e a sua vida. Em 1952, dá-se o seu primeiro momento de conquista como protagonista no icónico Manina, la fille sans voiles, que lhe valeu as primeiras notas de imprensa. Tornada sex symbol nos anos seguintes, já depois de ter casado em segredo com Vadim, Bardot atravessou, no entanto, uma primeira fase de filmes pouco marcantes. Entre 1952 e 1956, participou em mais 15 produções cinematográficas, sobretudo dramas românticos ou históricos, mas sem grande impacto.

No ano seguinte surge então a primeira grande reviravolta da carreira: ao lado do jovem ator sensação francês Jean-Louis Trintignant, protagonizou Et Dieu… créa la femme (1957), realizado pelo próprio marido, Vadim. O filme, sobre uma adolescente amoral numa pequena e respeitável cidade do litoral francês, teve um enorme sucesso, mas escandalizou pela forma como abordava a sexualidade feminina. Censurado em diversos países pelo seu conteúdo considerado erótico e imoral, e pela forma como refletia o estilo de vida liberal e emancipado da personagem interpretada por Bardot, o filme valeu-lhe, em justaposição, a fama e o estrelato internacional.
Quando chegou aos Estados Unidos, o filme foi um êxito de bilheteira de tal dimensão que transformou Bardot num fenómeno da noite para o dia. Na Europa, a imprensa conservadora e grupos religiosos reagiram violentamente, estampando capas com a sua imagem acompanhada de termos como “vulgaridade” e “besta”, chegando mesmo a apelidá-la de héroïne pitoyable. Durante a Exposição Universal de Bruxelas, em 1958, o pavilhão do Vaticano, dedicado ao tema dos sete pecados capitais, ilustrou a luxúria com um cartaz de fotos de Bardot, episódio que exigiu a intervenção dos seus advogados e do governo francês para ser removido. Ainda hoje, a cena em que dança descalça em cima de uma mesa é considerada uma das mais eróticas da história do cinema.
Musa do grande ecrã
Mas voltemos atrás na história. Filha de um empresário industrial da alta burguesia, Louis Bardot, e de Anne-Marie Mucel, Brigitte era uma de duas irmãs (a outra é Mijanou Bardot, atualmente com 87 anos) educadas num meio fortemente marcado pelos preceitos morais e pela boa educação. Ainda assim, cresceu também num ambiente bastante ligado às artes. A mãe tinha tentado a carreira de bailarina e o pai era, além de industrial, um poeta premiado e cineasta nas horas vagas. Embora a educação incluísse a rigidez própria da época, Bardot cresceu num meio disciplinado mas próspero, que influenciaria o seu espírito rebelde. Foi nesse período que ingressou, em 1947, no Conservatório de Música e Dança de Paris, onde seria ensinada pelo coreógrafo russo Boris Knyazev e onde também se torna colega e amiga de Leslie Caron (mais tarde seria escolhida por Gene Kelly para, ao lado dele, entrar na obra-prima de 1951, An American in Paris).
De regresso à carreira de atriz, o perfil erótico e liberal de Brigitte Bardot foi sempre visto como uma aposta arriscada pelos grandes estúdios norte-americanos. A isso somava-se o seu inglês limitado, que a impediu de fazer carreira em Hollywood, então dominada por outras grandes figuras femininas, nomeadamente Marilyn Monroe. Ainda assim, eleita “deusa” da década de 60, Bardot tornara-se numa das exportações francesas mais valiosas. “Tão importante quando os automóveis da Renault”, diria, inclusivamente, o presidente francês Charles de Gaulle. Casa-se pela segunda vez com o ator Jacques Charrier (com quem teve o seu único filho), com quem contracena em Babette s’en va-t-en guerre (1959). Os seus filmes tornam-se cada vez mais substanciais, recebendo aclamação crítica, embora os casamentos e as suas amizades continuassem a alimentar o interesse das revistas e a gerar polémicas. Entre os escândalos, uma tentativa de suicídio – a primeira de várias – aos 25 anos de idade.

Filma com Jean-Luc Godard no famoso O Desprezo (1962) e com Louis Malle em Vie privée (1962) – entre outros – e contracena com Mastroianni, Michel Piccoli e Alain Delon, mas a perseguição constante por parte da imprensa e dos fãs levou-a a adotar uma vida reservada em Saint-Tropez, ainda que nem isso impedisse os turistas de ali acorrerem apenas para ver a famosa atriz. Mesmo sem ter conquistado grandes prémios cinematográficos, à exceção de um David di Donatello em 1961, Bardot continuaria a causar histeria na imprensa internacional e foi uma das poucas atrizes não americanas da sua época a receber grande atenção mediática nos Estados Unidos. É desse mesmo interesse inusitado que nasce o termo Bardotmania, para descrever a adoração e o frenesim que a sua imagem provocava.
Os anos seguiam-se e, com Viva Maria!, um western de grande orçamento rodado no México, recebe uma nomeação ao BAFTA de Melhor Atriz Estrangeira em 1967. Voltaria também a trabalhar com Godard ao interpretar-se a si própria em Masculin Féminin (1966), filme que aborda as transformações culturais pelas quais o mundo estava a passar na segunda metade da década de 1960. Já no seu terceiro casamento, com Gunter Sachs, Brigitte Bardot sentia-se cada vez mais sufocada pelos paparazzi – como ficou evidente na sua aparição no Festival de Cannes, em 1967, onde foi constantemente importunada pelos fotógrafos que a seguiam a cada passo. Foram anos em que começou, gradualmente, a afastar-se do estrelato do grande ecrã.
Na década de 1970, surge ainda em filmes como As Noviças, com Annie Girardot, Les Pétroleuses, com a sua amiga Claudia Cardinale, e Don Juan ou si Don Juan était une femme (1973), no qual causa um novo escândalo ao protagonizar com Jane Birkin uma cena de sexo lésbico. Quando as gravações terminaram, Bardot afirmaria sem pudores: “Se este não for o meu último filme, será o último a ficar para marcar”. Na altura, porém, a imprensa e os fãs não levaram a sério a sua ameaça de abandonar o cinema.

Certo é que o fim definitivo da sua carreira como atriz chegaria em 1974, pouco antes de completar 40 anos. Questionada sobre a decisão, Bardot diria apenas que estava cansada da indústria cinematográfica e que encerrar a carreira aos 39 anos era uma forma de “sair elegantemente”. Nas décadas seguintes, recusou inúmeros convites para voltar a atuar, incluindo uma oferta de um milhão de dólares para contracenar com Marlon Brando, e ao longo dos anos rejeitou várias propostas e proibiu diversos realizadores de fazer filmes sobre a sua vida.
Do glamour à causa animal – e às polémicas
Do mito criado à curiosidade constante que as suas palavras despertavam sempre que era citada na imprensa, Brigitte Bardot dedicou-se com afinco à causa da defesa dos animais, uma luta que manteve até ao fim da vida. Em entrevista à agência France Press, nas vésperas de completar 90 anos, confessou que o presente que mais desejava era o fim do consumo de carne de cavalo. E acrescentou, com a franqueza que sempre a caracterizou: “Não podia preocupar-me menos com a idade! Nem sequer dei por ela chegar.”
Recolhida em La Madrague, tornada vegetariana, uniu-se em 1977 ao ecologista suíço Franz Weber e conseguiu atrair atenção internacional para a sua causa ao denunciar o massacre de crias de foca no norte do Canadá. Na década seguinte, ergueu a Fundação Brigitte Bardot, declarada de utilidade pública pelo governo francês em 1992, e que, três anos mais tarde, nomeou o Dalai Lama como seu membro honorário.

Entre 1989 e 1992, apresentou também a série S.O.S. Animaux, copatrocinada pela sua fundação. Entre as múltiplas frentes de ação, Bardot liderou campanhas contra a caça às baleias, as experiências laboratoriais com animais, as lutas autorizadas entre cães, as touradas e o uso de peles. Promoveu ainda clínicas móveis de atendimento a animais de rua em países do Leste Europeu. Numa das suas maiores conquistas, conseguiu que os países europeus proibissem a importação de peles e produtos derivados da caça às focas, após uma reunião no Conselho da Europa.
Outro episódio que protagonizou foi o boicote que promoveu aos produtos sul-coreanos, em protesto contra o consumo de carne de cães e gatos na Coreia do Sul e noutros países asiáticos, à época do Campeonato do Mundo de Futebol de 2002. Ficaram igualmente célebres os comentários, considerados insultuosos para a comunidade homossexual, contidos no seu livro de 2003, Un cri dans le silence: révolte et nostalgie, que mais tarde renegaria. Foi alvo de um processo por incitação ao racismo, movido por um tribunal de Paris, após ter publicado uma carta aberta dirigida ao então ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, onde criticava os rituais muçulmanos de sacrifício animal durante a festa do Eid ul-Adha.
Nos anos mais recentes, e mais próxima de ideais conservadores (casando-se ainda com Bernard d’Ormale, um ex-conselheiro político de Jean-Marie Le Pen), Bardot voltaria às polémicas em 2018, ao classificar as atrizes do movimento Me Too como “hipócritas e ridículas”. “Muitas atrizes tentam provocar produtores para conseguir papéis. E, depois, quando falamos sobre elas, dizem que foram assediadas”, afirmou em entrevista à Paris Match. A antiga atriz declararia ainda apoio a Marine Le Pen, criticaria as medidas adotadas durante a pandemia de Covid-19 e manifestaria simpatia pelo movimento dos “coletes amarelos”.
Apesar das posições políticas controversas, Bardot afirmou, em várias entrevistas, que julgava os políticos apenas pelas suas propostas em defesa dos animais. “Tive uma esperança insana quando a Frente Nacional fez propostas concretas para reduzir o sofrimento animal. Se amanhã um comunista aceitar as propostas da minha fundação, eu aplaudo e voto. Mas não vou apoiar mais ninguém”, disse. Mulher de muitas faces, e com posições que ao longo dos anos pareceram, por vezes, antagónicas – desde a defesa da independência da Argélia até às críticas à imigração islâmica –, Brigitte Bardot nunca deixou de ser idolatrada. O seu estilo e atitude influenciaram artistas como Jane Fonda, Catherine Deneuve, Julie Christie, Faye Dunaway, Britt Ekland, Marianne Faithfull e Virna Lisi, entre tantas outras.
Acima de tudo, Brigitte Bardot foi um espelho do seu tempo e das suas transformações. Entre o mito e a mulher real, construiu uma figura que oscilava entre a emancipação e o escândalo, entre a liberdade e o excesso. Criou, talvez, um personagem que a ultrapassou, mas que se tornou símbolo de uma geração decidida a romper convenções. A escritora e biógrafa Marie-Dominique Lelièvre, que dedicou livros a figuras como Yves Saint Laurent, Coco Chanel, Serge Gainsbourg e Françoise Sagan, descreveu Bardot ao The Guardian como “a personalidade mais complexa” com que se deparou, sublinhando que a sua celebridade funcionou como uma cortina de fumo.
“Ela foi a primeira mulher a exibir publicamente a sua liberdade sexual”, afirmou Lelièvre. “Antes de Bardot, uma mulher que mudasse de amante ao sabor do desejo era chamada de rameira, uma salope. Depois de Bardot, essa mulher passou a ser vista como libérée. Ao contrário das atrizes de Hollywood, que jogavam segundo as regras, Bardot criou as suas próprias. Atraía as mulheres que queriam ser como ela – e os homens que simplesmente a desejavam.” Contraditória e inesquecível, Bardot permanecerá mais do que uma lembrança do cinema ou da moda: o mito de uma liberdade feminina que, entre paradoxos, continua a incendiar o imaginário coletivo.